Música colonial em Minas Gerais: o século XVIII

Aspectos históricos, culturais e sociológicos. Não são contemplados aspectos técnicos da música.

O séc. XVIII, nas Minas Gerais, foi o período mais importante da história da música colonial brasileira. A música aí atingiu níveis estéticos, de criação e execução, e de volume de produção, inacreditáveis para a época e condições culturais que imperavam no Brasil.

Por incrível que pareça, esse universo musical era desconhecido dos brasileiros até 1944, quando foi descoberto por Francisco Curt Lange, um musicólogo alemão naturalizado uruguaio, que pesquisava a música colonial do Brasil. Com ele foram se revelando as atividades musicais de um século de história da música brasileira, justamente aquele período mais significativo e intrigante, ligado a mudanças sociais, econômicas e políticas.

Naturalmente o fator econômico decorrente da riqueza das minas de ouro e diamantes foi um dos determinantes desse desenvolvimento musical extraordinário. Mas isso não explica o fenômeno em toda a sua extensão. Bahia e Pernambuco também foram poderosas economicamente e tiveram vida musical expressiva, mas muito aquém do que ocorreu nas Minas Gerais.

Eis o testemunho de Saint-Hilaire, em sua obra Voyage dans les Provinces de R . Janeiro e Minas Gerais : “…e celebrou-se na igreja paroquial da Vila do Príncipe, uma missa com música, à qual assistiram, com grande toillete as pessoas as mais distintas da cidade. Os músicos,  todos habitantes do País, estavam postos numa tribuna e o povo não tomava parte nos cantos. A música convinha à santidade do lugar como também à solenidade da festa e foi perfeitamente executada. Diversos cantores tinham uma voz calorosa, e duvido que, em alguma cidade do norte da França, de semelhante população, se executasse uma missa com música tão bem como essa.” (Kiefer, p. 31)

É necessário recorrer à história de Minas Gerais e examinar os aspectos históricos e sociológicos, isto é, a formação dessa sociedade onde ocorreram os fenômenos musicais, para tentar entender esse desenvolvimento surpreendente. Vamos nos reportar aos tempos iniciais da povoação da então Província das Minas Gerais, pertencente à Capitania de S. Paulo e Minas.

No séc. XVII, bandeirantes paulistas descobriram as jazidas de ouro na região. No final do século já se iniciou o povoamento, primeiro com paulistas e depois com baianos, pernambucanos e reinóis.

Os paulistas consideravam-se os donos da terra.

A mineração se dava em três zonas: do Rio das Mortes cujo centro era S. João d’El Rey; a de Vila Rica e Mariana; a do Rio das Velhas, com centros em Sabará e Caeté. Isto significa que haveria posteriormente vida musical intensa nesses locais.

Não há nada que possa dar idéia  do alvoroço geral que a divulgação da descoberta das minas causou. A notícia  se espalhou por todo o Brasil e pelo Reino de Portugal e as migrações em massa tornaram-se espantosas. Acorreram pessoas das cidades, das vilas, do sertão; eram brancos, mulatos, mamelucos, negros, índios; moços e velhos, pobres e ricos, plebeus e aristocráticos, clérigos.

É fácil imaginar o que daria aquele aglomerado humano, em seu delírio de riqueza, afastado do mundo, longe da autoridade oficial. A vida era conturbada, a ambição causava desentendimentos, a convivência era difícil.

Enquanto os paulistas defendiam as minas como seu patrimônio exclusivo, por terem sido os descobridores, os forasteiros – chamados de emboabas – entravam com eles em competição acirrada. Quando se sentiram bastante fortes em armas e número, não hesitaram em se levantar unidos para garantirem pela força os seus direitos ( ou não).

Desde 1706 havia animosidade cerscente entre os dois grupos, os paulistas e os emboabas .O enfrentamento era inevitável e bastariam pequenos incidentes para precipitar os fatos.

Incidentes: em Caeté, no domingo à porta da igreja, dois paulistas poderosos esperavam a missa quando passou um forasteiro armado com espingarda à tiracolo, em atitude de provocação. Os paulistas quiseram tomar-lhe a arma e houve reação. Estava armado o conflito. Logo após é morto um paulista, em sua própria casa, onde acoitava o  assassino de um forasteiro. As hostilidades chegarem ao extremo da guerra: a Guerra dos Emboabas.

Em 1709 termina a guerra com a derrota dos paulistas.

Para se entender o desenvolvimento cultural e social das Minas Gerais é preciso considerar a importância dos emboabas na formação da mentalidade do povo mineiro.

Esse povo estava apenas se formando, mas era orientado por um sentido de independência e democracia. Eram mineradores e comerciantes, portugueses, pernambucanos e baianos (a maioria), um grupo social novo, uma força emergente que se opunha aos bandeirantes.

Em Minas houve uma grande mudança: trocou-se a atividade econômica rural e agrária, e o regime latifundiário, como na Bahia e Pernambuco, por uma economia urbana e mercantilista,  de comércio. Não havia a aristocracia rural, isto é, o  grande senhor dono de infindáveis levas de terras, uma especie de feudo. A sociedade habitava cidades, em convivência; desenvolvia-se o comércio, a cultura. Houve até exagero pois nem a agricultura de sobrevivência foi atendida.

Minas Gerais viu então desenvolver-se uma classe média urbana, independente, democrática e que influenciou a formação política e cultural. Uma classe trabalhadora e não servil, contrária ao autoritarismo e ao preconceito de nobreza sanguínea. A cidade começava a ter função de cidade mesmo, inclusive com a divisão progressiva de trabalho, coisa extraordinária no regime colonial, dando origem a profissões diversas e ao corporativismo profissional.

No terreno da música, por exemplo, os compositores trabalhavam para as Irmandades, para as corporações de ofícios e para o Senado da Câmara – instituições que contratavam compositores, pagavam e exigiam música de boa qualidade, dando sustentação financeira à música mineira. Foi um tempo em que a música prestava seviço a corpos intermediários, não estava a serviço do rei.

Esta sociedade estava imbuída do espírito do Iluminismo, cujas ideias chegavam a Minas Gerais trazidas pelos jovens que iam estudar em Portugal ou outro país europeu, a exemplo de Cláudio Manuel da Costa. A influência foi tão intensa que fomentou a Conjuração Mineira.

Na história da Capitania das Minas Gerais, em 1720 ela  havia sido  desmembrada da Capitania de S. Paulo e Minas. No ano seguinte fora instalado oficialmente o primeiro governo com sede em Vila Rica, hoje Ouro Preto. Em 1728 ocorrera a descoberta das jazidas de diamantes  em local distante, mais ao norte da Capitania. Fundara-se aí o arraial do Tejuco, hoje Diamantina,  centro musical da maior importância. (Bruno Kiefer, História da Música Brasileira)

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        Notas sobre o Iluminismo: filosofia do séc. XVIII que inaugura as principais vertentes do pensamento moderno. O avanço da ciência garante que todos os problemas serão elucidados, esclarecidos, iluminados. Suprime-se a submissão à autoridade, instala-se a primazia da razão, das luzes.

No plano político e social, representa as bases para a defesa da liberdade e igualdade entre os homens. É abolido o sentido medieval de mistério e misticismo que envolvia a visão de mundo. A verdade é obra do homem. O que torna legítimo o conhecimento é a evidência, inteligível ou sensível, e não a autoridade. Começa com o racionalismo de Déscartes que reduz o conhecimento científico a idéias claras e distintas, sob inspiração das matemáticas.  E vale-se do empirismo inglês, de Francis Bacon que afirma que todas as idéias originam-se na experiência sensível. Nada há no intelecto que antes não passe pelos sentidos. Estas duas linhas são formadoras do Iluminismo.

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Francisco Curt Lange, pesquisando documentos antigos, descobriu número impressionante de músicos profissionais em Minas Gerais no séc. XVIII; só em Vila Rica, cerca de 250, em documentação a que teve acesso. 

De onde teriam vindo esses músicos profissionais?  Como, em pleno sertão surge uma vasta escola de elevada eficiência profissional e mais ainda, com uma abundante produção que segue, toda ela, as tendências estilísticas da música contemporânea européia?

F.C.Lange considera primeiro a possibilidade de procedência de S. Paulo e Rio de Janeiro, mais próximos das Minas  Gerais, mas dado ao escasso desenvolvimento cultural e insignificância desses centros na época, descarta a possibilidade.

Restam duas hipóteses: a vinda de Portugal e de centros culturais brasileiros mais adiantados então: Bahia e Pernambuco.

Outro dado deve ser incorporado à pesquisa: a presença, em larga escala, do mulato livre como músico profissional. Estes são tão numerosos que excluem a hipótese de Portugal.

Por que só os mulatos? Não teriam os negros participado também?

Porque os mulatos livres eram emancipados e buscavam sua ascenção social dedicando-se a determinados ofícios, às artes e, principalmente, à música; ofereciam os seus serviços sem interferências de terceiros. Aos negros não foi possível essa emancipação porque, quando treinados para o exercício da música, com a finalidade de integrar  coro e orquestras dos seus ricos senhores, o faziam na condição de escravos. Eram até alugados para serviços externos, trazendo lucros aos senhores. Mas eram propriedades, peças, não tinham  autonomia nem categoria social.

E a participação do clero no desenvolvimento musical de Minas?

Pesquisas de C. Lange apontam a participação de padres-músicos na vida musical de Pernambuco e Bahia no período anterior ao ciclo do ouro. Na migração para a região mineira, no início do séc. XVIII houve, talvez, padres-músicos mas dominavam os leigos. Registros de Vila Rica, ainda acessíveis, mencionam alguns padres contra número notavelmente superior de músicos leigos.Os vestígios da organização musical na sua origem indicam a iniciativa particular, independente, com músicos livres, portugueses primeiro, mas logo suplantados por brasileiros.

Importante na iniciativa particular foi o ensino da música. O sistema de ensino correspondia aos Conservatórios da  tradição européia – as Casas dos Mestres da Música- que hospedavam os aprendizes, forneciam vestimentas, alimentação e estudo. Depois colocavam-nos, de acordo com as aptidões, em atividades musicais públicas ou privadas, profissionalizando-os. Eles tornavam-se aptos a trabalhar para organizações como Irmandades ou o Senado da Câmara, por simples chamada ou por contrato prévio. Os mestres, formados em latim, teoria e prática musical e a maioria também em composição, transformavam estes meninos, em poucos anos, em excelentes músicos.
(…)

http://pianomusici.blogspot.com.br/2013/07/musica-colonial-em-minas-gerais-o.html

Moteto atribuído ao compositor mineiro Manoel Dias de Oliveira (1734/5-1813).

 

Redação

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