Um bom artigo e entrevista sobre educação hoje, no Brasil

Marcelo Mirisola escreveu este belo artigo versando sobre os tropeços da educação no país hoje em dia, e a deixa é o caso da aula de filosofia.

https://br.noticias.yahoo.com/blogs/marcelo-mirisola/valesca-e-a-educa%C3%A7%C3%A3o-no-brasil-162340217.html

O instrumento que tenho para me comunicar é ridículo: eu escrevo. Perto do poder de fogo da Valesca, sou menos que uma chacrete aposentada. O alento é saber que Machado de Assis também não vale um beijinho no ombro da Popozuda. Mas e a polêmica criada pelo professor de Brasília?O gaiato meteu Valesca numa questão vale-tudo de múltipla escolha, e ganhou mais atenção do que jamais poderia imaginar. O professor Antônio Kubitschek diz que tudo não passou de uma provocação, e que seu intuito era esse mesmo: jogar a isca. A “mídia” mordeu a isca, ponto pra ele. Os rottweilers  da mídia (não me incluam nessa, sou apenas um modesto blogueiro, sem parentes importantes e vindo da Major Diogo, interior do Bixiga) tentaram inverter o jogo e o acusaram de machismo: “por que não acusou Criolo de ser um grande pensador contemporâneo?”Nessa hora, todo mundo é preconceituoso. Quem acusa, quem responde, quem replica e quem contra-ataca. Quero ver alguém sustentar qualquer debate no Brasil sem usar esse artifício primário e castrador. O maior preconceito que rola no país hoje, senão o único digno de nota, é o preconceito contra a inteligência.

Eu, aqui, só consigo pensar em Otto Lara Resende. O mineiro que acreditava em solidariedade apenas no câncer, e que estreou na “Folha” um mês e vinte e três anos antes deste escriba que, hoje, não tem opção diferente de apostar num milagre para chegar perto das frieiras da Valesca, e olhe lá.O mundo, na época de Otto, era outro: bunda era bunda, e escritores eram confundidos com intelectuais, alguns até passavam por óraculos. Prefiro hoje, apesar das picaretagens, limitações, histerias e maus entendidos.Voltando a Valesca. Bruna Mitrano é professora da rede pública do município do Rio de Janeiro. Ela ministra aulas na Escola Municipal Venezuela, em Campo Grande. Vou entrevistá-la.Um aluno mandou você se “foder” em sala de aula, confirma? Além disso, você também já foi ameaçada de morte?  Como foi?Bruna Mitrano: Sim, confirmo. E destaco que as duas situações aconteceram em escolas diferentes. As pessoas tendem a isolar o problema, dizer que a culpa é da escola, da direção, do professor, do aluno, do responsável do aluno. Em quatro anos, trabalhei em três escolas públicas, no subúrbio do Rio, e tenho notado que a hostilidade é geral. Ouvir ‘foda-se’, ‘vai se foder’, ‘vai tomar no cu’ é recorrente nas salas de aula. Seria fácil ignorar, mas ignorar é legitimar. Bater de frente, por outro lado, é antecipar a aposentadoria. É preciso jogo de cintura pra evitar os extremos. Já recebi duas ameaças de morte. A primeira foi uma ameaça velada, de um aluno de 26 anos, do Ensino de Jovens e Adultos. O que fiz foi conversar em particular com o rapaz, que na época tinha a mesma idade que eu. A outra veio de um menino de 13 anos, que ameaçou me dar um tiro na cara. No caso do menino, eu que nasci, cresci e moro na favela, parti pro diálogo aberto: “ah, você tem uma arma? Então atira. Não tenho medo de morrer. Mas olha, garoto, é bom que você tenha mesmo uma arma, porque se você sair pela rua dizendo isso sem estar armado, quem vai acabar tomando tiro na cara vai ser você”. O garoto pediu desculpas e virou aluno modelo. Parece cruel, mas estamos numa terra de leis imprecisas, flexíveis, é preciso fazer o que funciona e não seguir à risca modelos acadêmicos.

Mundo de Marlboro. Isso que é lição, professora. Assino embaixo. Concorda que perto do poder de comunicação da Valesca Popozuda, perto da aproximação do mundo da Valesca com a realidade dos alunos, o professor é um ser distante, estranho. O professor virou uma piada para os alunos?BM: Inegável que o alcance das Valescas é maior, mas não acho que isso seja motivo pro professor se tornar ou se colocar distante. Nada contra a Popozuda, já usei letras de funk em aula. A polêmica com a Valesca ficou no epíteto “grande pensadora contemporânea”. Pensadores todos somos, contemporâneos também, mas quem julga o que é grande? De toda forma, sua pergunta vai muito além da “questão Popozuda”. É uma pergunta complexa, delicada. Tentarei responder logo adiante. Possível, hoje, competir com o lado de fora?BM: Não acho que seja possível e nem acho que seja o caso de competir. O ideal, penso, seria não existir separação entre fora e dentro. Mas já que existe, creio que o problema surge quando, como você colocou na pergunta anterior, esse ‘lado de fora’ cria uma imagem caricata, ridícula, do professor. É aí que as minorias acabam se voltando contra si próprias. O meu problema não é com o aluno que me ameaça de morte, mas com uma série de equívocos que levam esse aluno a acreditar que ele tem o direito de fazer isso. Assim como o problema do aluno não é com o professor, que muitas vezes não atende suas expectativas. Enquanto houver uma mídia vendida/comprada, que joga professores e alunos na rinha, vamos esquecer quem é nosso verdadeiro adversário.

Mas a Popozuda não é a imagem caricata? Não é ela que, em última instância e inopinadamente (?), educa seus alunos?  Eu vejo a funkeira como  parte da “série de equívocos” que, como você bem disse, levam o aluno a ameaçá-la de morte. Não só a Popozuda (versão feminina de Mr. Catra), mas toda uma linha de montagem da qual ela faz parte. O que Popozuda, Mr. Catra e afins fazem senão azeitar e abastecer o veículo da tal midia vendida/comprada?  Não estou querendo dizer que “somente pela renúncia ao mundano existe salvação”, longe de mim afirmar algo do tipo, não se trata disso…  O que eu quero saber é o seguinte: qual a  diferença da Popozuda pra Joelma, Chimbinha, Luciano Huck e azeitadores afins ?BM: Sim, a Popozuda é caricata e ela sabe bem disso. Não acho que o entretenimento raso (Luciano Huck e afins) seja a causa da violência, mas a privação, a falta de acesso a tudo aquilo que a elite econômica e cultural, por conveniência, não compartilha com o dark side da população. A minha geração teve uma educação midiática. Eu frequentei baile Charme e até hoje sei os passinhos. O funk, a tevê estão aí e a mídia, você sabe, pode ser uma excelente ferramenta pros educadores. O que estamos criticando é a tal mídia comprada/vendida. Mas entrar numa queda de braço com o besteirol é pedir pra perder. O jeito, então, é formarmos alunos críticos, que consigam formular opiniões a respeito de Valescas, Catras, Joelmas; e depois decidam por si se querem ou não continuar consumindo o que lhes é oferecido. Acredito que só existe um caminho pra isso: mostrar o outro lado, o ‘lado de dentro’ (que não é nem nunca será o único). Parece absurdo, mas a maioria dos meus alunos não sabe o que é um teatro. Aí uma garota filhinha de mamãe me diz: “ah, mas hoje em dia o teatro tá tão barato”. Ela não entendeu. Eu não disse que eles não podem pagar, eu disse que eles nem sabem o que é. Pra que um adolescente vai se deslocar (duas horas de trem, porque trabalho no bairro de Campo Grande, zona oeste do Rio) até um lugar que ele não conhece pra ver algo que ele sequer sabe pra que serve? 

Sim, aí entra o professor. Ele precisa apresentar aos seus alunos outras possibilidades, porque o que difere o jovem de classe menos favorecida dos demais, por incrível que pareça, não é a falta de dinheiro. Quando o garoto pobre quer, trabalha, junta grana e compra tênis de marca. O que o exclui, o que o marginaliza é o desconhecimento. E é também o desconhecimento que gera a violência.Creio que a famigerada “elite econômica e cultural” nada tem a compartilhar ou oferecer senão a merda (ou as marcas de tênis, celulares, carro etc) que sempre ofereceu: a desinformação e a ignorância não tem CEP, o desconhecimento e a propagação desse desconhecimento – através da tevê, da internet e das redes sociais e da presença ostensiva da Popozuda e similares em todos esses veículos – são niveladores e generalizados, vide o espanto da filhinha da mamãe que voce citou: ela sabe apenas que o teatro está barato, mas aposto que nunca ouviu falar em Tennessee Willliams. O nome disso, professora, é mais do que violência, é genocídio cultural. A meu ver, Faustão, Xuxa, Luciano Huck e Regina Casé são mais nefastos do que Hitler, Stalin, Mao Tsé Tung e todos os Picachus das Coreia do Norte. A propósito, cogita-se, ainda, em reformar o currículo? Ou é tarde demais?  BM: Cogita-se e não é tarde. Se não acreditássemos em futuro, não seríamos professores. No entanto, antes de se repensar as práticas e os conteúdos, há de se considerar uma reforma na infraestrutura. Eu não consigo dar uma boa aula numa “sauna” de aula com mais de 50 alunos num dia de verão. Os alunos ficam agitados e dispersos. Não estou desviando o foco da pergunta. Só quero dizer que ainda que tenhamos um currículo ideal, não conseguiremos colocar em prática porque nos faltam condições básicas.

Depois que um aluno ameça dar um tiro, manda a professora “se foder” em sala de aula (foi em sala de aula mesmo?) depois disso, você  acha que esse aluno em particular… tem reabilitação?  Ou é o professor, a ideia de escola, o sistema de educação que tem que se reabilitar?BM: Sim, foi em sala de aula. Olha, acho que o que precisa se reabilitar, ou se reestruturar, é o sistema de ensino. Lembrando que o sistema não é um ente acima ou à parte. Alunos e professores estão incluídos nele. Certo dia, perguntei à professora da classe especial de uma escola em que trabalhei qual era o problema de um determinado aluno. Ela disse que o tal aluno tinha sido abandonado pela mãe no barraco em que moravam. O menino passou cerca de 20 dias sozinho e sem comida. Os vizinhos que o encontraram disseram que ele só sobreviveu porque comeu as próprias FEZES. Esse é só um exemplo. Ano passado, tive uma aluna excelente. No final do ano letivo, essa aluna passou a tirar notas baixas. Descobri que ela tinha sido estuprada pelo pai e que o Conselho Tutelar estava investigando o caso. Pergunto: se esses alunos se tornam agressivos e têm dificuldade de aprendizado, a culpa é de quem? É aí que vemos que o buraco é muito mais fundo. O nosso sistema de ensino não dá conta. Eu, como professora, não dou conta. E a reestruturação de um sistema de ensino só será possível mediante uma reestruturação social mais ampla. É óbvio? É. Mas cadê?Quem estaria condenado  à miséria, à violência, à realidade:  o aluno que mandou a professora se foder? Ou a professora?BM: Os dois. Não adianta culpar o pequeno daqui ou o pequeno de lá. Alunos e professores estão na linha de frente, mas não em lados opostos. Uma dinâmica escolar impraticável, um modelo de ensino arcaico, uma Secretaria de Educação que não dialoga com o Sindicato condenaram/condenam alunos e professores à violência diária.

PS: Alô, Vaticano. Espero que algum cardeal da cúria romana leia essa entrevista. São José de Anchieta é café pequeno e duvidoso diante da destemida professora Bruna. Autoridades competentes, e autoridades incompetentes.  Depois dessa aula, preciso dizer mais alguma coisa?  Ou  preferem que eu faça o desenho de um imenso c@#*!lho voador no quadro negro pra vocês se ligarem?

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador