Apontamentos para o tal do novo normal, por Marília Moreira

Mas terá o vírus de fato despertado, como num passe de mágica, a compaixão nos corações humanos ou apenas propiciou àqueles que já a possuíam uma oportunidade de manifestá-la perante desconhecidos?

Banksy

Apontamentos para o tal do novo normal

por Marília Moreira 

Como será a vida pós pandemia?

Pensadores de todo o mundo se debruçam sobre essa questão e entre os diversos textos que nos surgem prevalece a ideia de que nunca voltaremos a viver como antes, teremos que rever o nosso sistema econômico, nossa maneira de trabalhar, de nos locomover, de estudar, de nos entreter, de desfrutar de atividades artísticas e de lazer e, talvez o mais importante, de nos relacionarmos uns com os outros.

Apesar da imposição de mudanças, o que sempre gera algum grau de desconforto, há em grande parte do que se diz, se não exatamente um otimismo, a impressão de que esse anunciado “novo normal”, ao qual teremos que nos habituar, trará com ele uma boa dose de benefícios.

Dentre as supostas vantagens trazidas pela pandemia estaria o afloramento da compaixão.

Muito se falou, num primeiro momento, de gestos altruístas gerados pela nova situação. Ganharam notoriedade vizinhos até então desconhecidos que gentilmente se ofereceram a ajudar aqueles considerados mais vulneráveis com compras de farmácia e de mercado, por exemplo.

Mesmo com nossa fauna nos tornamos mais generosos. Vimos com alegria (ainda que através de câmeras) animais selvagens circularem por ambientes antes frequentado exclusivamente por humanos (ou, quando muito, por seus bichos de estimação) e ficamos gratos a nós mesmos por esse acontecimento.

Ainda no âmbito da natureza, seja por respeito às gerações futuras, seja em nome do nosso próprio bem estar, celebramos a melhoria na qualidade do ar e das águas. Teria a presença do vírus despertado, junto com a compaixão, um maior senso de responsabilidade ecológica?

O fato de agora trabalharmos de casa também foi visto, por muitos dos que tiveram essa possibilidade, como um benefício. Para além de contribuir para a redução da emissão de poluentes, teríamos a partir de então mais tempo para dedicar a nós mesmos e à nossa família.

Outra possível vantagem trazida pela pandemia foi o fato de que nós (brasileiros mais abastados ou menos desfavorecidos) “descobrimos”, perplexos, aquilo que já era público e notório:  mesmo em cidades altamente desenvolvidas como Rio de Janeiro e São Paulo, milhares de pessoas vivem sem conexão à rede de esgoto, sem água encanada, sem a mínima condição de manter um padrão básico de higiene e, com isso, contribuir para a desaceleração da circulação do vírus; e suspiramos indignados na esperança de que a doença ao menos serviria para que o poder público voltasse os olhos para essas comunidades e tomasse, finalmente, as providências necessárias.

Apesar do medo, da angústia, de todo o sofrimento real e potencial trazido pela pandemia, ao que tudo indica, conseguimos enxergar nessa situação de adversidade extrema uma significativa dose de positividade.

Mas terá o vírus de fato despertado, como num passe de mágica, a compaixão nos corações humanos ou apenas propiciou àqueles que já a possuíam uma oportunidade de manifestá-la perante desconhecidos?

Façamos o esforço de acreditar que essa compaixão foi realmente despertada. Ela perdurará no mundo pós pandemia ou voltaremos ao nosso extremo individualismo (quiçá, egoísmo) assim que não tivermos mais um problema comum a enfrentar?

Seria de uma ingenuidade digna dos clássicos da Disney acreditar que estaríamos dispostos a perpetuar as condições que possibilitaram a circulação dos habitantes não humanos por nossas cidades, mas é crucial que nos perguntemos o quanto estamos dispostos a transformar os nossos hábitos (alimentares, de consumo, de estilo de vida) em nome de uma melhoria do meio ambiente como um todo. Vale ainda questionar se conseguiremos nos manter atentos às necessidades dos nossos próximos, ainda que desconhecidos, quando nossas vidas se tornarem outras vez estáveis e cômodas.

Exigiremos dos governos uma solução definitiva para a questão do saneamento básico ou apenas deixaremos que esse problema de dilua novamente em meio a tantos outros que castigam a população mais pobre?

Para mantermos um padrão de melhoria da qualidade do ar e das águas seria necessário, entre outras coisas, que mudássemos drasticamente nossos hábitos de consumo, reduzindo significativamente a produção industrial, o que nos obrigaria a encontrar uma nova alternativa econômica. De fato, há muito esforço sendo feito nesse sentido, no entanto, tão logo os shoppings foram abertos (às vésperas do dia dos namorados), multidões ensandecidas se aglomeraram em suas portas.

Quantas pessoas terão sido infectadas em nome da economia e do amor?

Ainda em prol do meio ambiente, seria imprescindível que optássemos por meios de transporte limpos e/ou coletivos. Mas quantos de nós estarão de fato dispostos a reduzir o conforto individual em nome da ecologia? Deixaremos nossos carros na garagem mesmo não havendo mais o medo do contágio? Concordaremos em manter nosso trabalho à distância mesmo quando outras vantagens que acreditávamos que alcançaríamos com isso não se tronaram realidade?

Os supostos benefícios que seriam gerados pelo trabalho remoto parecem não se confirmar agora, três meses após o início da experiência. As horas economizadas com a falta da necessidade de locomoção não foram, ao menos não para boa parte dos trabalhadores, transformadas em horas de lazer, de descanso, de bom convívio familiar, mas num aumento de horas de um trabalho tornado, por diversos motivos, ainda mais desgastante.

Além de não trazer as vantagens previstas, o trabalho remoto excluiu de nossas vidas outras, importantíssimas para o nosso bem estar.

É no ambiente do trabalho que se formam a maior parte dos laços afetivos na nossa vida adulta, inclusive casamentos. Para muitos o trabalho é um salutar afastamento do ambiente doméstico e suas demandas (significativamente aumentada, em especial para as mulheres, durante o isolamento). O ritual de se preparar, de se arrumar, a obrigação de zelar pelo asseio pessoal, trazem benefícios inquestionáveis à autoestima. Mesmo a rotina, muitas vezes tão condenada, é fundamental para a nossa saúde psíquica.

Os mesmos apontamentos feitos em relação ao trabalho se aplicam ao mundo das universidades. Para além das aulas, o ambiente universitário, com sua possibilidade de trocas (intelectuais e afetivas) também contribui para a formação dos jovens. As aulas online, além de não favorecerem a formação de vínculos entre colegas e entre alunos e professores, se mostraram muito mais desgastantes e muitos alunos, desestimulados pela falta de interação ao vivo, se escondem atrás de câmeras desativadas roubando dos professores a possibilidade de ler em suas faces possíveis dúvidas, a fagulha de um interesse recém despertados, o cansaço.

Mas talvez entre o ensino completamente à distância, o trabalho em home office e o formato padrão possa haver uma solução intermediária que ajude a desafogar o trânsito nas grandes cidades e diminuir o desgaste ambiental sem nos levar à loucura ou à depressão.

Acreditar que tiraremos alguma vantagem de situações de sofrimento parece ser o remédio que encontramos para suportar a dor. Como as religiões que nos ajudam a dar sentido à vida, a crença de que todo sofrimento traz com ele uma boa dose de aprendizado e, por meio desse aprendizado um certo grau de evolução, nos ajuda a atravessar momentos difíceis.

Mas será que o aprendizado é um bônus garantido em todo pacote de dor? Ou é fruto do esforço individual de reflexão, de autoanálise?

Será que, no caso específico da pandemia que estamos atravessando, as mudanças sociais benéficas que gostaríamos de ver instauradas no país se estabelecerão como que por uma imposição de força maior? Por um milagroso despertar das autoridades públicas para as necessidades da população? Difícil acreditar nisso quando evidências de desvios de verbas destinadas a hospitais de campanha, compra de respiradores e contratação de profissionais da saúde se fazem notar.

Mudanças culturais não se dão de supetão. É necessário tempo para que elas se consolidem.

Por quanto tempo mais precisaríamos viver nessa espécie de estado de exceção para que uma síntese entre o ontem e o agora se estabeleça como o tão falado “novo normal”?

Mudanças sociais, sim, podem ser conquistadas de forma revolucionária, porém nossos esforços no momento estão voltados para o enfrentamento imediato do vírus e para a nossa proteção individual e parece não sobrar energia, ou não encontrarmos os recursos necessários, para cobrarmos uma ação efetiva dos governos com o fim de solucionar as condições que facilitam a propagação da doença. Se não fazemos isso agora em nosso próprio benefício, lembraremos de fazer mais tarde pelo bem das crianças que morrem, entre outras coisas, por diarreias virais? Solucionássemos a questão do saneamento básico, ainda que movidos pelo medo e não por um sentido de responsabilidade social, conquistaríamos, em meio à dor, uma vantagem, a tal vantagem de que parecemos precisar para nos mantermos mentalmente sãos.

Quanto sofrimento mais será necessário para nos movimentar?

Temos hoje a esperança de uma vacina já para o final deste ano de 2020. Do ponto de vista histórico o período que atravessamos confinados em nossas casas (os que puderam), é ínfimo. Contudo, do ponto de vista individual, enfrentamos (e ainda enfrentaremos) uma longa jornada de dias difíceis.

Se as sonhadas mudanças sociais e econômicas me parecem necessitar de mais tempo para se estabelecerem, do ponto de vista da individualidade acredito que o chacoalhão a que fomos todos submetidos possa, sim, nos transformar positivamente, não a todos, mas aos que tiverem a coragem e os meios para mergulhar em suas trevas, para admitir as suas falhas (e lutar para saná-las), o seu egoísmo, a nossa natural resistência às mudanças mesmo quando elas se mostram absolutamente necessárias, e se abrir para elas.

Se o novo coronavírus não trouxe com ele o gérmen de uma revolução, ou um pacote de vantagens intrínsecas e de fácil alcance, é possível que tenha nos propiciado um caminho para a evolução individual e, consequentemente, coletiva (mesmo que a longo prazo). Cabe a nós trilhá-lo.

Oxalá façamos bom uso das nossas adversidades.

Oxalá consigamos, por meio de nossas pequenas, mas importantes, evoluções pessoais, no devido tempo, gerar as mudanças coletivas necessárias para uma vida mais digna para todos.

Por ora, o que vemos por toda a parte são demonstrações eloquentes de violência e de descaso (que não deixa de ser uma forma de violência), relacionados ou não com o à covid 19, e que ocorrem tanto no âmbito do poder público, quanto no das relações interpessoais.

Multidões abarrotaram as praias tão logo elas foram liberadas, ainda no auge da pandemia. Vale lembrar que essa liberação se dá apenas para exercícios físicos individuais, mas esse fato parece ser ignorado tanto pela população quanto pelos policiais. Dentre as pessoas que ocupam as areias, reunidas em grupos, poucas usam máscaras. Talvez pensem que elas não combinem com suas sungas e biquínis. Talvez essas pessoas se acreditem protegidas por alguma espécie de poder sobrenatural. Certamente não estão preocupadas com o risco que impõem a si mesmas e, consequentemente, às demais. Não têm medo de morrer. Pior, não têm medo de matar.

Vemos ainda um aumento assustador da violência doméstica (em especial contra as mulheres) e da violência policial. Aqui, ao contrário no exemplo norte americano, continuamos a assistir passivamente às cenas de agressões desmedidas, às mortes, aos abusos consecutivos, inadmissíveis e indesculpáveis das ditas autoridades. Eles continuarão a acontecer.

Nunca será demais lembrar a já tão exaustivamente comentada reunião ministerial para tratar da pandemia em que as únicas palavras ditas a esse respeito (pelo ministro do meio ambiente) foram no sentido de aproveitar a nova situação para driblar os “entraves” que, em nome da proteção ambiental, atrapalham interesses econômicos.

Recentemente assistimos, estarrecidos, à morte de uma criança negra, pobre, devida à displicência da senhora branca, rica, que deveria, apenas por um breve período de tempo, zelar por ela. É um caso extremo, certamente, mas terrivelmente simbólico da relação que temos uns com os outros, em especial com aqueles “outros” que não fazem parte do “nós” em que acreditamos nos encaixar.

À despeito de tudo isso, talvez movida por uma espécie de síndrome de Poliana (no sentido metafórico e não necessariamente clínico), volto a afirmar: acredito, sim, que momentos de adversidade possam contribuir para a nossa evolução.

Mesmo que eu esteja certa, mesmo que essa situação extrema que estamos todos vivendo tenha o potencial de contribuir para que conquistemos, entre outras coisas, um olhar mais generoso em relação aos nossos semelhantes e que esse novo olhar possa enfim se converter em atitudes concretas, essa conquista, essa evolução, essa “vantagem” se assim preferirmos, certamente não se dará pelo miraculoso toque de uma varinha de condão.

A pandemia não trouxe com ela o pó mágico da benevolência, da responsabilidade social, ou do despertar para a consciência do coletivo. Mas nos trouxe uma excelente oportunidade para refletirmos sobre essas questões. Façamos bom uso desse momento. Mais importante ainda, façamos bom uso das nossas reflexões.

Marília Moreira é atriz, autora das peças teatrais Além da imagem – um réquiem para Marilyn Monroe; Andanças de uma lagartixa, e Língua de Boi, e do livro de poemas infantis Lia e o feitiço da palavra, pelo qual recebeu o prêmio FNLIJ de escritora revelação.

Redação

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