Michael Ende: um escritor para todas as idades

Poucos brasileiros conhecem o alemão Michael Ende, embora provavelmente já tenham assistido ao filme A História Sem Fim, baseado em seu livro mais famoso. Seu nome costuma ser associado à literatura infanto-juvenil, mas a rigor Ende escreveu para todas as idades; seus livros são recheados de simbolismos e alegorias que só são plenamente compreendidas por adultos, embora divirtam bastante a garotada.

Ende é um feroz crítico da sociedade moderna, por sua padronização desumanizadora que afeta mais intensamente as crianças e os idosos, já incapazes de contribuir com mão-de-obra. O artigo abaixo, produzido pelo Grupo de Estudos Humanus, presta-lhe uma bela homenagem, explicando porque sua obra continua atual e deveria ser mais divulgada.

 

Michael Ende
Uma inteligência a serviço do bem

Por Grupo de Estudos Humanos

Um escritor? Um inventor! Um inventor de realidades fantásticas e maravilhosas, de mundos que coexistem e se entrelaçam, de dimensões mágicas que se ligam por corredores de tempo e espaço, onde a lógica não tem vez e as leis da Física não valem mais do que as da imaginação. Um arquiteto, que organiza em uma única construção uma série de mundos paralelos, cada qual com suas próprias leis, sem se esquecer de pintar seus detalhes com o primor cuidadoso de um miniaturista. Um simpático guia de viagem, que nos mostra uma paisagem de sonho, demorando-se generoso a comentar suas menores peculiaridades, mas que a qualquer momento pode nos fazer saltar inesperadamente para uma outra paisagem que está por trás da primeira, ou então abaixo, acima, ou mesmo dentro dela. Mas também um pensador  que não esquece a realidade em que vivemos todos os dias, que diagnostica seus males, seus problemas, suas contradições, ao mesmo tempo em que acena com a esperança da superação e da redenção. E, ainda, um educador que ensina as crianças brincando enquanto aprende seriamente com elas. Um advogado que alça corajosamente a voz pelos direitos da infância, e, por isso, do ser humano. Esse é Michael Ende, o escritor Michael Ende.

E que escritor! Romancista, contista, poeta, dramaturgo, libretista, roteirista e ensaísta, Ende (1929-1996) é o autor alemão de maior sucesso do pós-guerra. Suas obras foram traduzidas para mais de quarenta línguas e alcançaram uma tiragem mundial de mais de vinte milhões de exemplares. Seus romances A História sem Fim e Manu,a Menina que Sabia Ouvir foram adaptados para o cinema, atingindo relativo sucesso (especialmente A História sem Fim, filmada em três episódios, o primeiro dos quais já é um clássico). E embora tenham desagradado o autor e muitos de seus mais exigentes leitores, esses filmes dão indiscutível mostra do talento, inteligência e inventividade de Ende. Apesar de sua obra voltar-se predominantemente para o público infanto-juvenil, ele fascinou e cativou um contingente que abrange todas as faixas etárias. Mas sua mensagem tocou sobretudo os jovens, que peregrinavam de mochila nas costas em caravanas até a Casa do Unicórnio (foi assim que Ende batizou sua residência nas imediações de Roma) para ver de perto o seu escritor, coisa bem rara na literatura.

Isto tudo poderá surpreender muitos sul-americanos interessados em literatura. Alguns simplesmente desconhecerão Ende, e outros não estarão acostumados a pensar nele como um autor relevante. Treze de suas obras estão traduzidas para o português, mas não costumam freqüentar as estantes das livrarias e bibliotecas. Michael Ende deveria ser lido nas escolas primárias e discutido nas universidades. Deveria ser presença constante nos palcos, no cinema e na televisão. Deveria suscitar reflexões e debates nos campos da pedagogia, da ecologia, dos direitos humanos e da crítica da cultura em geral. Mas nada disso acontece. Por quê?

Várias razões concorrem para isso. No que toca às academias, Ende é marcado com o estigma da literatura infanto-juvenil, o que, para os narizes empinados de uma intelectualidade imatura, significa quase o mesmo que “literatura menor”, material indigno de penetrar nos santuários restritos da crítica literária. Porém, embora ele reproduza, em grande parte de seus livros (especificamente os que são dirigidos ao público infanto-juvenil), os mecanismos mágicos  da imaginação da criança e se utilize de ingredientes lúdicos, sua obra é dirigida a todas as faixas etárias, dado que é marcada pela presença constante da questão existencial.  É verdade que os adultos  têm condições de desfrutar de seus conteúdos muito mais do que as crianças, justamente por alcançarem o significado da simbologia que a permeia, a qual expressa a busca do homem pelo sentido da vida e pela transcendência.

Já no que se refere ao público infanto-juvenil, há o problema da perda do hábito da leitura. Este é um aspecto de um problema maior, que constitui um dos temas centrais das obras de Ende: o definhamento progressivo das características que distinguem estes primeiros períodos da vida humana. A cada dia mais apressados e preocupados, vivendo no ritmo dos adultos e compartilhando compulsoriamente com eles a solidão e os medos inerentes à vida das cidades contemporâneas, crianças e adolescentes simplesmente não têm mais tempo nem oportunidade de desenvolver sua capacidade de fantasiar, suas faculdades lúdicas e criativas. Vivem em uma sociedade onde tudo já está determinado e organizado milimetricamente, e onde não há mais nenhum espaço para inventar o que quer que seja. Prematura e violentamente submetidos a uma rotina massificadora e neurotizante, eles não conseguem mais suportar nada que requeira paciência. Qualquer coisa que não tenha a velocidade dos videogames lhes é irritante. Tornam-se assim incapazes de apreciar essas atividades tão antigas e distintivas da infância que são o ouvir e o ler histórias. Como então esperar que estes pobres pequenos adultos venham a empregar seu tão exíguo tempo debruçando-se sobre as páginas de Jim Knopf, Manu ou A História sem Fim? Mas deve-se notar que a literatura não seria a única forma de fazer com que o público infantil tomasse contato com a obra de Michael Ende. Como também é verdade que o nome de Ende tem estado ausente até mesmo das campanhas de incentivo à leitura, embora ele possa ser considerado como um dos escritores que mais estimularam até hoje o ato de ler, tanto pela forma como pelo conteúdo de suas obras.

Deve haver então algum motivo suplementar que possa explicar a pouca atenção que ele tem recebido entre nós. Realmente há um, e a esta altura já se pode bem atinar qual seja. Ende é um crítico da sociedade contemporânea, eis a solução do enigma. De fato, ele é um dos mais importantes críticos não só da sociedade, mas também da cultura e da civilização ocidental. Suas idéias estão em flagrante desacordo com os pseudovalores que sustentam o mundo atual. Ele defende o resgate dos verdadeiros valores, que, apesar de sumamente humanos, abalariam as estruturas das várias esferas de poder: do poder político, do econômico, do acadêmico/científico e do poder dos meios de comunicação e divulgação da cultura. E, o que é mais interessante, faz tudo isso com talento, criatividade, humor e alegria.

“Esse senhor é o fim! É uma pedra no nosso caminho e em  nossos sapatos.” Assim falariam os senhores cinzentos, os ladrões que roubam o tempo das pessoas e perseguem a pequena Manu, se Ende, com sua liberdade criativa, lhes tivesse concedido a faculdade de perceber quem estava por trás da meiga criança que sabia ouvir. Certamente fariam de tudo para impedir a circulação não só do livro do qual são personagens, mas de todos os outros de Michael Ende.

E quem garante que tais ladrões não existam de verdade? E se não é assim, então alguém responda: onde está o tempo das pessoas? E mais: onde estão os livros de Ende?

Residência de Michael Ende
em Roma, Casa do Unicórnio

Em 1971, Michael Ende muda-se para uma pequena cidade ao sul de Roma. Não foi só pelo clima aprazível, pelas belas paisagens e pela amabilidade do povo italiano que ele se instalou lá. Pesou bastante em sua decisão de fazê-lo o clima intelectual reinante nos círculos literários alemães. Vigorava então em seu país um tipo de patrulhamento ideológico semelhante ao que se verificou na América Latina na mesma época, se bem que, certamente, com menor intensidade. A crítica literária alemã media a relevância de um autor através de alguns critérios básicos: cobrava-se uma descrição realista da sociedade, a crítica social e política engajada, a reflexão sobre os movimentos e problemas populares, e coisas do gênero. Não era o ambiente em que um escritor inclinado ao fantástico e ao místico pudesse se sentir à vontade. Seus escritos eram classificados como literatura escapista e como fuga da realidade. Avesso a discussões estéreis, ele foi atraído pelo ar mais leve da Itália, e foi esse o país que viu surgir suas maiores obras-primas.

E essas obras mostram claramente a injustiça das acusações de seus colegas alemães. Pois nelas, sem renunciar ao fantástico, Ende realiza uma crítica absolutamente consistente da sociedade. De fato, ninguém mais do que ele tinha consciência da crise do mundo moderno. Porém, ao contrário do que acontecia na literatura “engajada”, não a compreendia simplesmente como crise política, social ou econômica, e sim como crise espiritual e existencial. Para Ende, a grande ameaça à civilização não eram as guerras, a miséria, os conflitos de classe ou o problema ecológico. Todos esses males eram, a seu ver, apenas resultados e manifestações visíveis de uma patologia mais profunda e mais perigosa que ele combateu incansavelmente durante toda a sua produção: a perda do sentido da vida humana, ou, como ele se expressa simbolicamente em A História sem Fim, o domínio do Nada. E como pensador atento que era, soube enxergar no materialismo científico (na falsa ciência) e no capitalismo os grandes protagonistas da diluição do sentido da existência. Toda a sua literatura pode ser lida como uma denúncia dos efeitos negativos desses dois fatores históricos sobre o espírito humano.

A ciência, no estado materialista em que ainda se encontra, havia levado a efeito aquilo que Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”, ou seja, o processo no qual o mundo perdeu pouco a pouco, aos olhos dos homens, todo o mistério e todo o encanto. O processo no qual todos os mitos e as concepções mágicas e religiosas da natureza foram sendo substituídas pela visão cientificista do mundo, baseada na suposição arrogante de que tudo o que existe pode ser perfeitamente compreendido pelo intelecto humano. Sob tal ótica, toda a poesia tende a ser eliminada da face da Terra, assim como o sentimento do sublime e a esperança de uma relação do homem com algo maior do qual ele faz parte. Estes, porém, são os sentimentos mais caros ao ser humano, e os que sempre haviam dado um significado à sua existência. Sem eles, a vida se torna insípida e quase que um fardo.

O desencantamento do mundo é o que faz da ciência um tema constante na obra de Ende. O escritor estende a crítica que faz à  ciência também aos sistemas filosóficos e, em geral, a todas as criações do intelecto humano, com suas ridículas pretensões ao saber absoluto. Esse traço de sua obra pode ser encontrado sobretudo em sua produção destinada ao público adulto. Especialmente nas coletâneas de contos O Espelho no Espelho e A Prisão da Liberdade (vide nas págs. 98-103 deste anuário o conto A prisão da Liberdade, que faz parte do segundo livro mencionado), nas quais a sátira e o humor levemente sarcástico são às vezes utilizados para desmascarar o embuste cientificista e intelectual. Mas há também suas palestras, entrevistas e colóquios, nos quais o tema é tratado de forma mais objetiva. É particularmente feliz nesse aspecto a série de vídeos intitulada O Romance de Einstein (Einstein Roman), produzida em colaboração com a TV japonesa, na qual a figura de Einstein é utilizada como símbolo da ciência e da visão cientificista de mundo, bem como de seus perigos.

Quanto ao capitalismo, a crítica de Ende se concentra na mecanização do ser humano. O capitalismo impôs a toda a sociedade o ritmo frenético da produção industrial, sempre acelerado pela corrida tecnológica e pela competição. Submissos ao movimento inexorável dos ponteiros do relógio, assim como os remadores das galés o eram aos golpes surdos do tambor, os homens da era capitalista foram obrigados a cronometrar e planejar todas as suas ações com uma precisão que só se pode esperar de máquinas. E isso já se incorporou de tal forma às suas vidas que consideram qualquer ação que não se enquadre no rígido planejamento pragmático como um absurdo. Mesmo quando seus corpos param, suas mentes continuam girando no movimento inercial das preocupações e das incertezas. É como se houvessem entrado, não se sabe como nem porquê, numa ciranda vertiginosa e caótica, que a cada dia gira mais rápido e ninguém sabe como parar. E ninguém se atreve a parar por conta própria, com medo de ser arrastado e pisoteado pela massa em movimento. O resultado é um homem que não pode dispor de seu tempo, o que significa dizer que não possui mais seu próprio tempo. Mas a lição de Manu é a de que o tempo não é algo separado da vida, algo que se possa armazenar, poupar ou gastar, como o dinheiro. O tempo é a própria substância da vida, que não pode existir senão nele. Por isso, o homem que não dispõe de seu tempo se aliena de sua vida, permite que ela se lhe escoe pelas mãos, perdendo de vista o significado.

Também concernentes ao capitalismo são as críticas de Ende ao consumismo, ao culto ao dinheiro e à especulação financeira como forma de escravização. Todos estes temas são abordados com maestria literária em várias obras, especialmente em Manu, a Menina que Sabia Ouvir (sobre o consumismo, vale lembrar o trecho no qual um homem cinzento tenta cooptar a protagonista através da “boneca perfeita”), também em O Espelho no Espelho (o conto da catedral do dinheiro, por exemplo) e em A Prisão da Liberdade (As Catacumbas de Misraim).

Fantasia: a chave do real

Apesar de seu posicionamento em relação ao capitalismo, Michael Ende se distancia diametralmente do discurso esquerdista. Em primeiro lugar, porque não é exatamente o capitalismo – e tampouco a ciência – o que ele combate, mas sim a perda do sentido da vida humana. Cientificismo e capitalismo são apenas fatores históricos que aceleraram o agravamento do problema existencial humano. Em segundo lugar, porque considera que a transformação da sociedade tem de ser precedida por uma regeneração interior do indivíduo, equivalente à redescoberta do sentido da existência.

Em sua obra, Ende demonstra possuir a convicção de que este sentido deve ser buscado no interior do espírito humano, pois pressente que ali devem existir riquezas inestimavelmente valiosas que, apesar de sufocadas e fortemente reprimidas pelo desencantamento e pela mecanização, não foram corrompidas por sua ação, conservando-se ainda intactas, à espera de algum intrépido caçador de tesouros que as quisesse resgatar. Desde o início de sua produção, Ende percebeu instintivamente que seu caminho artístico era o de realizar esse resgate a fim de extrair do íntimo do ser humano os elementos que pudessem restituir o sentido à vida.

Nesse caminho ele certamente precisou sempre perscrutar seu próprio interior. Mas isso não era suficiente. Era ainda necessário encontrar os meios expressivos que possibilitassem a simbolização da riqueza interior, de modo que os símbolos assim criados pudessem servir de pistas para o itinerário que o leitor teria de fazer, por sua vez, dentro de si mesmo. Foi essa necessidade  que tanto o aproximou do surrealismo, que conheceu através do pintor Edgar Ende, seu pai; e, mais tarde, da literatura fantástica (Jorge Luís Borges e Kafka são claríssimas influências no estilo literário de sua obra “adulta”, assim como Tolkien o é em sua obra infanto-juvenil). Freqüentemente se comenta a ligação de Ende a essas escolas, e às vezes corre-se o risco de esquecer que o autor perseguia nelas, essencialmente, apenas os meios de expressão para idéias e conteúdos marcantemente próprios.

O que ele chama de “fantasia” não é outra coisa senão essa arte de expressar e compreender os conteúdos profundos da alma humana através de símbolos. Ele sabia muito bem que isso não era invenção sua, mas uma faculdade tão antiga quanto o homem. Os povos primitivos, quando criavam seus mitos, utilizavam a fantasia, assim como os místicos (Ende estudou Jakob Böhme, cabala, budismo e zen), os poetas e artistas em geral (“Fantasia foi criada por todos os artistas”, disse Ende, referindo-se ao mundo encantado de A História sem Fim) e também as crianças, com os jogos e invenções de sua espontaneidade criativa.

Vê-se então que “fantasia”, em Ende, não é fuga da realidade, mas sim descoberta e revelação de uma realidade mais essencial que permanecia oculta. Essa nova dimensão do real não é buscada em detrimento da realidade cotidiana, mas em seu benefício. Ao recorrer à fantasia, Ende não quer fugir do mundo, mas melhorá-lo. É ele mesmo que explica: “O reino mágico do imaginário é a própria Fantasia, à qual é preciso viajar para tornar-se vidente. Então pode-se voltar à realidade exterior com uma consciência transformada, e transformar essa realidade, ou pelo menos vê-la e vivê-la de maneira nova”.

A boa poesia, disse Ende, transforma o mundo. Num momento em que a literatura tantas vezes escolhe o niilismo ou o sarcasmo como a última saída, e em que a arte como um todo parece se resignar a decair no mero esteticismo, vale a pena prestar atenção a essa afirmação. Ela pertence à consciência dos que realmente compreendem a essência do fazer artístico.

Continua em http://www.geh.com.br/artigos/ende.html

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