quinta, 25 de abril de 2024

Alston e a terceirizaçao das responsabilidades eticas

Prezados, encontrei um texto bem interessante no Terra Magazine, de autoria de Adriana Salles Gomes, editora-chefe da revista HSM Management onde ela comenta sobre declaraçoes da diretoria da Alston sobre o uso de consultores de vendas como intermediarios em contatos com o governo.  O texto é longo, mas vale a pena ler a analise da atitude cara de pau da empresa…

 

Por que o consultor de vendas é o novo vilão

Ao atribuir seus problemas éticos atuais aos consultores de vendas externos, a Alstom perpetua a prática ineficaz de encontrar culpados individuais para o problema em vez da de compreender e transformar o ambiente que leva a ações antiéticas; já existem modelos de processos decisórios e de medidas preventivas contra a falta de ética, basta usá-los

Esqueça o Félix da novela – aliás, ele já se converteu ao bem pelo que me contaram. A vilania do momento cabe às empresas de consultoria de vendas. A Alstom acaba de anunciar que não mais atuará com consultores de vendas, suspeitos de subornar políticos e funcionários públicos para vencer licitações governamentais.

Com a medida, a cúpula da multinacional francesa envolvida no escândalo do metrô de São Paulo declara querer reduzir o risco de trair seu código de ética. Assim a consultoria de vendas torna-se, da noite para o dia, uma vilã do calibre de empresas como AHA e Rhodes.

Você se lembra da AHA e da Rhodes? Eram as empresas que punham pessoas para costurar de 16 a 20 horas por dia, em São Paulo e em Americana respectivamente, em ambientes sem ventilação, mal iluminados e fedidos, em um trabalho semiescravo.

Elas foram as vilãs do caso Zara, em 2011, e, sabe-se lá por quê, as auditorias regulares de fornecedores feitas pela Inditex (dona da Zara) não detectaram a exploração.

Também vilã foi a chinesa Foxconn, contratada da Apple, onde houve suicídio serial de funcionários, em 2010, relacionado com condições de trabalho pavorosas (até que ela proibiu o suicídio, em 2011).

Esses scripts já estão ficando bem conhecidos: o terceirizado é o culpado porque ele não carrega a cultura ética da empresa. O que pouco se discute ainda é até que ponto o terceirizado faz o que faz sob pressão da empresa-cliente – seja pressão para reduzir custos, seja pressão para fechar vendas. E a vista grossa da empresa faz parte do pacote.

Afinal, a empresa entra na história mais como vítima do que como vilã, certo? Seu gerente tem comportamento antiético porque tinha de atingir metas que seriam inatingíveis dentro das fronteiras da ética. E essas metas só foram estabelecidas porque houve pressões dos investidores e dos consumidores.

Para não ficar atrás da concorrência, tanto nos investimentos como em faturamento, a empresa teria de fechar aquele contrato de qualquer maneira ou aumentar o lucro significativamente – as notícias sobre lucros recordes raramente discutem o modo como esses lucros são obtidos, é ou não é?

Ou o vilão é o governo? Impõe dificuldades para vender facilidade e, assim, os políticos no poder fazem caixa para financiar campanha, porque, se não aparecerem, não recebem voto dos eleitores.

Em suma, em vez do mordomo, os vilões contemporâneos são os consumidores, os investidores, os eleitores e os terceirizados. Nesse sentido, a Alstom fez um mal até pior ao culpar o terceirizado pelo acontecido.

O terceirizado é inocente? Não, é corresponsável e deve ser punido também. Só que colocar todas as fichas em vilões individuais para resolver um problema ético é inócuo como medida corretiva e, principalmente, preventiva.

Aquele filósofo polêmico com coluna semanal em um grande diário paulista nos cansa a beleza ao repetir como todo mundo é infantilizado nos dias de hoje, mas, no tratamento da falta de ética, devo admitir que ele tem sua razão. Há um contexto que alimenta isso e ignorá-lo tão acintosamente é coisa de quem ainda se guia pelos contos de fadas – ou pelas telenovelas.

O fato inegável é que quase todo mundo tem justificativas plausíveis –fora a ganância– para transgredir a ética. Ou não há uma justificativa plausível quando o policial rodoviário para seu carro na estrada e não o apreende pela falta de documento porque você lhe dá uns trocados? Você só fez isso porque tem filho pequeno e ele ardia em febre, e você precisava chegar logo em casa.

E se o policial subornado tinha um filho com leucemia que precisa tomar uma medicação caríssima todo mês e o salário mal dá para cobrir as despesas da casa?

Não adianta. Dá para ir ao infinito nas justificativas sobre o comportamento antiético individual e, por isso, ele nunca deveria ser o foco de cruzadas éticas. É uma armadilha. Só que, infelizmente, tanto a mídia quanto as empresas ainda fazem das pessoas (físicas ou jurídicas) seu foco nessas ocasiões.

JUSTICEIROS, NÃO!

Vivemos em um mundo tão cansado e farto da falta de ética que, mais e mais, idealizamos os justiceiros, já reparou? Alguém que nos lave a honra. O cinema e a TV refletem isso com perfeição, em personagens como o protagonista da série Dexter ou em todos os super-heróis da Marvel ou da DC Comics. Até Frankenstein foi transformado em justiceiro agora (e foi desfigurado! Ficou bonito e sexy! Tema para outra coluna…)

Pois algumas empresas criaram seu próprio justiceiro também, transformando o departamento de compliance em justiceiro corporativo. Pelo que chega aos meus ouvidos (e que deve ser no máximo metade do que acontece), barbaridades são cometidas contra as pessoas e sua capacidade de tomar iniciativas em nome de fazer justiça com as próprias mãos.

Não deveria ser assim, há alternativas. Punições localizadas não bastam nem no quesito ”exemplo“. A melhor resposta (até que surja outra) já existe dentro das próprias empresas, em processos e métodos. Muita gente reclama dessas fórmulas de prateleira, mas o fato é que são realmente úteis: dão os parâmetros de ação, facilitam a vida na correria do dia a dia, funcionam como um template em cima do qual se pode criar se for necessário.

Quero dar dois exemplos dessas fórmulas: a do exame ético da tomada de decisões e a da auditoria preventiva nos locais com maior potencial de falta de ética.

EXAMINANDO CADA DECISÃO

Imagine se cada decisão tomada no dia a dia empresarial, em qualquer instância, tivesse, na reta final, de passar por um escrutínio ético? E que a alta cúpula da organização realmente aceitasse como motivo legítimo para desistir de um projeto o fato de ele ser reprovado nesse escrutínio?

Já há fórmulas para isso. Entre as várias, recorro a este “modelo funcional para o processo decisório ético no ambiente corporativo”, que remonta ao final dos anos 1990, vindo de pesquisadores e professores universitários da Louisiana, dos EUA, Barron W. Wells e Nelda Spinks. É simples e continua atual.

O modelo se resume a responder a oito perguntas-chave sobre uma medida a ser tomada (antes de tomá-la):

1. Isso é verdadeiro? (Se for uma informação, ela é verdade? Se for uma ação, ela responde a uma necessidade verdadeira?)

2. É justo?

3. É moral?

4. Traz benefícios à sociedade?

5. É honesto?

6. Os outros acreditarão nisso?

7. Está dentro da lei?

8. A lei é injusta?

Sejamos francos: a maior parte das empresas, ou dos funcionários, já diria “sim” na primeira pergunta e, logicamente, abandonaria o questionamento. É isso o que acontece na vida real.

O fato é que, na gigantesca maioria das vezes, a primeira pergunta tem “não” como resposta. Quando está sob pressão, uma pessoa (ou uma empresa) tende a iludir-se rapidamente sobre uma mentira ser verdade ou sobre uma ação desnecessária ser necessária, e nem se dá ao trabalho de procurar caminhos substitutos.

Nesse modelo decisório, se a segunda questão também tiver resposta “não”, a opção (de informação ou de ação) já tem de ser descartada. Apenas se pelo menos todas as questões de número par tiverem resposta “sim” é que o questionamento deve continuar até a questão 7, que também precisa de uma resposta “sim”. Aí a medida pode ser implementada.

Ou seja, no mínimo, a medida em discussão deve ser justa, trazer benefícios à sociedade e ter credibilidade com as pessoas (não arranhando a reputação corporativa) – e a lei preferencialmente deve ser considerada injusta.

VIGIANDO ONDE MORA O MAIOR PERIGO

Em 2006, um consultor de recursos humanos apareceu em vários veículos de comunicação. Ele se chamava Ary Itnem e ninguém se deu conta que esse nome é “mentira” escrita de trás para frente.

Ele tinha uma “teoria do abraço”: as pessoas deviam abraçar-se para combater o mal estar corporativo. Mais tarde se soube que a teoria e o personagem foram inventados pelo jornalista Ricardo Kauffman, dando origem a um documentário lançado em 2010, cujo trailer está abaixo:

(O longa pode ser visto por completo aqui e inclui depoimento do jornalista Bob Fernandes, do Terra Magazine.)

A triste história do consultor Ary foi lembrada recentemente pela edição brasileira do El País. E ela é exemplar da falta de ética na comunicação. Nesse caso, foi iniciativa de Kauffman, que tinha o propósito de denunciar a fragilidade da imprensa, mas, na maioria dos casos, trata-se de empresas manipulando jornalistas para terem notícias favoráveis, como destacou o El País.

A comunicação é justamente uma das sete áreas que Barron W. Wells e Nelda Spinks identificam com maior probabilidade de que um deslize ético seja cometido e auditorias frequentes nesses ambientes (em vez de uma caçada a bruxas individuais) pelos departamentos de compliance talvez pudessem ser mais eficazes e menos danosas:

Comunicação. A ética na comunicação seria algo extremamente benéfico aos negócios, mas ela raramente é praticada, em uma daquelas tradições perniciosas que tanto nos assolam. A comunicação interna ética gera maior produtividade e idoneidade dos funcionários. A comunicação com outras empresas (fornecedoras e clientes) leva a relacionamentos com maior potencial de lucro para as partes. A comunicação ética com os consumidores possibilita desenvolver uma massa de clientes satisfeitos e lucros a longo prazo. A comunicação ética ajuda a empresa a obter o apoio e a boa vontade essenciais para sua sobrevivência e a evitar confrontos judiciais – que custam caro e arranham a reputação corporativa.

Relações com investidores. Muitas empresas têm comportamento antiético com os investidores minoritários, beneficiando controladores e executivos em detrimento deles nas mais diversas ocasiões, como vimos recentemente no caso das empresas de Eike Batista. O próprio mercado está preparando, inclusive, uma iniciativa de autorregulação, nos moldes do Conar (de publicidade), para evitar isso: o CAF (comitê de aquisições e fusões, momento em que as trapaças costumam ser mais corriqueiras).

Recursos humanos/funcionários. Discriminação na contratação e no pagamento de minorias (como mulheres, idosos etc.) estão entre as muitas práticas não éticas nesse quesito. As condiçnoes de trabalho semiescravo promovidas pelos fornecedores da Zara entram nessa lista também. O terceirizado é uma extensão da empresa. Cabe a empresa saber escolhê-los, dar-lhe condições decentes de trabalho e nutrir um bom e respeitoso relacionamento com esse fornecedor.

Publicidade. Seja feita internamente por uma house ou terceirizada a agência, a propaganda enganosa é ilegal, mas a definição de “enganosa” é vaga, em que pese as eventuais boas intenções do Conar no caso brasileiro. Não é fácil definir o ponto até o qual a propaganda pode ser ética no uso de técnicas de persuasão, mas o alcance das pressões psicológicas exercidas sobre os consumidores para que adquiram produtos supérfluos ou inacessíveis é, cada vez mais, uma questão de ética séria.

Pesquisa e desenvolvimento–Produção/segurança de produtos ou serviços. Auditorias sobre práticas empresariais antiéticas em relação à segurança de produtos ou serviços são extremamente bem-vindas, basta lembrar ocaso recente do leite com formol, entre muitos outros. O que raramente fica claro é onde deve ser traçada a linha divisória entre as medidas de segurança adequadas e aquelas desnecessárias, como lembram os professores.

Marketing/rotulação de produtos. Embora seja rara a prática de utilizar rótulos falsos, mostra-se bastante comum o emprego de rótulos enganosos.

Vendas/postura com concorrentes. É normal que as empresas tentem ganhar os clientes de seus concorrentes, uma vez que a livre competição é o sustentáculo da nossa economia. Mas, quando a competição deixa de ser justa, passa a ser antiética. Seus vendedores mentem para tomar clientes dos concorrentes? Sabotam os produtos dos rivais nos pontos de venda? Preste atenção.

ÉTICA NÃO É ROUPA PRONTA

Você não compra ética pronta em uma loja. Ela é uma roupa sob medida, de costureira ou alfaiate; tem de comprar o tecido, medir, moldar, provar várias vezes, fazer ajustes. Depois, tem de fazer a manutenção: lavar, tirar mancha, passar etc.

Ética é o caminho comprido, doloroso e difícil e, em uma organização, obrigatoriamente ambiental (não no sentido de meio ambiente, mas de ambiente de trabalho), muito mais do que individual – embora bons exemplos individuais de quem está em cima contem a favor da ética.

Se não for assim, nunca vai haver ética de verdade, só caça às bruxas promovida pelos justiceiros de plantão. E pode-se dizer que caça às bruxas também tem uma certa dose de falta de ética. Ou não?

***

PS1: Não quero sair atirando pedras na Alstom, porque isso seria caçar bruxas tal e qual, como ela está fazendo com os consultores de vendas neste momento. A empresa tem uma série de iniciativas boas de negócios, como o leitor pode conferir no site oficial, apesar de ser oficial e menos confiável — o que não deveria acontecer. (Talvez seja pelas iniciativas boas até que ela se dê a desculpa de transgredir limites, vai saber.) Mas eu, como cidadã, espero da Alstom e de qualquer outra empresa que crie um ambiente ético de verdade. Ferramentas para isso existem.

PS2: O caso Barcelona-Neymar é outro a desafiar a interpretação infantilizada dos fatos. A maioria de nós nutre admiração por ambos os personagens. Só que houve troca de dinheiro um ano e meio antes da anunciada e antes do jogo em que o Santos perdeu de 4×0 para o Barcelona. A dúvida sobre se o jogo foi entregue nunca será sanada talvez. Mas o problema é só de Neymar e Barcelona ou é de todo o ecossistema do futebol? O Tostão escreve hoje que 40% das transações são por debaixo do pano. Pular a cerca da ética é tão fácil que isso não pode depender apenas de decisões individuais caso a caso

 

Redação

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