O Racionamento Noturno da Água em São Paulo em Números

O Racionamento Noturno da Água em São Paulo em Números – Uma Hipótese

No último dia 07, redigi um post (https://jornalggn.com.br/fora-pauta/crise-da-agua-admissao-do-racionamento-noturno-pela-sabesp) em que apresentava aquilo que poderia ser a admissão por parte da SABESP – pela primeira vez desde o início da crise da água em São Paulo – que, de fato, realiza uma espécie de racionamento noturno, sem avisar os cidadãos que são abastecidos pelo Sistema Cantareira. Até então, a empresa argumentava que a redução da pressão da água distribuída ocorria em razão de “manobras operacionais”, que ocorriam em razão de procedimentos de transferência de vazões de outros sistemas de produção para parte da população. Na notícia do Estadão do último domingo, no entanto, essa diminuição da pressão da água (que repercute, conforme tantos relatos, em torneiras vazias de milhares de casas ao longo da madrugada) surgiu pela primeira vez como aquilo que chamei de “solução sábia de gestão” (já que foi tratada como uma medida consciente de economia de água, conjuntamente com outras iniciativas), naquilo que constituiu uma peculiar modulação do discurso da companhia. Nos demais dias da semana, contudo, outras matérias contiveram o retorno das negativas da SABESP a respeito da realização de qualquer espécie de rodízio ou racionamento de água. Tudo não teria passado, então, de um ato falho do repórter – ou, mais propriamente, do texto “press-release” publicado.

Infelizmente, os dados disponibilizados aos cidadãos – e a todos, em geral, desejosos de realizarem controle social – não possibilitam que se chegue a conclusões a respeito do que estaria ocorrendo. Os dados apresentados pela SABESP e mesmo os mais detalhados, da Sala de Situação da Agência Nacional de Águas (ANA) não são específicos o bastante. Entretanto, após pesquisar a respeito da existência de um sistema de telemetria do Cantareira (previsto no Planejamento contido na Outorga de 2004), cheguei até o Sistema de Alerta de Inundações de São Paulo (SAISP), desenvolvido pela Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica da Escola Politécnica da USP, sob demanda do DAEE. Esse sistema é conhecido por fornecer dados sobre alertas de chuvas e inundações em rios, mas na verdade ele também apresenta uma série de outros dados a respeito da vazão de rios e de cotas de barragens. Pouco conhecido pelo público em geral, pode ser acessado (em sua versão pública), por meio do seguinte link: http://www.saisp.br/geral/logon.jsp?userid=Publico

Pois bem. O Sistema Cantareira, como sabemos, funciona por gravidade, por meio da transferência de água por um conjunto de reservatórios (a figura abaixo é esclarecedora): do Jaguari-Jacareí para o Cachoeira, deste para o Atibainha, deste para o Paiva Castro. Daí, a água é elevada, por razões topográficas, por meio da Estação Elevatória Santa Inês, e chega até a Barragem de Águas Claras, última parada antes da Estação de Tratamento Guaraú, que, então, distribui a água para a Grande São Paulo. De fato, do ponto de vista da capacidade de armazenamento, apenas os três primeiros reservatórios são efetivamente relevantes (sendo que o Jaguari-Jacareí, sozinho, é responsável por 82% da capacidade do Sistema) – esses três, juntos, formam o chamado Sistema Equivalente, que é o “coração” do Cantareira. A imensa maioria do esforço de transparência dos órgãos públicos tem se centrado nessas unidades. E a análise da vazão de transferência de cada túnel não nos possibilita fazer qualquer inferência sobre a existência, ou não, de racionamento – apenas nos permite compreender qual represa, em um dado momento, está sendo preservada.

Fonte: Dados de Referência do Sistema Cantareira (2013, DAEE)

No SAISP, entretanto, temos mais informações sobre o “final” desse trajeto percorrido pela água até que ela venha a ser, de fato, distribuída. O Reservatório de Águas Claras é, de longe, a menor unidade de todas. Sua capacidade é de “apenas” cerca de 1 bilhão de litros (o Jaguari-Jacareí, p.ex., tem mais de 1 trilhão de litros, mil vezes mais, se contarmos o volume morto). Essa quantidade de água, para se ter uma ideia, significa apenas pouco mais de “meio dia” de consumo por parte dos 9 milhões de usuários da Grande São Paulo. Ele funciona, então, como uma espécie de tanque, que reserva a água que vai passar pela ETA Guaraú. Hoje, a SABESP está autorizada a distribuir uma vazão média de 19,7 metros cúbicos por segundo, o que significa, em 24 horas, algo como 1,7 bilhão de litros de água.

Analisando o comportamento da cota desse pequeno reservatório para os últimos meses, notei um padrão curioso: em todos os dias, sem exceção, ele varia de forma bastante similar. Os dados estão indisponíveis para os últimos dias, mas se observarmos a semana passada, temos que, por volta das 4, 5 da manhã, o reservatório atinge sua cota máxima – em outras palavras, está totalmente cheio. A partir de então, é consideravelmente esvaziado ao longo do dia, ficando pelo menos um metro abaixo da cota máxima por volta das 20 horas, quando, então, enche novamente até o topo. Parece algo trivial, mas vale dizer, de pronto, que esse fenômeno não é notado, por exemplo, no Reservatório Paiva Castro – o segundo menor, cerca de sete vezes maior do que o Águas Claras. Na verdade, ele varia muito pouco: apenas alguns poucos centímetros ao longo do dia. É só consultar o sistema.

Águas Claras, 11 a 13 de Julho (SAISP)

A figura acima atesta a observação. Para que se tenha uma ideia, considerando-se que o reservatório possui cerca de dez metros de “altura” (a distância entre sua capacidade mínima e máxima, expressa por meio de uma cota em metros), cada metro a menos significa cerca de 100 milhões de litros que não estão sendo enviados “adiante”. O raciocínio é simples: se a vazão de transferência é mantida ou, ainda, se é mantido uma mesma correlação de vazões entre os túneis (nós temos os valores diários da saída do Paiva Castro e em “tempo real” para o T5 – de Atibainha para esse reservatório –, mas não do Paiva Castro para o Águas Claras; podemos apenas inferir com base na variação das cotas), a curva da cota do reservatório manterá um mesmo padrão (salvo chuvas) – ele se manterá no mesmo nível, ou subirá ou descerá de acordo com uma inclinação observável (enche ou esvazia de forma “previsível”, conforme notamos na figura). Quando essa inclinação muda, temos necessariamente uma expressiva mudança de vazão.

Se assumirmos que a SABESP tem que manter uma média de saída de 19,7 metros cúbicos ao longo do dia e há dois padrões claros de preenchimento do reservatório – um das 4 hs da manhã até as 20 hs da noite e outro no período restante, e verificamos, conforme a figura, que o reservatório ficou, ao final dessas 6 hs do período da madrugada algo como 125 milhões de litros mais cheio (já que sua cota subiu 1,25 metros) – então há, de fato, uma redução significativa da vazão de saída do Cantareira durante a noite. Sem a pretensão de ser rigidamente acurado no cálculo, podemos ver de quanto é a diminuição da seguinte maneira: 1) Se a vazão, nessas seis horas, fosse mantida em 19,7 metros cúbicos, teríamos, ao final, um dispêndio de água de 19,7 x 60 segundos x 60 minutos x 6 horas = 425,52 milhões de litros. 2) Mas, se ocorre a “economia” de aproximadamente 125 milhões de litros, então temos 425,52-125 = aproximadamente 300 milhões de litros efetivamente enviados. 3) A estipulação da vazão nesse período, então, pode ser feita por meio da inversão do cálculo visto em “1”: 300 milhões / 6 horas / 60 minutos / 60 segundos = 13,88 metros cúbicos por segundo. 4) Fazendo o cálculo para termos uma ideia de qual é a vazão no resto do dia (das 4 hs da manhã até as 20 hs da noite), chegamos a 21,64 metros cúbicos por segundo.

O que essa diferença significa, caso a hipótese esteja correta: ora, a SABESP pode até não “cortar” a água, mas ela reduz incrivelmente a vazão da água durante a madrugada, e já a partir de um patamar consideravelmente baixo. Se pensarmos que a vazão típica antes da declaração da crise era de 31 metros cúbicos por segundo, a vazão à noite representa apenas 44,7% desse valor! E, com relação ao observado no resto do dia, a queda é de quase 36%. Só para se ter uma ideia, um padrão básico de racionamento, adotado historicamente em São Paulo, é de 2 dias com água e 1 dia sem (o chamado 48 x 24). Em termos de vazão, caso adotemos a referência de 31 metros por segundo para uma situação normal, o racionamento proposto (com esse corte de água de 24 horas a cada 48 horas com abastecimento padrão) significa uma vazão “média” de 20,66 metros cúbicos por segundo. E, mesmo se conjecturarmos sobre o modelo mais radical de racionamento (o 36 por 36, isto é, um dia e meio com água e um dia e meio sem), chegaremos a uma vazão nominal média de 15,5 metros cúbicos por segundo, valor 11,67% superior à vazão disponibilizada às madrugadas hoje em dia. Em síntese, o que ocorre hoje, evidentemente, já constitui um racionamento extremamente rigoroso, com a diferença de que, nominalmente, não há corte de água, mas a vazão noturna é tão reprimida que faz com que a água simplesmente não chegue até milhares de residências da Grande São Paulo todas as noites, conforme tantos e tantos testemunhos. Um quadro síntese do apresentado neste parágrafo pode ser visto abaixo:

Se observarmos o comportamento da curva da cota do Reservatório de Águas Claras nos meses anteriores, eventualmente teremos insumos para que o argumento apresentado aqui como hipótese venha a ganhar força. Isso porque, salvo pequenas exceções (como as fortes precipitações que ocorreram, p.ex., em 31 de Março), esse padrão observado mais acima pode ser invariavelmente notado em todas as semanas até o intervalo entre 4 e 8 de Fevereiro, conforme a figura abaixo:

Águas Claras, 4 a 8 de Fevereiro

Comparando-se com o período imediatamente posterior (8 a 12 de Fevereiro), notamos a súbita mudança de comportamento, que persiste rigorosamente até hoje:

Águas Claras, 8 a 12 de Fevereiro

Esse, curiosamente, é justamente o momento em que é criado o Grupo Técnico de Acompanhamento do Cantareira, responsável por orientações estratégicas relevantes, como a determinação da vazão máxima a ser retirada, bem como sobre a autorização do uso do volume morto, e ainda por estudos sobre a previsão do esgotamento do sistema, dentre outras questões. É justamente nesse instante, por sinal, em que a crise do Cantareira se torna pública e ganha expressiva repercussão na imprensa. Se voltamos mais no tempo, perceberemos diversas ocasiões em que o comportamento  da curva da cota seguirá uma lógica bastante aleatória; em alguns casos, é possível notar, aparentemente, uma similitude com o que verificamos agora. Contudo, mudanças aparentemente sutis, como a inclinação da curva, o caráter e a duração da diminuição e o horário em que ela ocorre dão sentidos consideravelmente distintos ao fenômeno.

Em síntese, enfim, é preciso dizer que o que temos aqui é meramente uma hipótese, que ainda não foi explorada pelos interessados no tema – e, muito menos, pela imprensa mainstream que cobre a matéria. Na verdade, os dados parecem corroborar uma realidade que já consideravelmente óbvia para centenas de milhares de cidadãos. Os números apenas acabam por referendar, se corretos, a incrível falta de transparência da SABESP e do governo Alckmin. Venho dizendo há tempos que essa obscuridade é uma das maiores violências que uma pessoa pode enfrentar em um espaço público. A arrogância com que a empresa e o governador vêm gerindo o trágico tema – jamais fornecendo os feedbacks que a população precisa e que significariam o mínimo de respeito que ela merece – apenas amplia a indignação geral com a falta de planejamento e gestão que repercutem na realidade em questão. A forma discricionária com que administram a divulgação das informações em nada ajuda a superação da crise. Pelo contrário. Que, aos poucos, as verdades venham à tona, mesmo que signifiquem, na prática, a limitação de direitos essenciais à cidadania. Pois é muito mais republicano promover um racionamento ou uma limitação drástica da distribuição da água com a anuência do povo do que manter uma aura de controle e normalidade perante os súditos enquanto cada vez mais improvisos são gestados por um corpo político-burocrático isolado – da realidade, da dimensão fática dos problemas e das demandas sociais.

 

Redação

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