A dificuldade de ser negro no Brasil, por Sebastião Nunes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Enviado por Romério Rômulo

do jornal O Tempo

A dificuldade de ser negro no Brasil, por Sebastião Nunes

O poeta Adão Ventura morreu em junho de 2004, e de lá para cá sua poesia vem sumindo. Que autores sejam apagados do mapa da história literária não é incomum, ao contrário. A imensa maioria despenca no abismo sem fundo do ostracismo apenas alguns anos depois da morte. É engano imaginar que o “gênio” louvado hoje pelo imediatismo da mídia mereça o rótulo de ótimo ou de bom depois de amanhã. Mesmo ser chamado de ruim é ainda “menos pior” do que inexistente. E a grande maioria não resiste sequer a uma década de desprezo. Vira sombra de sombra de sombra.
NEGRO? PIOR AINDA
 
Sempre me espantou a segurança com que Maria Mazzarello Rodrigues, a Mazza, trilhou sua caminhada de militante e editora. Negra ela mesma, acreditou que a cor da pele não inferiorizava ninguém e foi em frente, desde a década de 1960, pelo menos, quando as pessoas tinham vergonha da própria cor.
Alguma coisa mudou deste então, principalmente a visão de cada um como ser humano, mas não mudou muito, principalmente em cidades marcadamente racistas, tipo São Paulo e Belo Horizonte. Na época a que me referi, antes da revolução cultural pop, ser negro era quase como ser leproso. Vivia-se em guetos e os pretos conheciam seu lugar na pirâmide, ou seja, no degrau mais baixo, condenados à inferioridade social do nascimento à morte.

NEGRO E CAPIAU
 
No poema “Viagem à capital”, Adão se descreve assim: “Eu, menino/ enfatiotado,/ roupa domingueira,/ botina nova/ vindo do Serro/ e, puxado por minha mãe,/ Sebastiana de José/ do Teodoro,/ desço da jardineira/ e entro no Bar/ e Restaurante Chapéu de Sol.”.
Os nomes revelam muito. O avô paterno era Teodoro da Fazenda. O pai, José Ferreira dos Reis. A mãe, Sebastiana. Daí Sebastiana de José do Teodoro, forma comum em comunidades pequenas de nomear as pessoas pela ascendência.
O espantoso, no caso de Adão, é que o negrinho enfatiotado de botina nova, neto pobre de escravo, tenha se tornado grande poeta.
ESCASSEZ
No site “Recanto das letras”, Nelson Marzullo Tangerini escreve que “a poesia negra brasileira não cessou com Luís Gama”, quase como se quisesse dizer que só houve poesia negra antes e logo após o Abolicionismo. Mas ele mesmo quase confirma o que insinua, ao nomear apenas, no século XX, dois poetas-papel, Cruz e Souza e Solano Trindade, e a seguir uma série de letristas e compositores populares, às vezes forçando a barra com o famoso “tinha sangue negro”, como se ter sangue negro ou índio não fosse comum a pelo menos 70% da população brasileira.
CONVÍVIO
 
O que livrou Adão de ser apenas mais um preto-pobre foi a inteligência aguda, uma excepcional intuição estética e a vontade de sair do submundo. Tais atributos não são comuns, motivo pelo qual a imensa maioria dos pobres continua sendo pobre e a imensa maioria dos negros continua sendo preto-pobre.
Escapar dessa armadilha socioeconômica exige pelo menos duas das qualidades acima. Para, além disso, se tornar um grande poeta, é preciso acrescentar o terceiro ingrediente, a intuição estética aguçada.
Foi assim que Adão saiu do limbo social e se tornou amigo dos escritores jovens (e brancos, naturalmente) que gravitavam em torno de Murilo Rubião, no Suplemento Literário de Minas Gerais, ainda na década de 1960.
VIAGENS
 
A democratização crescente do país e a elevação da renda, principalmente nas classes mais pobres, permitiu que viagens de lazer e estudos se tornassem muito mais frequentes do que naquela época. Um programa como o “Ciência Sem Fronteiras”, criado no governo Dilma, tem permitido que milhares de estudantes brasileiros sem recursos cruzem o mundo em busca de conhecimentos até então reservados a poucos.
O jovem Adão não teve essas regalias. Viajar para o exterior era privilégio de ricos e da classe média alta. Enquanto seus colegas abonados da faculdade de direito desfrutavam mordomias em Paris, seu lugar era aqui, e já estava mais do que bom.
VOA O CORVO
 
Persistência não faltava ao jovem Adão. A vantagem de ser artista ou atleta em qualquer lugar é a relativização da discriminação racial. Nas profissões de ponta (medicina e engenharia principalmente) a segregação tem origem nos requisitos prévios para ingressar na faculdade: pais capazes de bancar horários integrais. 
Filho de Sebastiana de José do Teodoro da Fazenda, tudo o que Adão podia fazer era teimar e insistir. E tanto insistiu que, mesmo desconhecendo inglês, conseguiu ser escolhido para lecionar literatura brasileira nos Estados Unidos.
No mês anterior à viagem, passava os dias com um exemplar do “Grande Sertão” debaixo do braço. Eu brincava dizendo – acho que já contei isso – que ele lia por osmose. E lá se foi o poeta, tropeçando no espanhol, que também não dominava.
NEGRO, ENFIM
Já não se enforcavam negros em árvores nos EUA e os movimentos civis iam de vento em popa, reivindicando e crescendo. No Brasil, o racismo continuava o mesmo: enrustido, dissimulado e escorregadio, como até hoje.
Mas foi assim que Adão se compreendeu negro, na profunda solidão vivida lá fora. Pela primeira vez, já com dois livros surrealistas publicados, entendeu que não era branco. Foi então que nasceu “A Cor da Pele”, seu grande-pequeno livro confessional.
Enquanto viveu aqui, Adão era negro e não sabia.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

15 Comentários

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    1. Ser negro


      Bem escrito, mas com defeito na citação de Belo Horizonte. Casos pontuais são como, diz o Luiz Nassif, denúncia de uma pessoa só, não tem valor. De certa feita, nos meus idos 16 anos, hoje com 74 bem vividos e bem gozados, namorei uma filha de alemã. Certo dia, ela virou-se para mim e disse que tinha que terminar o namorado porque o seu pai não gostava que ela namorasse negro. Seu irmão era meu super amigo, como é até a presente data, e qual não fora o seu desconforto inicial ao perdir-me desculpas. Disse-lhe que tudo bem. Ela devia respeito ao pai e eu a ela. Que estava tudo bem. Continuamos amigos, embora tenhamos seguido caminhos diferentes, na primeira encruzilhada. Não houve dilema. No Exército, fui apelidado de “navio negreiro” por namorar uma amarronzada igual a mim. Mas que diabo! Um me chama de negro e outro me dá o apodo de navio negreiro. Convivi com essas pequenas diferenças, ou insinuações, como queiram pois até em família, diziam que “este preto não vai ser nada na vida”. Entendia o preto como hipocorístico. Ria. Sabia do meu potencial. Continuei com os amigos, fiz concurso para banco, fiz o Curso de Letras na PUC, Campus de Cel. Fabriciano e aqui estou, vivo, com uma família maravilhosa, e todos os filhos formados em cursos superiores na federal e outras faculdades e um neto que fala três idiomas (15 anos) e outro (com 14 anos) que fala dois, porque gasta o seu tempo livre jogando futebol. No futebol não me profissionalizei por ter que atender os filhos, ajudando na sua criação e porque o serviço do banco não permitia. Aí, sim, era escravidão! Ficávamos no banco, às vezes, até de madrugada, principalmente quando tínhamos que ir à casa de clientes, inclusive acampamentos em Ipatinga, Belo Oriente, Caratinga, Dionísio etc, pegar documentos para consertar a autenticação. Centavo, às vezes, mas tínhamos que consertar. Jamais esmoreci. Acredito, pois, que o Adão se  deu conta que era negro, como dizemos em registro brasíico, quando esteve no “estrangeiro”. Mas todo ser humano vai passar por alguma situação meio conflituosa, como os que tem defeito nos pés, são os “deixa que eu chuto”, os albinos ou  os mulatos aloirados, são os negos aça e por aí vai. Nada nos diminui se não quisermos. É só lembrar que o incomodado é o que nos tenta diminuir e colocar apelidos.  

      1. permita-me um aparte, por gentileza…

        foi mais ou menos isso que tentei expressar no meu comentário acima e não sei se me fiz entender…………….

        “Nada nos diminui se não quisermos”, como você colocou e muito bem

        tenho coletâneas de poesias em geral, não necessariamente de sucesso ou publicada por grandes editoras, e fico impressionado com àquelas, muitas, que me levam a identificar, quase que de imediato, já nos versos iniciais, que o poeta é negro…………………

        eu acho que os autores deveriam, pelo menos em poesia, se desligar um pouco dos sentimentos informativos

         

        bem……….não sei ainda se me fiz entender…………………difícil expressar minha visão de poesia

  1. “A dificuldade de ser negro

    “A dificuldade de ser negro no Brasil, por Sebastião Nunes”

    Tem dias críticos down que desconfio que é tanta mas tanta a dificuldade de ser negro brasileiro como é a do ser palestino na Palestina.

  2. Para alguns, inclusive aqui

    Para alguns, inclusive aqui no blog, o racismo está na cabeça do negro.

    Tenta a sorte “fora do espaço” que é reservado ao negro para ver o que acontece, caso você seja negro.

     

  3. sonho meu…

    um dia poder ler uma poesia que não me possibilite identificar que o poeta é negro…………..

    que a poesia não seja informativa ou os versos uma pintura em sombras e desencantos, triste

    mas são bonitas, muitas, só não acredito que seja impossível não identificar

  4. Mais historias tristes

    Mais historias tristes para misturar as coisas.

    O racismo existe e deve ser combatido, admitir isso é uma coisa defender racialismo é outra bem diferente.

    A esquerda nao aceita a ideia que politica racialista é algo nocivo porque para a esquerda as pessoas nao podem ter direitos pelo simples fato de ser cidadã.

    A esquerda apoia o racialismo ( algo tipico da extrema direita ) pois para ela ele tambem é uma forma de cooptaçao.

    Para a esquerda é importante tutelar pessoas e grupos!

    Entao eu tenho direitos nao porque eu seja cidadão e pago impostos,  mas porque sou negro, gay, indio, ou sabe mais lá o que.

    Ela ´posa de salvadora, uma especie de santa redentora que abriga os que vão ate ela.

    Assim patrocina grupos pelegos travestidos de movimentos sociais ou Ongs, legitima esses grupos!

    E em troca eles promovem suas ideias  junto aos guetos que tanto gostam de criar.

    Se alguem for igual apenas pq é cidadão, significa que o governo terá que tomar vergonha na cara e investir em saude, segurança e educaçao !

    Pois com esse tripé qualquer ser humano independente de ser negroou pobre reunira condiçao para ascender socialmente atraves de empregos decentes.

    Entao para que investir serio em educção ( que nao é o mesmo que construir escola ou faculdade )

    Investir em saude ( que nao é o mesmo que construir hospital ou trazer medico cubano )

    Investir em segurança ( que nao tem nada a ver com operação delega ou somente aumeto salarial ) se eu posso simplesmente optar por demagogia do tipo criar cotas na faculdade e agora no serviço publico?

    Ou trazer medico cubano ao inves de criar um sistema que permita ao profissional de medicina ter carreira e meios MATERIAIS para exercer a medicina nas cidades fora dos grandes centros?

    Ou no tocante a segurança  pq  combater a corrupçao policial ( causa perigossima para quem ousar faze-lo ) se  posso dizer que financio a entrega de viaturas ou  montei algo superfluo como Força Nacional ou pior ainda criei coisas absurdas como a operaçao delegada em SP que estranhamente ninguem vê o PT denunciar ?

    Enfim quando radicais se juntam a demagogia politica a gente tem coisas assim né?

    Lembrando sempre que o primeiro estado atraves do Sr Antony Garotinho a apoiar essa demagogia racialista foi o Rio de Janeiro.

    Engraçado que o apoio a causa negra se dá no campo facil né? ou seja assina um documetno qualquer e manda reservar vago ou numero de empregos para negros.

    Agora fazero o Souza Aguiar que atende basicamente negros funcionar direito isso nao é feito pois custaria uma fortuna  e iria exigir vergonha na cara do gestor publico certo?

    Mas essa ” faceta ” nao é denunciada pelos movimentos negros pois o que eles querem é apoio do governo para a agenda racialista deles, tendo isso eles deixam para escolher o que é ou nao é racismo atraves da conveniencia politica deles…rs   

  5. A escravidão (oficial) acabou

    A escravidão (oficial) acabou há apenas 126 anos. Hoje há ainda vivos netos de escravos. Há não muitas décadas atrás ainda se podia encontrar pessoas nascidas antes de 1888. E, no entanto, nunca vi na tv, nem no restante da mídia, uma só entrevista gravada com uma dessas pessoas. Alguém nascido em 1888 tinha, em 1980, 92 anos. Em 1960, 72 anos. Por alguma razão, não houve nenhum interesse da mídia em mostrar essas pessoas, em ouvir suas histórias, em documentar e registrar em vídeos, ou mesmo em outros meios, quem foram esses brasileiros que presenciaram ou ouviram de seus pais e avós sobre a escravidão, o período mais deplorável da história do Brasil.

    Nas escolas, nada se dizia sobre esse triste e abominável passado do país, exceto algumas protocolares e vagas informações contidas nos livros de História, praticamente sem nenhuma crítica, e sem espaço para reflexão e nem aprofundamento do tema. Escravidão era somente algo ocorrido em um passado distante, retratado , por exemplo, na novela global Escrava Isaura, cuja protagonista era branca. No presente, o que se via nas novelas globais era, via de regra, negras pobres servindo a brancos ricos como empregadas uniformizadas em alguma mansão do Rio de Janeiro. A primeira novela da emissora, protagonizada por uma atriz negra, ou melhor, descendente de negros, foi feita somente já no século XXI (ano 2004, atriz Taís Araújo). De certa forma, a escravidão continuava, e esta escravidão moderna foi de fato retratada pela mídia em suas novelas, filmes, reportagens. No futuro, esse registro será importante para se estudar e compreender o que foi a semi-escravidão do negro ao longo de todo o século XX.  E embora a situação hoje seja um pouco melhor do que era há alguns anos atrás, a sociedade brasileira ainda está muito distante de alcançar a igualdade de direitos e oportunidades a todos.

  6. Negritudes

    Convivi nos idos de 60/70 com Tião Nunes e Adão Ventura. Tião já era celebrado com vários prêmios em concursos de literatura e Adão também tinha seus poemas publicados num suplemento literário da Imprensa Oficial. Lembro-me  de ele ter passado algum tempo em uma universidade americana, lecionando literatura brasileira.  Naqueles dias, a Escola de Direito da UFMG fervilhava de poetas e escritores de quem não se vê mais falar, a não ser do Tião aqui trazido pelo Romério Rômulo.  O Adão me disse certa vez que o Tião era um poeta para o ano 2000. Pois é, a profecia se concretiza. Do Adão lembro-me de um poema cujo título era: “Pintar-se um urubu depois de dele deduzir-se o azul”, o que levava outro amigo nosso a parodiá-lo no Café Nice com “tomar-se um cafezinho depois de dele deduzir-se a cafeina. Pois é, lembranças inúteis de um passado-presente. Superar a própria negritude não é tarefa facil. Que o diga aquele escolhido para o STF em razão de sua cor,

  7. Pois é, ai a gente vê as

    Pois é, ai a gente vê as casas de detenção de menores infratores, e 99,99% são negros. Seguindo a lógica do senhor leonidas, negro é uma raça que não tem competência para evoluir. Se em 500 anos,NINGUÉM fez nada pelos negros, nunca abriu portas, nunca o integrou na sociedade como ser pensante, pergunto ao “nobre” “cavalheiro”: o que fazer para que o negro seja inserido em uma sociedade que ele mesmo, nobre senhor, reconhece racista?

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