A fábrica de arte de Ruy Barreto

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Jornal GGN – A arte que salva. Sem exageros. Ter optado por um espaço de arte faz de Ruy Barreto um investidor que abraçou o sonho. Sua Bhering faz locação de espaços na área portuária para filmes e ateliês. Leia o especial de O Globo.

Em casa. Ruy Barreto na Bhering: “Procuramos saber o que estava sendo feito no resto do mundo com fábricas como esta que fechavam. Vimos que muitas viraram centros de arte” – Daniela Dacorso

de O Globo

Encontros de domingo: o empresário que fez da Bhering uma fábrica de arte

Aos 87 anos, Ruy Barreto atua na locação de espaços no prédio da Zona Portuária, realizando um velho desejo: investir em arte

POR SIMONE CANDIDA

RIO— O primeiro aroma que Ruy Barreto sentiu assim que veio ao mundo foi o de café. Ou melhor, das sacas do fruto. Era o ano de 1927, e a família do mineiro tinha um pequeno armazém na cidade de Muriaé, na Zona da Mata. Como o dinheiro era escasso, viviam num cômodo improvisado junto ao estabelecimento. E foi ali que a mãe deu à luz o garoto e a maioria dos seus dez filhos.

— Comecei a vida respirando café. E a minha vida inteira foi ligada a ele até pouco tempo atrás — diz Barreto, que foi um dos maiores exportadores de café, levando a marca Café Globo para países como Rússia, China e Cuba. — Fomos um dos patrocinadores das Olimpíadas de Moscou.

Foi da iniciativa desse empresário criado no ramo dos grãos que surgiu no Rio uma das maiores usinas de ideias da cidade, a Fábrica Bhering, na Zona Portuária, extinta indústria de chocolate que, desde 2005, abriga ateliês de artistas e fotógrafos, livraria, oficinas de móveis e um bistrô. A história começou a ser desenhada na década de 70, quando Ruy Barreto estava em busca de um nome para batizar a marca de café solúvel que sua empresa pretendia lançar no mercado europeu.

— Pesquisei e concluí que Globo era perfeito, porque era um nome com força lá fora. Aí descobri que ele já pertencia a uma fábrica no Santo Cristo. Na época o dono me pediu um valor absurdo. Eu falei: se você quer isso tudo pela marca, imagina quanto não ia pedir pela fábrica. Ele disse: nada. Quem comprar a marca leva a fábrica. Acabei comprando a Bhering — conta.

A fábrica de chocolates e balas ficou funcionando a meia carga, esquecida pela família, de 1974 até os final dos anos 80, quando a exportação de café teve um período de recessão. Um dos três filhos de Barreto, então, sugeriu que a saída podia ser a fábrica que tinham na Zona Portuária.

— Fechei a fábrica de café em Varginha (MG), e viemos para a Bhering. Pensei: fazer o quê? Tentamos fazer bolinhos, doces, e acabamos usando a estrutura da fábrica para produzir e vender merenda escolar para escolas públicas. Foi um sucesso. Fazíamos aqui três mil toneladas de quindins por mês para o lanche das escolas. Mas, quando veio o Plano Collor, o governo suspendeu os contratos. Tivemos então que procurar alternativas — lembra. — Das 12 empresas que forneciam merenda para o governo na época, oito quebraram.

Iniciativa para evitar falência

Para não falir de vez, ele decidiu aproveitar o espaço da fábrica para locação. Abriu duas empresas: a Bhering Estúdios, que passou a alugar as instalações para equipes de cinema e novelas, e a Bhering Locação, que cuida principalmente de ateliês de artistas plásticos, mas, no começo, atraiu também pequenas fábricas e empresas interessadas em usar o prédio como depósito.

— Este lugar agora está bom, mas há cinco anos não tinha nada. Dava até medo chegar aqui. Colocamos anúncio, as pessoas vinham e perguntavam: quanto é o aluguel? Eu dizia: quanto você quer pagar? Cada um pagava quanto podia. Mas eu fazia o seguinte trato: quem construía as paredes para dividir o espaço era o inquilino — recorda ele, que hoje lida com uma grande procura pelos espaços, alugados por valores em torno de R$ 25 e R$ 30 o metro quadrado.

Ruy Barreto convive com o fantasma de um imbróglio jurídico. Em 2012, a fábrica foi a leilão por uma dívida com a União e acabou arrematada por R$ 3,2 milhões pela Syn-Brasil Empreendimentos. Os inquilinos quase foram despejados. Começou, então, uma disputa judicial pela posse do imóvel, que em julho de 2012 foi tombado pela prefeitura. Há ainda um processo de desapropriação movido pelo município em curso.

— O leilão já foi anulado. O prefeito, na época, tomou a decisão de desapropriar para evitar que a Bhering fosse fechada. Tenho certeza de que, assim que o processo terminar, tudo voltará a ser como antes — disse o empresário.

No corredor que leva à sala de Ruy Barreto (um espaço simples, decorado com fotos do empresário ao lado de personalidades e políticos, como Juscelino Kubitschek e Fidel Castro), as paredes têm cartazes de alguns dos 20 filmes e dez novelas que usaram como locação um dos andares da Bhering. Também há quadros de recados com assinaturas e mensagens de atores, atrizes e diretores de cinema que já passaram pelo prédio do Santo Cristo.

— Aqui fizeram filmes como “Olga”, “Meu nome não é Johnny”… E todos esses artistas já passaram por aqui: Fernanda Montenegro, Tony Ramos, Patrícia Pillar e, recentemente, o Renato Aragão — conta, orgulhoso.

Atualmente, há 82 artistas na fábrica, mas, em 2005, era apenas um.

— Ele é um empreendedor acima de tudo — diz o artista plástico Dudu Garcia, o primeiro a montar ateliê na Bhering. — E me incentivou. Também fez isso com outros artistas que começaram a chegar. Ele está sempre disposto a realizar novas coisas e já conversamos sobre a ideia de abrir uma galeria.

Centro cultural nos planos

Aos 87 anos, Ruy Barreto ainda faz muitos planos. Em seis meses, pretende instalar no prédio da Rua Orestes o Centro Cultural Bhering. Para isso, já começou os preparativos para restaurar duas áreas da fábrica no quinto andar: o local conhecido como claraboia e outro batizado de pombal. Vai mandar o filho mais novo, Ruy Filho, conhecer a experiência da Fabrika Red October, em Moscou.

— Quando começamos a alugar espaços para artistas, procuramos pesquisar o que estava sendo feito no resto do mundo. Vimos que muitas fábricas em Berlim, Londres, Paris e nos Estados Unidos viraram centros de arte. Foi aí que resolvemos embarcar nessa também — explica Ruy Barreto, que também quer promover palestras, cursos e debates na antiga fábrica.

O sotaque mineiro e o passado com muitos “causos” da época de exportador de café escondem um talento que ele foi obrigado a deixar de lado para vencer na vida. Aos 21 anos, a pressão da família o levou a desistir de uma carreira como desenhista de história em quadrinhos.

— Sempre gostei de desenhar. E uma vez, aos 17 anos, tive a oportunidade de trabalhar fazendo desenhos de gibis na equipe da Editora Globo. Meu pai ficou desesperado, porque meu avô tinha sido artista, um restaurador de obras sacras, e havia passado muitas dificuldades financeiras. Ele não queria de jeito nenhum que eu repetisse isso. Acabei aceitando um emprego como despachante de café no Porto — relembra.

Escrever um livro sobre a história da Fábrica Bhering e fazer uma exposição de fotos sobre as transformações recentes da Zona Portuária também estão nos planos do mineiro.

— Ele é um homem guerreiro e gosta de desafios — analisa Maria Cecília Barreto, filha mais velha, que trabalha com o pai na administração da Bhering. — Quando ele decidiu abrir a Bhering, todo mundo achou que não ia vingar. Mas ele começou a vida dele na arte. É um sonho dele, e acho que meu pai se vê em cada artista.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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