Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
[email protected]

O Brasil que emerge

Por Ion de Andrade

A instabilidade política em que foi mergulhado o Brasil dá sinais de ir ficando para trás. As diversas tentativas golpistas fracassaram umas atrás das outras. A greve dos caminhoneiros desse mês de novembro foi um grande chabú e as manifestações do dia 15 revelaram total descrédito nos diversos movimentos de extrema direita que mobilizaram para as ruas.

Muitas vezes como voz isolada, antevi esse cenário em alguns artigos como “O fim apoteótico da aristocracia joanina” ou “Uma direita fraca a caminho de uma derrota histórica”.

A verdade é que, apesar de termos uma elite golpista e uma democracia jovem, o Brasil, por assim dizer, ficou maior do que o buraco golpista.

Isso é muito importante no plano do nosso amadurecimento institucional, como também no nosso tão difícil e sofrido processo civilizatório.

Mas os problemas estruturais que criam uma sociedade assimétrica e senhorial continuam presentes, apesar dos avanços ocorridos, que, ao fim e ao cabo foram a grande razão pela qual a nau da democracia não foi a pique.

Há dois aspectos a serem considerados no cenário que se descortina á frente.

O primeiro é eleitoral. As eleições municipais de 2016 estarão preenchidas de um sentido plebiscitário, não entre os que estão contra ou a favor do governo, mas entre os que estão contra ou a favor do projeto de sociedade que vem sendo construído no Brasil por um esforço hercúleo do seu povo ao longo dos últimos 50 anos. Sim, pois há um contínuo entre as lutas pela redemocratização e os dias atuais. É bom contextualizarmos isso, particularmente nessas eleições pelo fato de que as conquistas que tivemos na era Lula/Dilma foram maturadas antes deles. O que construímos é portanto, o espelho invertido da ditadura: tudo o que a ditadura não foi, plural, tolerante, inclusivo, democrático, etc. A ditadura funcionou para nós como o fascismo funcionou na Europa do pós guerra. Um modelo claro e transparente do que ninguém queria. Então, com um olhar abrangente, as eleições de 2016 devem ser o momento de fazer vencer os valores norteadores das lutas democratizantes que guiaram nossos pais e a nós desde os anos de chumbo. Esse enfoque favorece o entendimento das alianças que devem ser forjadas e do patrimônio político que deve ser defendido. Penso que a Frente Brasil Popular, (FBP) terá papel relevante ao ter conseguido compor uma plataforma da qual fazem parte os democratas autênticos, a esquerda e os movimentos sociais. Esse polo precisa, portanto, representar o leito histórico das lutas travadas ao longo desse meio século e deve esforçar-se para não somente incluir o PT e o governo, como também para ser maior que a herança petista. As eleições plebiscitárias de 2016 serão a arena onde se confrontarão o modelo velho do autoritarismo e a democracia que ainda construímos. Mais velho nos campos da política o PC do B parece manejar melhor essas complexas variáveis que escapam à juventude do PT.

O segundo aspecto é “estrutural” no sentido de que não é conjuntural com são as eleições que viveremos em 2016.

Vamos entender que a nossa democracia só sobreviveu em virtude do grau de emancipação e de cidadania existentes no Brasil contemporâneo. Foi diferente no Egito ou na Ucrânia, submetidos ao mesmo arco de alianças que aqui também tentou derrubar o governo. Em outras palavras, os anos Lula, e anterior a ele, os movimentos sociais alimentados de ideais libertários, cultivados na sementeira das lutas contra a ditadura, forjaram uma maturidade no seio dos trabalhadores e da cidadania que foi suficiente para assegurar a estabilidade do Estado de direito. Poderíamos acrescentar a isso o outro argumento, defendido por João Pedro Stedile de que, frente ao golpe, a direita também estava e ainda está dividida. Porém, uma coisa e a outra coisa, são pratos da mesma balança, ou seja, parte da divisão da direita se deveu ao grau de emancipação do nosso povo, dos custos embutidos por isto no golpe, assim como no fato de que a emancipação no seu aspecto material interessa a uma certa burguesia pecaminosa que lucra quando o proletariado prospera, fenômeno aliás que nos obriga a uma aprofundada reflexão. Os setores da outra burguesia aliás a denominam de “burguesia petista”1.

Então a questão estratégica que deve ser respondida por aqueles que desejam ver prosperar a democracia e vê-la avançar para etapas cada vez mais abrangentes e profundas é: “o que fazer para continuar o processo de emancipação do nosso povo?”, aliás o único protagonista disso tudo.

Antes de concluir um breve diagnóstico: os governos Lula/Dilma enfrentaram e venceram os desafios da pobreza e da miséria, cuja erradicação ainda não foi concluída. Esse processo foi além ao consolidar as políticas de equidade, cujos resultados estão apenas engatinhando, pois continuamos como uma sociedade profundamente desigual.

Esse foi o projeto visceral da Era Lula.

A fase que se abre é a que vai além dessa. E o que é que vai além da fome e da equidade? A vida interior ou espiritual, sede dos significados, locus onde os avanços materiais ganham significado político, ético e estético. A vida em abundância, a humanização do homem. isso exigirá uma rede robusta e variada de equipamentos sociais públicos onde o nosso povo poderá dar alcance às suas potencialidades humanas.

Aqui em Natal estamos com uma obra da Copa ainda não construída, na área da mobilidade, prevista para uma das grandes avenidas da cidade. Para ela há recursos disponíveis da ordem de R$300.000.000 (trezentos milhões de reais).

As discussões que os movimentos sociais iniciarão na próxima semana tocam ao uso desses recursos. Provavelmente se posicionarão em favor de uma consulta à cidade: numa obra de trezentos milhões ou cem obras de três milhões?

Se tivermos êxito nessa luta teremos disparado, juntamente com Haddad em São Paulo, a continuidade do processo democrático, includente e emancipatório dessa segunda fase. A ideia é a de fazer chegar ao nosso povo não mais “apenas” (não é pouco) renda e melhoria das condições de sobrevivência, mas o acesso a equipamentos sociais de primeira grandeza para a cultura, o esporte o lazer e a dignidade, o acesso à contemporaneidade em todas as suas dimensões..

Esse é o projeto visceral dessa segunda fase. Se está acessível a Natal, mais ainda a todo o Brasil.

1 Essa fragmentação da burguesia é um fenômeno novo no Brasil e que decorre do ganho de importância do mercado consumidor e do aumento exponencial das encomendas públicas, ele abre a inusitada possibilidade de que o proletariado possa ser hegemônico não somente no contexto das classes subalternas e exploradas, mas também sobre uma fração da burguesia que lucra com a prosperidade e a emancipação do proletariado, processo esse que, não pode ficar nas mãos da própria burguesia, ou se converte em consumismo, mas deve ter propósito, ser consciente e ativo, para que se converta em mais liberdade interior, mais autoconfiança e mais identidade política para o nosso povo. Dizia Gramsci que antes de tornar-se dominante (sobre a burguesia) o proletariado deveria ser classe hegemônica (sobre as outras classes subalternas). Entenda-se hegemonia como o processo pelo qual o projeto do proletariado vai sendo enxergado pelas demais classes exploradas como seu e não o processo de imposição unilateral de uma proposta. O que é inusitado é que, ao dominar parcelas do poder do Estado e ter proposta econômica, o proletariado possa  disputar a hegemonia também sobre frações importantes da própria burguesia… Imaginemos o que seria se o fizesse de forma consciente.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

6 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Perdão, mas este texto é de

    Perdão, mas este texto é de que época? Seu autor é contemporaneo de Karl? Mas acerta ao dizer que as eleições serão plebiscitarias :  PT (in)

                             PT (out)

                           

  2. Contestar a hegemonia do capital financeiro

    A exemplo do que está a ocorrer na Rússia, a igreja ortodoxa russa tem uma proposta financeira semelhante àquela das finanças islâmicas, cujo ponto central é o combate à usura. Muitos “moderninhos” supõe que isso é uma excrescência histórica, porém, examinada com mais cuidado tal proposta deságua no conceito de moeda soberana, a serviço dos interesses da nação, ao invés de a serviço de um capital financeiro hipertrofiado, cada vez mais predatório e contrário a todos os outros reivindicados pelos demais mortais. Ver: http://journal-neo.org/2015/11/22/russia-debates-unorthodox-orthodox-financial-alternative/

    Gostaria de ver o conceito de “hegemonia crescente do proletariado”, acima aludido, avançar nessa discussão também aqui no Brasil.

  3. Patético. O texto parece ter

    Patético. O texto parece ter um século de idade!

    “…a emancipação no seu aspecto material interessa a uma certa burguesia pecaminosa que lucra quando o proletariado prospera, fenômeno aliás que nos obriga a uma aprofundada reflexão.”

    Não sei se choro de pena dessa gente ou fico atemorizado com o que querem fazer com nosso país…

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador