A esquerda precisa definir o Lula que quer, por Raphael Silva Fagundes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

A esquerda precisa definir o Lula que quer

por Raphael Silva Fagundes

Se hoje alguém se aventurasse a escrever uma biografia de Luis Inácio Lula da Silva, poderia facilmente lograr-se na lama da ilusão biográfica, cometendo aquele equívoco no qual se tenta descrever a vida como “um conjunto coerente e orientado”, uma expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e objetiva de um projeto¹. Isso porque a história da maior figura do Partido dos Trabalhadores não pode ser apreendida por meio de uma linearidade, de uma direção firme e coerente, ou pode?

Em 2006, Lula arranca risos e aplausos de uma plateia composta por empresários e intelectuais ao afirmar que pessoas responsáveis abrem mão de suas convicções radicais conforme amadurecem. Diz que tal fenômeno é parte da “evolução da espécie humana”. “Se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema”. “Se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema”. Depois destacou: “Quem é mais de direita vai ficando mais de centro, e quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata, menos à esquerda. As coisas vão confluindo de acordo com a quantidade de cabelos brancos, e de acordo com a responsabilidade que você tem. Não tem outro jeito”.²

Poucos meses antes do impeachment de Dilma Rousseff, o ex-presidente afirmou categoricamente: “Eu hoje sou mais à esquerda do que era”. Em seguida disse que o “PT errou, cometeu práticas que condenávamos”.³

Recentemente Lula fez um discurso no 6° Congresso do PT e assegurou que “se a esquerda entrar com um programa bem preparado, a gente vai voltar a governar este país em 2018”(4). Hoje, o Lula mais idoso que aquele que fazia acordos com o mercado é exatamente aquilo que disse que não seria mais? Deparamo-nos com uma contradição lógica, na qual a vida altera sua coerência de acordo com o lado que você está.

Cair nos argumentos radicais do PT atual, deixar-se seduzir pelas frases inflamadas de Gleisi Hoffmann, pode nos levar a um erro que nenhum marxista deve cometer. Trata-se da repetição da História. Todo indivíduo que é de esquerda reconhece uma das máximas mais famosas de Marx: “os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes […] a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”(5). O Lula de esquerda, esse que hoje encanta multidões, se supostamente assumir o poder em 2018, tenderá à direita, como fez uma vez, ou se manterá firme ao discurso esquerdista?

A esquerda precisa definir o Lula que quer! Precisamos reconhecer o fato de que sua história não é coerente, não segue um projeto inaugural e, convenientemente, sua existência se altera de acordo com a essência adequada ao seu lugar no cenário político. Não há dúvida de que ele é o personagem mais carismático da esquerda, capaz de competir com as figuras populistas da direita que ganham espaço, como Doria e Bolsonaro, mas temos que pôr os pés no chão e encarar suas contradições.

É comum o orador, para não parecer incoerente e não dizer algo absurdo quando sustenta simultaneamente uma proposição e sua negação, pouco explicitar suas premissas, deixando de defini-las de modo unívoco e sólido(6). Por isso Lula em 2016 anuncia meio titubeante, após dizer estar mais a esquerda que outrora: “Eu sou um liberal… Eu sou um cidadão muito pragmático e muito realista entre aquilo que eu sonho e aquilo que é a política real”.

O que seria a política real? A política de se manter no poder, como descrevia Maquiavel? Comportar-se dessa maneira, é ser como os outros partidos, nos quais a mazela é a implacável tradição que, para o que o PT se propõe, seria a traição. Precisamos de um Lula trágico e não de uma farsa.

Para os fatos não serem uma farsa, é preciso que observemos as alianças que Lula fará. Seu histórico de se unir aos interesses empresariais é extremamente problemático. Aliás, foi o alicerce para o golpe da maneira que se deu em 2016 (7). Esse acordo interesseiro é sem dúvida um dos elementos que podem vir a compor a farsa. As bases de apoio devem ser as organizações operárias, os movimentos sociais, as ruas. O que, sem dúvida, desencadeará uma série de conflitos, mas se a democracia (hoje muito desacreditada; vista mais como uma noção manipulada que algo efetivamente real) não for a voz do povo, vivemos sob o manto da política da ilusão, tendo como única solução prática e tangível o socialismo, isto é, a real democracia.

Raphael Silva Fagundes – Doutorando em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

¹ BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV. 1998.
² NEVES, F. Lula diz que maturidade política o afastou da esquerda. In: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u87635.shtml
³ NOGUEIRA, K. “Eu sou mais a esquerda do que eu era”: Lula 2018 está em campo. In: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/eu-sou-mais-a-esquerda-do-que-eu-era-o-lula-2018-esta-em-campo-por-kiko-nogueira/
4 Lula diz que esquerda voltará a governar em 2018 se estiver bem preparada. In: https://extra.globo.com/noticias/brasil/lula-diz-que-esquerda-voltara-governar-em-2018-se-estiver-bem-preparada-21427182.html
5 MARX, K. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 19
PERELMAN, C. e OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado de Argumentação: a nova retórica. Trad: Maria E. de A. P. Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 222.
7 FAGUNDES, R. S. Um vice para ser usado duas vezes. In: http://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/10132-um-vice-para-ser-usado-duas-vezes

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A esquerda precisa definir o Lula que quer

    Sem dúvida, hoje Lula é a maior e, diria, única liderança capaz de unir o bloco esquerdista e os simpatizantes.

    Mas, antes, um programa mínimo deverá ser definido.

    A Lula, ou outro qualquer que seja escolhido, incumbe a aceitação do plano e o compromisso de executá-lo.

    Assim a primeira medida será a união dos diversos líderes e seus blocos em torno de um programa.

    Entregar as soluções a um lider qualquer não é democracia, é totalitarismo. Ao lider cabe a coordenação das idéias para alcançar os objetivos acertados. É o senso político de cada um e sua capacidade de trabalhar a diversidade.

    Lula, como todos nós, está sujeito às mudanças que o viver nos impõe. Uns mais outros menos, uns aceitam os ensinamentos da vivência outros se concentram no passado.

    Quanto às dúvidas elas existirão sempre até a consumação dos fatos. 

     

  2. A oposição à esquerda tem 5 deputados, não 200

    Da forma como esses artigos são escritos, tem-se a impressão que Lula trocou o apoio de um partido à esquerda para optar por formar maioria à direita.

    Como se Lula fosse um traidor por não fazer como o Partido Socialista em Portugal, que se aliou ao clássico PCP e ao modernoso Bloco de Esquerda pra formar governo.

    A diferença é que esses partidos em Portugal tem bancada para, junto ao Socialista, formar maioria parlamentar. No Brasil, o que há de esquerda ao PT não chega à dezena (em quase 600, entre deputados e senadores) de parlamentares.

    Então o tipo de crítica que esse artigo faz beira a infantilidade. Temos que qualificar mais o debate, e não ficar dando eco a esse monólogo de surdos.

    A esquerda ao PT quer o Lula mais à esquerda? Elegam 150 deputados e uns 30 senadores no ano que vem.

    1. Perfeito

      Como esquerdista reconheço que os discursos à esquerda são ótimos, mas é uma bancada forte no congresso que define os rumos. Mas a esquerda é nanica no congresso.

  3. O jogo de poder no mundo está

    O jogo de poder no mundo está acelerando. O ocidente em declínio e o oriente decolando abalam o tabuleiro do xadrez político, lançando as peças para o alto. Nada será como antes. No Brasil, a máxima de Marx está invertida, estamos passando pela farsa, que desencadeará a tragédia. Não dá para saber se teremos Lula, se o tivermos, quem será, e se for, se conseguirá sê-lo. Trump foi enquadrado pelo poder bélico e financeiro. O poder está nas mãos do 1%. 

  4. Eu lamento…

    … ter que ler mais um texto “acadêmico”, em que vc tem que começar pelo currículo e pelas notas de rodapé (inversão da continuidade do texto, numa leitura impressionista que salta o mais importante e o mais negligenciado).

    Fora isso, algumas armadilhas: colocar Lula como um contraditório ou com opiniões de circunstância, equivalendo a qualquer outro dentro da política (é o que a extrema-esquerda sem base, sem povo e sem representação – e eu, que pensava ser ela extraparlamentar! – adora, e a direita também…); que a esquerda (qual? qual? ah, sim, exceto a extrema-esquerda sem povo etc.) é que tem que dar o tom de seu candidato (entendendo que Lula seria o seu candidato natural, quando deveria ser outra coisa e que o autor não faz, que é tirar a bunda da cadeira e ir para onde o povo está, pois – em provocação ao seu vocabulário acadêmico – “a esquerda precisa de interlocutores”, e vai lá em Deleuze…).

    Dizem que a direita não possui princípios. Claro que possui, a realidade é de direita, só precisa aderir e surfar (se vc vai se dar bem, é outro papo). E, pelo declarado, Lula se contradiz e a esquerda tem que dar o tom.

    Espera lá. Quer dizer então que essa esquerda, com todo o seu “peso”, não consegue dar seu tom? Bom, então, não é o Lula que está com problema, digamos… É a esquerda (qual? qual? aquela que disse Fora Dilma?) quem tem que se definir.

    Os militares da ditadura sabiam bem  que frações à esquerda não se bicavam. E o pluripartidarismo como forma de divisão de interesses e fins não foi uma invenção do Golbery. Já estava lá.

    E se as contradições não estão nas declarações de Lula, mas na própria tentativa de articular e englobar na agenda progressista grupos tão díspares, como evangélicos pobres (difícil uma agenda sobre o aborto, por exemplo), uma parte da classe média (que quer boa remuneração, mas não quer povo de chinelo no aeroporto), pequenos empresários (o apoio ao golpe deve pesar num silêncio arrependido e sem fim para alguns)?

    Eis que aparece: a inversão, de colocar a nota de rodapé sobre os fatos (o que lhe impede de fazer uma leitura mais apurada das contradições que aparecem no real). Essa inversão não se explicita, mas explode no momento em que ele cita Maquiavel. Pois é justamente em Maquiavel que encontramos a realidade, os fatos da política em sua crueza e que permitem a análise. Enfim, se não se concorda com Maquiavel em seu objetivo (conquista e permanência do poder), não é possível incriminá-lo pela sua “metodologia”, muito mais concreta e histórica do que aquela do nosso estimado autor. Como se poderia aprofundar a análise ou mesmo verificar se procede o dito, se uma parte substanciosa que poderia aparecer simplesmente foi “drenado” ao criticar a concretude da política que aparece em Maquiavel? Só lhe sobra a análise do discurso.

    Está muito mais preocupado com a análise do discurso do que com os fatos que dele emergem. Eu diria, de forma arriscada e em termos psicanalíticos, que o autor projeta seus interesses acadêmicos em Lula e constrói a justificação na forma de um artigo…

     

  5. LULA NÃO QUER MUDAR NADA, APENAS ELEGER-SE!

    BRASIL NÃO MUDOU, PORQUE O PT NÃO QUIS!

    Vergonhosamente, o PT amarrou as nossas mãos, para que nada pudéssemos fazer nessa hora. Foi o PT quem retirou da lei o direito de convocarmos REFERENDO com nossos ABAIXO ASSINADOS. Por isso não podemos reverter as leis que estão sendo impostas com REFERENDOS; nem convocar PLEBISCITOS, propondo leis contra a corrupção; ou convocar PLEBISCITO DESTITUINTE, para cassar políticos como o Temer. Vejam:

    https://democraciadiretanob

    O PT é um estelionato eleitoral, não tanto pelos erros cometidos; mas principalmente por insistir, e continuar indo pras ruas, sem exigir esses nossos direitos. E isso sim é imperdoável. Um partido desses não presta pra nada. Por isso, toda a inclusão social não passou de esmola, porque não nos conquistou a INCLUSÃO política. Aliás, continua negando-se a isso…

    1. Muito legal…

      … agora, combina com o Temer, com os tucanos…

      Eles vão ADORAR a sua ideia.

      Que já era uma piada desde as jornadas de junho e deu no que deu.

  6. Tem gente na esquerda achando

    Tem gente na esquerda achando que Lula vai olhar diferente para eles quando voltar ao poder. Vai ser da mesma maneira que foi: ele faz, todo mundo aplaude, não interessa se é erro ou acerto, do contrário está fazendo o jogo da direita. A própria falta de autocrítica já demonstra que nada vai ser mudado, tudo continuará no mesmo rumo. Não houve erros até aqui, no máximo percalços. Não é a esquerda quem vai definir o Lula que quer mas Lula é quem está definindo, na verdade já definiu, a esquerda que ele quer. E tome mais do mesmo pela frente.

  7. Inadmissível uma liderança receber 2 presentes

    e, quem for de esquerda, deveria era expulsar esta figura, e não acenar usando o medo, por exemplo, o medo contra a direita. Mas se foi parte da esquerda a cúmplice, omissa, vistas grossas a troco de quê, de quê? Pelo poder, pelo status, pelos cargos de confiança, por não ter alternativa individual, individualista? Fazendo críticas e autocríticas entre paredes, internamente? Em mesmíssimos documentos calhamações pra… limparem suas consciências e tudo continuar? Pois não dou um tostão pra autocrítica e críticas que não sejam pública, PÚ-BLI-CAS. Ah, tá! Não existem provas irrefutáveis. Pelo menos que se afaste o sujeito.

  8. “Se você conhece uma pessoa

    “Se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema”. “Se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema”

    Isso, amigo, é amadurecimento.

    Seu histórico de se unir aos interesses empresariais é extremamente problemático. Aliás, foi o alicerce para o golpe da maneira que se deu em 2016.

    O alicerce do golpe é o mesmo de sempre no Brasil: essa “elite” mesquinha e de merda que temos aqui, juntamente com a plutocracia, os traidores do País (PSDB) e a geopolíica do Império do Capital.

    Tem gente que está do lado de cá, mas deveria estar do lado de lá.

    Esses intelectuais esquerdistas de salão, por exempo, essa extrema esquerda sem povo.

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador