Retalhos literários (IX-XII)

Como escrevi na primeira postagem desta trilogia (aqui), em tempos de nanismo político e cultural, nada como examinar (ou reexaminar) a obra viva de alguns gigantes do passado (retalhos extraídos do blogue Poesia contra a guerra).

IX. Em defesa de um matemático (1940)

G. [Godfray] H. [Harold] Hardy (1877-1947)

O matemático, como o pintor ou o poeta, é um desenhista. Se os seus desenhos são mais duradouros que os deles, é porque são feitos com ideias. O pintor desenha com formas e cores, o poeta com palavras.

Os desenhos do matemático, como os do pintor ou do poeta, devem ser belos; as ideias, como as cores ou as palavras, precisam [interligar-se] de maneira harmoniosa.

Seria difícil encontrar um homem instruído que fosse totalmente insensível aos atrativos estéticos da matemática. Pode ser muito difícil definir a beleza matemática, mas isso vale igualmente para a beleza de qualquer tipo – podemos não saber muito bem o que é um belo poema, mas isso não nos impede de reconhecer um quando o lemos.

O fato é que existem poucas matérias mais ‘populares’ que a matemática. A maioria das pessoas entende um pouco de matemática, assim como a maioria das pessoas consegue apreciar uma melodia agradável; e provavelmente existem mais pessoas interessadas em matemática do que em música. As aparências podem dar a entender o contrário, mas é fácil explicar isso. A música pode ser usada para estimular as emoções das massas, ao passo que a matemática não, e a incapacidade musical é tida (sem dúvida com razão) como uma imperfeição leve, ao passo que a maioria das pessoas tem tanto medo do nome da matemática que está sempre pronta, sem falsa modéstia, a exagerar a sua própria burrice matemática.

Um pouquinho de reflexão é suficiente para por a nu o absurdo da ‘superstição literária’. Há uma quantidade enorme de enxadristas em todos os países civilizados – na Rússia, quase toda a população instruída –, e todo jogador de xadrez consegue reconhecer e apreciar um jogo ou problema ‘bonito’. Não obstante, um problema de xadrez é simplesmente um exercício de matemática pura (não é esse o caso do jogo, já que a psicologia também desempenha nele o seu papel), e todos que consideram ‘bonito’ um problema estão aplaudindo-lhe a beleza matemática, mesmo que seja uma beleza de espécie relativamente inferior. Os problemas de xadrez são as cantigas de roda da matemática.

A mesma coisa nos fica patente – num nível mais baixo, mas que envolve um público mais amplo – no caso do bridge, ou, descendo ainda mais, no das colunas de enigmas dos jornais populares. A imensa popularidade desses enigmas é, em sua imensa maior parte, um tributo aos atrativos da matemática elementar, e os melhores criadores de enigmas, como Dudeney ou ‘Caliban’, usam pouco mais que isso. Eles conhecem o seu negócio; o que o público quer é um pouco de estímulo intelectual, e nada produz um efeito tão estimulante quanto o da matemática.

[Hardy, G. H. 2000. Em defesa de um matemático. SP, Martins Fontes.]

X. Igrejas universais (1972)

Arnold J. [Joseph] Toynbee (1889-1975)

As principais religiões elevadas que ainda sobrevivem são o hinduísmo, o judaísmo, o zoroastrianismo, o budismo, o cristianismo e o islamismo. […]

O budismo, o cristianismo e o islamismo têm sido – ou se tornaram – integralmente universalistas. Cada uma dessas três religiões se decidiu a converter a humanidade; e, apesar de que a continuação da existência de todas as três é prova de que nenhuma teve êxito na realização de sua ambiciosa finalidade comum, cada uma delas conseguiu converter continentes inteiros, abarcando os domínios regionais de diferentes civilizações; e cada uma delas realizou isto por meio de veículos rudimentares de comunicação, únicos meios à sua disposição antes do “aniquilamento da distância” trazido pelo moderno avanço da tecnologia. […]

As emoções humanas, a consciência e a vontade não são coletivas; mas sim faculdades de um ser humano individual; e a vida espiritual de uma pessoa – de cada pessoa que participa das relações sociais – é o campo em que deve ser travada a luta espiritual pelo autodomínio. Essa é a tarefa mais urgente do homem, e também a mais difícil. É difícil porque o homem é um ser vivo, e todo ser vivo é egocêntrico por natureza. O egocentrismo é, na verdade, outro nome para a própria vida e a vitória sobre tal estado de coisas é um tour de force. Entretanto, é apenas na medida em que um ser humano realiza esse tour de force que pode ter relações sociais satisfatórias com seus semelhantes – e o homem não pode estabelecer relações fora da sociedade.

Na vida humana, o egocentrismo só pode não causar desastres na medida em que seja dominado na vida íntima espiritual de cada membro da sociedade. “O sofrimento é a chave do conhecimento”, e o espetáculo dos sofrimentos autoinfligidos, que destruiu sucessivas tentativas de civilização, abriu o olhos dos fundadores das religiões superiores. Eles entenderam que a salvação deve ser procurada, não no cmapo das relações sociais, mas no íntimo espiritual da pessoa, e que nesse campo a salvação só pode ser obtida pelo autodomínio. Essa é a razão pela qual esses videntes se dirigiram aos seus semelhantes, os seres humanos, como pessoas, e não como participantes da sociedade. É também a razão pela qual ensinaram que o autodomínio é indispensável pré-requisito para o estabelecimento de uma relação correta entre a pessoa humana e a suprema realidade espiritual.

[Toynbee, A. J. 1987. Um estudo da história. SP, Martins Fontes & Editora da UnB.]

XI. Ego e ideologia (1976)

Erik Erikson (1902-1994)

O fenômeno tem aspectos evolutivos bem como históricos. Eu colocaria do seguinte modo: O homem se tornou dividido em pseudoespécies e, na presente era, tenta superar uma das últimas formas desse fenômeno, que é o nacionalismo. O animal tribal está na defensiva, justamente porque ideologias mais inclusivas estão sendo formuladas. Mas, como formar uma identidade mais ampla – este [se torna] agora o problema da juventude. [Em] minha opinião, o adolescente é dirigido e frequentemente perturbado por uma nova pressão quantitativa de impulsos conflitantes. Assim, o aspecto ontogenético da adolescência é realmente representativo daquilo que a força do ego de cada indivíduo precisa tentar resolver num único momento, a saber, o desgoverno interno e as condições mutáveis. Uma pessoa cujas potencialidades como pessoa não podem ser atualizadas nas tendências históricas do seu tempo, simplesmente, fica mais desnorteada a respeito do que a impulsiona amorfamente, mas inclinada a regredir e, desse modo, também mais importunada por remanescentes infantis na sua sexualidade. Você pode ver, em qualquer jovem, que ele pode exercer a sexualidade sem dificuldades, pode se expor a crises e absorver alguns equívocos graves. Assim, a identidade tem essa importância no desenvolvimento. Mas, depois, ela tem também o seu lado social, que é o que a torna psicossocial. Como base no desenvolvimento cognitivo, a pessoa jovem está procurando uma estrutura ideológica com a qual enfrentará um futuro de vastas possibilidades. É muito importante ver que ideologias, por definição, não podem ser constituídas de valores maduros. Os adolescentes são facilmente seduzidos por regimes totalitários e todas essas tendências que oferecem alguns valores transitórios falsos. Enquanto a adolescência é vulnerável a ideias falsas, ela pode colocar uma grande energia e lealdade à disposição de qualquer sistema convincente. Isto é o que a torna tão trágica e dá a todos os criadores de novos valores tamanha responsabilidade. Nós, no Ocidente, pensamos que queremos só defender um estilo de vida, enquanto, de fato, estamos também criando e exportando ideologias tecnológicas e científicas, que têm seus próprios caminhos para reforçar o conformismo. Estas são duas grandes fontes de identidade contemporânea e de confusão de identidade: a crença na tecnologia e a reafirmação de uma espécie de humanismo. Ambas podem ser obsoletas, na sua utopia, inadequadas ao esforço gigantesco do homem para controlar os seus próprios poderes.

[Evans, R. I. 1979. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.]

XII. As causas da guerra (1968)

Ashley Montagu (1905-1999)

As guerras modernas não são feitas por nações ou povos, nem por homens num estado de agressividade possuídos por um instinto territorial. As guerras geralmente são criadas por alguns indivíduos em posições de grande poder, ‘grandes líderes’, estadistas ‘sérios’ e ‘respeitados’, geralmente assessorados pelos ‘melhores e mais brilhantes’, quase sempre com calma e deliberação, e com a pretensão ou mesmo a convicção de completa retidão moral. Os generais, longe das frentes de batalha, emitem ordens para a aniquilação do ‘inimigo’ sem mais agressividade ou emoção do que ordenam ao jardineiro de suas casas que apare um pouco mais a grama. O ‘combatente’ atira ou deixa cair suas bombas sobre um ‘inimigo’ que dificilmente chega a ver, em relação ao qual sua desvinculação emocional dificilmente poderia ser maior. Ele está engajado em ‘hostilidades’ em que não existe inimizade emocional, e em comportamentos ‘agressivos’ em que não existe qualquer sentimento de agressividade. Seu comportamento é dirigido pelo Estado, e não pelo instinto, contra o inimigo. […] Os inimigos são designados e os súditos são chamados para demonstrar sua lealdade.

O biólogo francês Jean Rostand afirmou: “Na guerra, o homem é muito mais uma ovelha que um lobo. Ele segue, obedece. Guerra é servilismo, mais precisamente um certo fanatismo e credulidade, mas não agressividade”.

Bernard Brodie […] assinalou que a guerra é uma vazão muito pobre para a raiva ou a agressividade humana. É demasiado perigosa e custosa, e o inimigo é demasiado impessoal e remoto. A agressividade e a raiva são extravasadas imediatamente de maneira mais adequada sobre pessoas próximas, visíveis e tangíveis. […] A agressividade busca um alívio imediato contra determinado alvo. As máquinas de guerra tornam débil ou deficiente qualquer agressividade que pudesse estar presente. A verdade é que, em termos de motivação, e este é talvez o maior de todos os paradoxos, a guerra representa uma das formas menos agressivas de comportamento humano. Um Estado não é uma criação natural, e sim uma entidade artificial, e é como entidade artificial que o Estado empreende a guerra, com armas artificiais, a partir de motivos artificiais, com objetivos artificiais, e conduzida com finalidades artificiais.

[Montagu, A. 1978. A natureza da agressividade humana. RJ, Zahar.]

Redação

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