Quando Tiradentes arrancou um dente a Joaquim Silvério e o que aconteceu depois

Por Sebastião Nunes

Na manhã de 15 de janeiro de 1789, um homem louro e gordo entrou às pressas num sobrado da Rua Direita, em Villa Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto.

– Ai, ui, ai – gemia ele, enquanto batia na pesada porta de maçaranduba do segundo andar, na qual se lia em letras graúdas: DENTISTA.

– Entre – gritaram de dentro. Apertando um lenço sujo contra o lado esquerdo da cara pelada, o homem entrou.

– Olá, Silvério – disse o dentista. – Que bons ventos o trazem? Sabe que é raro me encontrar aqui, não sabe? Quase sempre trabalho na casa dos clientes, levando a tralha. Eta gentinha preguiçosa essa de Minas, sô! Sofre, mas não se mexe!

– Bons ventos, uma droga – resmungou o gordo, tirando o capote de algodão-macaco. – Este dente está me matando!

– Senta aqui – disse o dentista, mostrando a cadeira de encosto. – É a que uso quando atendo em casa. Vamos ver o que tem esse infeliz que está te matando.

– Faz três dias que começou. No princípio, foram só umas pontadas espaçadas. Depois…

– Sei – disse o dentista. – Aí você fez compressa de água quente, bochechou com água e sal e continuou doendo. Não foi assim?

– Foi. Também bochechei com cravo-da-índia e malva-cheirosa e nada. Enchi de fumo picado o buraco do danado e nada. Piorou, piorou, piorou – até a noite passada, quando não dormi nem um minuto. Um inferno!

FUÇANDO EM DENTE PODRE

– Homem! – exclamou o dentista, debruçado sobre a boca aberta de Silvério. – Como deixou o dente chegar a esse ponto? Vamos ter de arrancar.

– Então arranca, e arranca logo antes que ele acabe de me matar.

– Deixa de ser chorão, Silvério – contemporizou o dentista. – Também não é pra tanto. Dor de dente não mata ninguém. – E, voltando-se para o interior da casa, gritou: – Onofre, traz o garrafão de pinga! Outra porta se abriu, essa dando para o interior da casa, e o negro-mina Onofre entrou com garrafão e caneca de argila magra.

O dentista encheu a caneca. – Vira tudo – disse ao doente. – Depois não vai sentir dor nenhuma.

Silvério bebeu aos golinhos todo o conteúdo da caneca, que devia conter quase meia garrafa. No final, despejou o resto goela abaixo, fazendo careta.

– Pronto? – perguntou o dentista. – O amargo que sentiu é cera de abelha.

– Mais do que pronto – respondeu Silvério, arrotando.

– Onofre – disse o dentista pegando o assustador boticão de ferro fundido. – Passa por trás de Silvério e segura os braços dele. Mas segura com força.

– Pra que isso, Joaquim? – indagou Silvério. – Acha que sou cagão? Pode arrancar sem susto que não vou te dar o gosto de me ouvir gritando.

– Você é que pensa – resmungou o dentista, enfiando o boticão na boca do paciente, já um tanto anestesiado pela cachaça.

UMA FILHA NO COLO DO DENTISTA

No dia 22 de janeiro de 1789, uma semana depois, Joaquim Silvério dos Reis Montenegro Leiria Grutes, 32 anos, coronel comandante do regimento de cavalaria auxiliar de Borda do Campo, contratador de entradas, fazendeiro e dono de minas bateu na porta do dentista e entrou. Estava tenso e furioso. Sentado numa cadeira de vime, Joaquim José da Silva Xavier, 42 anos, dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e construtor brincava com uma garotinha sentada no colo.

– Quem é essa? – indagou Silvério, de cara amarrada.

– Minha filha com Antônia – disse o dentista. – Não é uma gracinha?

– Meu Deus do céu! – exclamou Silvério. – E você que nunca me contou que tinha uma filha. Mas você é casado? Desde quando?

– Casado nada, Silvério. E alguém precisa casar pra ter filho?

– Tá bom. Deixa pra lá. Vim cuidar de outro assunto. E não é pagamento, porque não tenho um vintém. Além disso, a boca continua inchada e doendo pra danar. Nem comer direito eu consigo. Como dentista você mais parece ferrador de égua.

O dentista torceu o nariz, ignorando a comparação.

– Quer dizer que você está quebrado?

– Bota quebrado nisso. Devo mais de 100 contos de réis. Mais de 100 contos, ouviu? Os malditos impostos acabaram comigo! Por isso vim te fazer um convite. Mas é segredo, ouviu? Ninguém pode ficar sabendo. Nem essa menininha.

PROPOSTA INDECOROSA

O dentista, que adorava intriga, chamou o escravo e entregou a menina:

– Leva Joaquina pra casa da mãe dela, Onofre. E não deixe ninguém entrar. Fica lá embaixo tomando conta.

– Tem certeza de que estamos sozinhos, Joaquim? – indagou Silvério, olhando para todos os lados e debruçando-se na janela para conferir. Sim, estavam sozinhos. Então continuou, falando devagar por causa da boca inchada:

– O negócio é o seguinte. Ninguém mais aguenta pagar os impostos da coroa. Quem é grande não aguenta, quem é pequeno também não aguenta. Por isso resolvemos organizar uma revolta. O coronel Alvarenga Peixoto entra com 200 homens armados. O cabeça é o doutor Tomás António Gonzaga. Eu forneço minha tropa. Mais de 60 sujeitos, dos principais da vila, estão de acordo, só não digo os nomes. Até o tenente-coronel Francisco de Paula e outros oficiais graduados. Você topa participar?

– Mas isso é loucura. Vocês acabam presos e deportados.

– Não – respondeu Silvério. – A primeira ação será invadir o palácio e prender o governador. De imediato cortaremos a cabeça dele. Pegando nela pelos cabelos, o doutor Gonzaga fará um discurso ao povo da sacada do palácio, dizendo, entre outras coisas, que os tributos serão extintos.

– Pensando assim, até que não é má ideia. Eu topo. Não devo nada em imposto, mas topo. Estou de saco cheio desses mandões. Se todos fossem trabalhadores como você, a coisa seria outra. Mas esses aí só pensam em lucrar nas nossas costas. Satisfeito com mais uma adesão de peso, Silvério continuou:

– Ótimo. Mas não pense que ficará só espiando. Seu papel será importante. Você tem de ir pro Rio de Janeiro levantar os descontentes da Corte. Será uma revolução geral, pra unir todas as províncias. De acordo?

– De acordo. Amanhã mesmo viajo. Tenho de cuidar do projeto de canalização de água, que está adiantado. Assim, juntarei o útil ao agradável. Despediram-se com um forte aperto de mão.

ATÉ AQUI, A LENDA. DAQUI EM DIANTE, A HISTÓRIA

No dia 19 de abril, o coronel Joaquim Silvério dos Reis, assustado e temendo perder o pouquinho que ainda possuía, achou melhor denunciar a conspiração. Pensara bem e concluíra que, entregando os cabeças da revolta, teria perdoadas as dívidas e ainda poderia receber uma gorda pensão. Afinal, era português ou não era? O documento que levou ao governador, Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, redigido no dia 15 e entregue no dia 19, começa exatamente assim, com todos os cacoetes da época:

“Illm.o e Exm.o Senhor Visconde de Barbacena. Meu Snr.’ Pela forçoza Obrigaçaõ qye tenho de ser lial Vaçalo a noça AVgusta SoBrana ainda ápezar de se me tirar a Vida como logo se me protestou, na oCazião em q.’ fuy comVidado p.a a SoBleuaçaõ que se emtenta e prontamt.e paçey a por na prezença de V. Ex.ea O segt.e Em O mes de Fer.o deste prezente anno. Vindo da Reuista do meu Regimt.o emContrey no ARayal da Lage. O S. M. Luis Vas de tuledo, e falandome em que se botauaõ abaxo os Nouos Regimt.o porq.’ V. Ex.ea aSim o hauvia dito, he Verdade que eu me mostrey. çentido e queixeime de S. M. me tinha emganado, porq.’ em Nome da d.a Snr.a se me hauia dado. huma Patente. de Coronel Xefe do meu Regimt.o com o coal. me tinha desVelado em o Regular e fardar. mt.a parte á minha custta, e que naõ podia leuar á paçiençia Ver Reduzido á huã Inaçaõ todo O fruto do meu DisVelo, sem q.’ eu tiueçe faltas de Rial Çeruiço e Iuntando mais algumas palauras em dezafogo da m.a paiyxaõ.

(…)

Que a primr.a cabeça q’ se hauia cortar. hera a de V. Ex.ea e depois pegandolhe pelos cabelos se hauia fazer huã fala a O Pouo cuja Ia estaua escrita pelo d.o Gonzaga e p.a suçegar o d.o pouo se hauiaõ heuantar os tributos. e que logo se paçaria a cortar a cabeça a O OVidor. desa Villa Pedro Joze de Ar.o e a O Iscriuaõ da Iunta Carllos Ioze da S.a, O AIudante de Ordens. Ant.o Xauier porque estes hauia segir o partido de V. Ex.ea e que como o Intendente hera amigo dele d.o Gonzaga hauiaõ Ver se o Reduziaõ a segil-os. qd.o duuidaçe também se lhe cortaria a cabeça.

(…)

Sebastiao Nunes

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    1. Tiradentes, vítima de uma

      Tiradentes, vítima de uma traição, se tornou o mártir da independência. E hoje, quem são os heróis traídos pela delação premiada?

  1. Poish, poish,

    Poish, poish, Sebashttião

    nestish  surtush di d`latoresh e intreguishtash 

    abundam-si farizeush e maush-samaritanush

    na bushca incessant de se locupletarem

    se faushtarem d` ptróleo du nosso prêsall

    e quiçã doar a pátria d´bandaija

    aos seus asseclash e pâtrõesh d`além mar.

    qui antsh eram ush purtuguesesh, nossush patríciush

    hoje, a leva d`americanush estão a quereri nush butar cabresto, 

    ora poish, asseguro-ti, que nada será como d` antsh 

    tambáem os querem, os chinesesh, entre outrus povosh  amigosh. 

    somush hoje em diia, uma putância ecnômica e demucráttica 

    que há de prusperare em qpési os lampaijosh d`olhos gordosh

    dos maush samaritanush

    sorte dels não prosperar mais, cá entre no´s

    a tall inqsição que lhes butariam na fuguaeira dush traidoresh da pátria.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador