A história de Millôr Fernandes na imprensa portuguesa

Millôr, o grande matchmaker da relação de humor Brasil-Portugal

Ler Millôr Fernandes hoje, em Portugal, é assunto sério. Esqueçam a Internet e o seu contrabando cultural – ela é inútil neste caso. A leitura de Millôr tem de ser presencial, como no tempo em que tudo era ao vivo. Ela implica fecharmo-nos numa sala com um bando de desconhecidos solitários num silêncio civilizado; mas antes disso é preciso deixar todo o mundo para trás e todos os pertences num cacifo, e depois disso é preciso esperar que um funcionário da Biblioteca Nacional erga uma barricada na nossa mesa com pesados volumes de jornais antigos. É um trabalho duro, engarrafar o riso diante de uma página de Millôr, mas lembre-se: todas as outras pessoas na sala de leitura estão a divertir-se menos do que você.

Que o acesso a Millôr Fernandes seja exigente, como matéria preciosa deve ser, não surpreende. Que permaneça quase secreto não é punível por lei, mas devia ser. Até porque continua jovem, Millôr:

“Biquíni é essa coisa que começa de repente e acaba subitamente.”
“Inúmeros artistas contemporâneos não são artistas e, olhando bem, nem são contemporâneos.”
“Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal.”
“Uma coisa, pelo menos, é positiva: a violência no mundo inteiro aumentou consideravelmente nosso conhecimento de Geografia.”

Eis o que quase nenhum brasileiro sabe e muito poucos portugueses lembram: durante quase uma década, num arco que vai de Setembro de 1964 a Abril de 1974, Millôr Fernandes, humorista carioca e furibundo, foi o grande matchmaker da relação Brasil-Portugal. Sempre às quartas-feiras, e sempre na página 17, o homenageado desta edição da FLIP publicou uma página semanal de textos e desenhos humorísticos no vespertino português de maior audiência naquele período, o Diário Popular (o slogan do jornal, impresso em letras vermelhas e capitais acima do nome, era: “O jornal de maior expansão no mundo português”), num total de quase 500 números. Chamava-se O Pif-Paf, como um conhecido jogo de cartas de origem brasileira, mas também podia ser a interjeição de um mágico profissional no momento em que faz o seu truque ou a onomatopeia de um tiro (em polaco pif-paf é o mesmo que bang-bang). O Pif-Paf de Millôr Fernandes era tudo isso: um jogo com o leitor, um passe de mágica com a língua portuguesa, uma prova de pontaria nas suas críticas à civilização humana. Millôr escrevia e desenhava, não necessariamente por essa ordem, e fazia o leitor rir e pensar, não necessariamente por essa ordem.

O Pif-Paf começou por ser uma secção na revista brasileira O Cruzeiro, produzida por Millôr, sob o pseudónimo de Emmanuel Vão Gôgo, juntamente com o ilustrador Péricles Maranhão, entre 1945 e 1963 (a partir de 1955, Millôr assumiu sozinho a produção). Portugueses de uma certa geração conheceram O Pif-Paf ainda nesse período: José Alberto Braga, que mais tarde viria a trabalhar n’O Pasquim – um semanário humorístico, de oposição à ditadura militar brasileira – a convite de Millôr, lembra-se de receber O Cruzeiro em Braga, enviada pelo seu tio do Brasil. “Identifiquei-me logo com Millôr e o seu humor reflexivo – não é o humor só pelo humor”, diz, via Skype, em directo do seu apartamento em Botafogo com vista para o Pão-de-Açúcar.

Ferreira Fernandes, 40 anos de jornalismo, autor de uma crónica diária no Diário de Notícias, vivia então em Luanda, Angola, onde a sua mãe comprava duas revistas brasileiras, Manchete e O Cruzeiro. “Foram o meu curso superior de jornalismo, que tirei até aos oito anos. Mas foi mesmo. Em reportagens, em colunistas e em humor também. O que o Millôr escrevia na Cruzeiro era um português novíssimo para a escrita jornalística. Era irónico, imaginativo, saltava do carcan [“opressão”, em francês] do nosso jornalismo.”

Millôr é demitido pela direcção da O Cruzeiro num editorial de primeira página em Outubro de 1963, após 25 anos na revista (“Sinto-me um navio abandonando os ratos”, comentou na altura), e em Maio de 1964 lança O Pif-Paf, uma publicação satírica e pioneira na imprensa alternativa brasileira que dura apenas três meses e oito números apesar da sua popularidade, uma existência abreviada pela censura da ditadura militar, que manda fechar a revista. O primeiro número de O Pif-Paf no Diário Popular é publicado apenas um mês depois, a 30 de Setembro de 1964 – anunciado na primeira página do jornal:

“Não deixe de ler hoje
na 17ª página
a famosa secção humorística
PIF-PAF
(Cada exemplar é um número
e cada número é exemplar)
De Millôr Fernandes
(Um escritor sem estilo)”

E a língua sambava

As circunstâncias da ida de Millôr Fernandes para o Diário Popular carecem hoje de comprovação porque a maior parte das pessoas que as poderiam esclarecer desapareceram ou simplesmente porque a memória é selectiva. Francisco Pinto Balsemão, fundador do semanário Expresso e da estação de televisão SIC, que era secretário de redacção no Diário Popular – jornal que, aliás, pertencia à sua família – já não se lembra de como O Pif-Paf começou a ser publicado ali (“Não foi através de mim. Podia estar agora aqui a tirar louros, mas não é verdade”). Mas não esquece o seu primeiro Carnaval no Rio, nos anos 1960, na companhia de Millôr: “Acabámos na quarta-feira de Cinzas a tomar banho em casa da Florinda Bulcão, uma actriz que estava completamente na moda naquela altura, muito gira. O Millôr era assim, bastante acelerado. Mas muito simpático.”

Numa entrevista à revista Cadernos de Literatura Brasileira em Julho de 2003, Millôr Fernandes contou que o convite do Diário Popular o salvou – é verdade que entre 1964 e 1967 praticamente só escreveu teatro, entre peças originais, traduções e adaptações, no Brasil. “Eu tenho a maior simpatia por Portugal. Até porque eles me salvaram a vida. Depois de 1964, quando saí d’O Cruzeiro, fiquei na miséria, devendo dinheiro, ainda que eticamente me sentisse aliviado. Um dia, chego aqui, e vocês não vão acreditar, tinha uma cartinha embaixo da porta. Abri, era de Portugal, do Diário Popular. Estavam me oferecendo fazer uma colaboração e ganhar o equivalente a mil dólares por mês. O Diário era o jornal mais lido do país, vendia 180 mil por dia. Pedi 5.000, acabei fechando por 3.000 dólares. Aí eu peguei a prancheta, fiquei até de madrugada, mandei três desenhos para lá. Uma semana depois, chegam aqui 2.000 dólares; na semana seguinte, mais 2.000 dólares e, na outra, mais 2.000. Mandaram 6.000 dólares. Salvaram a minha vida naquele momento.”

Baptista-Bastos (BB), 81 anos, 60 de jornalismo, clama ter sido ele quem sugeriu o nome de Millôr depois de um dos administradores do Diário Popular constatar que faltava humor nas páginas do jornal. BB conhecera Millôr em Março de 1964, numa viagem ao Rio, na companhia do humorista e actor português Raúl Solnado, que também viria a tornar-se amigo do brasileiro. “O Millôr ganhava por página 12 contos, 12 mil escudos. Era uma coisa fabulosa”, diz BB. “Por exemplo, os redactores qualificados – eu pertencia a esse grupo – ganhavam cinco contos por mês.”

Uma ironia, que carece de explicação: censurado pela ditadura brasileira, Millôr destila o seu humor subversivo, marialva e negro com regularidade semanal, durante dez anos, no jornal português de maior circulação, e em plena ditadura salazarista. O humorista brasileiro gostava de contar um episódio apócrifo, que parece um daqueles paradoxos genuinamente pif-pafianos: O ditador português, Salazar, terá uma vez comentado a página de Millôr no Diário Popular com um dos seus assessores, dizendo: “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”.

Baptista-Bastos diz que Millôr mandava versões alternativas, para o caso de a censura portuguesa aplicar cortes na sua página. Ferreira Fernandes nota que nesse período Millôr já acumulara uma vasta experiência em jornais. “Ele entra para os jornais muito cedo, nos anos 40. Nos anos 60 já é um macaco velho, sabe o que está a fazer. Ele não fala da guerra colonial portuguesa. Falará de outros imperialismos, em particular o americano, e isso não incomodaria o Estado Novo, que era bastante anti-americano também.” De resto, Millôr é também anti-comunista, como o regime salazarista.
É possível que a ditadura portuguesa tenha achado que não era nada com ela, quando Millôr escrevia parábolas sobre soberanos que desconhecem ser o homem mais feio do mundo por falta de espelho.

Não era esse lado corrosivo, aplicado à realidade portuguesa, que Ferreira Fernandes buscava no Pif-Paf. “O que me interessava não era a ideologia, mas a manipulação da língua que ele fazia. Entra aí uma inveja absoluta do tipo que vive de escrever e inventar português com a liberdade que ele o fazia”, diz. “Não me lembro se eu gargalhava com ele. Lia uma frase e pensava: ‘Tomara eu’. Provavelmente era o que eu dizia excessivamente.”

João Pereira Coutinho, 37 anos, colunista no Correio da Manhã e na Folha de São Paulo que elege Millôr como uma influência (“Eu não escreveria se não fosse o Millôr Fernandes”), sintetiza assim: “Ele torna a língua portuguesa de tal forma maleável que ela parece que está a sambar.” Já agora, um recado dele para os que defendem que Millôr podia ter sido mais famoso, se não estivesse limitado pela língua: “Quando os brasileiros lamentam ‘que pena termos sido colonizados por Portugal’ quando pensam em termos de grandeza, lembro-me sempre de uma frase que Seixas da Costa [antigo embaixador de Portugal no Brasil] dizia: ‘Vocês gostavam de ter sido colonizados por quem, holandeses? Imaginem a Garota de Ipanema cantada em holandês.’ É a mesma coisa para o Millôr Fernandes. Ele seria grande em qualquer língua, mas não consigo imaginá-lo em holandês.”

“Quando as pessoas dizem ‘fulano tal é genial…’ Não, às vezes a palavra ‘genial’ tem mesmo de ser posta nessas pessoas”, diz Vasco Rosa, 56 anos, editor freelancer, falando de Millôr. O seu génio, explica, está numa imensa erudição – dos clássicos gregos a Shakespeare – e mundividência, sem perder a brasileirice: a capacidade para destilar tudo isso com invejável informalidade. Ferreira Fernandes confirma: “O Pif-Paf quebrava completamente com o engravatado português minimamente culto que escrevia.”

Mais tarde, na década de 1980, Ferreira Fernandes viria a trabalhar no Diário Popular e a frequentar os arquivos do jornal para revisitar O Pif-Paf. “É um número absolutamente grande de frases que são demasiadamente boas. Tenho a certeza de que o plagiei muito. Não podia dizer de todas as vezes, ‘esta frase é de…’, se não ainda me chamavam a atenção. São plágios confessados. A única vez que me encontrei com esse herói – um dos meus heróis de escrita – foi no Hotel Tivoli [em Lisboa] e entrevistei-o. Ele ia pagar o almoço, quando eu disse: ‘Não, nem pensar. Se você soubesse as vezes que o tenho roubado… Tenho mesmo de lhe pagar o almoço’.”

Um crime do 25 de Abril

O último número de O Pif-Paf no Diário Popular é publicado a 24 de Abril de 1974 – véspera da revolução que derrubou o regime ditatorial em Portugal. Quem sabe o que aconteceu? Resta a especulação. “Pode ter sido uma questão contabilística”, sugere Ferreira Fernandes. “Ele ganharia aquilo que merecia ganhar? Não. Mas provavelmente pensou-se que era muito e deixou-se cair.” E também porque, numa altura em que as redacções dos jornais se tornam ultra-politizadas e são dominadas pela esquerda, a geopolítica milloriana não seria propriamente prezada. “Ele é anti-americano, como é anti-comunista, goza com a União Soviética e com a China”, resume Ferreira Fernandes. “Pronto, chego à conclusão: há crimes do 25 de Abril. Temos aí um”, diz, rindo-se.

Millôr Fernandes, que não raras vezes teve de explicar que não era de direita, deixou descendência numa nova geração da direita portuguesa, como João Pereira Coutinho. “Millôr Fernandes é um anarquista céptico. Ele tinha uma consciência de que a espécie humana não era grande coisa. Como tinha essa noção, olhava para o poder político e para o exercício de autoridade como um verdadeiro anarquista”, explica. “Não estou a dizer que o Millôr Fernandes era de direita ou de esquerda. Acho que ele não era uma coisa nem outra. Ele estava acima disso. Mas a direita normalmente tem uma visão menos optimista sobre a natureza humana. Há uma direita que tem grande desconfiança sobre o poder, que quer dar menos poder possível porque sabe que o poder absoluto corrompe; não tem grande esperança nas capacidades do ser humano para fazer coisas extraordinárias – o que não significa que às vezes elas não aconteçam. É uma direita um pouco mais melancólica, de expectativas reduzidas…”, continua, no que é praticamente uma auto-descrição. “Essa direita olha para o Millôr Fernandes como um camarada”, diz, usando deliberadamente um termo da esquerda, antítese que Millôr talvez prezasse.

Em 2004 João Pereira Coutinho organizou a única antologia portuguesa dedicada à produção do Pif-Paf no Diário Popular. É uma espécie de best of em 190 páginas que integrou uma colecção de livros vendidos com o semanário Independente, entretanto extinto. O livro nunca esteve nas livrarias e hoje só é possível comprá-lo em segunda mão. Vasco Rosa, que concebeu a colecção, fotocopiou dez anos de Pif-Paf na biblioteca e convidou Coutinho para organizar um livro sobre Millôr, acusa o mercado editorial português de “autismo”. Surpreende-o que nenhuma casa editorial em Portugal tenha publicado o Pif-Paf em livro, antes ou depois de 2004. Até porque “existe uma geração de editores contemporâneos desse período em que o Millôr publicou no Diário Popular”, diz. De resto, só dois outros livros de Millôr foram publicados em Portugal e não estão mais disponíveis: a peça de teatro Computa, Computador, Computa (Editorial Futura, 1973) e Confúcio Disse (Pergaminho, 1993). As edições brasileiras estão ausentes das livrarias.

O editor português Manuel Alberto Valente lembra que o interesse dos editores portugueses em relação à literatura brasileira tem tido as suas flutuações. “Nos anos 1950-60 aqueles que eram na altura os grandes autores brasileiros – Érico Veríssimo, Jorge Amado, Lins do Rego – eram bastante conhecidos e lidos em Portugal. Depois, durante um longo período, o Brasil como que desapareceu da edição portuguesa. Depois do 25 de Abril e até ao início da década de 80 praticamente não se publicou ficção em Portugal. Publicava-se ensaio político. A ficção tinha sido abandonada como se fosse um vício burguês. E só mais recentemente é que os editores começaram a olhar de novo para o Brasil. Mas, logicamente, vão à procura das novidades, dos nomes novos. É natural que nesse vórtice haja uma geração que tenha ficado perdida – e o Millôr, eventualmente, faz parte desse grupo.”

Millôr Fernandes tem chegado nos últimos anos através da Dinalivro, a maior empresa de importação de edições brasileiras em Portugal, mas esses livros só costumam estar disponíveis nas livrarias do mesmo grupo empresarial, três em Lisboa e duas no Porto. “Millôr Fernandes não é muito conhecido cá – nada que se compare a um Ferreira Gullar, a uma Moacyr Scliar”, diz Paula Lourenço, coordenadora de lojas do grupo. “Mas sempre que temos o Millôr Definitivo – A Bíblia do Caos em loja, ele desaparece. E encomendamos sempre 30 a 50 exemplares.” Isto apesar de ser um livro volumoso, com mais de 500 páginas, que custa 43 euros no mercado português, mais 15% do que no Brasil.

“Nós ignoramos muito o Brasil, que nos devolve com uma ignorância completa”, diz Ferreira Fernandes. “Esse é um drama nosso.”

Pena que Millôr não esteja mais aí para nos fazer rir disso.

Redação

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  1. A visita de Millôr a “Dom Casmurro”

    Publiquei, através de anos, no Estadão, no O Dia, e no Jornal do Brasil – ao todo aproximadamente dois milhões de exemplares – “pesquisa” sobre Dom Casmurro, a obra magna de Machado de Assis. Como minha página era a capa exterior dos jornais citados, e o assunto era picante – se Escobar, “herói” do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu, eterna e tola discussão entre beletristas –, devo ter alcançado pelo menos cem mil desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a Capitu, como, não sei não, acho que tirei Dom Casmurro do “armário”.

    Como não sou dos maiores – e nem mesmo dos menores – admiradores do bruxo, fundador da Academia Brasileira de Letras (“a Glória que fica, eleva, honra e consola”, eu, hein, que frase!), não vou discutir a maciça, inexpugnável web protecionista que se criou em torno dele. Não quero polemizar (falta-me vontade e capacidade) com a candura que os erúditos (com acento no ú, por favor) têm pra relação equívoca entre Capitu, a “dos olhos de ressaca” (que Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre), e Escobar, o mais íntimo amigo de Bentinho, narrador e personagem do livro (evidente alter ego do próprio Machado).

    A desconfiança básica vem desde 1900, quando Machado publicou Dom Casmurro. Dom Casmurro é ou não é corno, palavra cujo sentido de humilhação masculina – que ainda mantém bastante de sua força nesta época de total permissividade – na época de Machado era motivo de crime passional, “justa defesa da honra”, e outros desagravos permitidos pela legislação e pelos costumes.

    Curioso que, ontem como hoje, o epíteto corna não se grudou à mulher. Ela é tola, vítima, “não sei como suporta isso!”, “corneia ele também!”, mas o epíteto não colou.

    Dom Casmurro sofre da dor específica umas 50 páginas do romance, envenenado pela hipótese da infidelidade de Capitu. Que dúvida, cara pálida? Capitu deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca no livro o DNA do Escobar porque ainda não havia DNA. Mas fica humilhado, desesperado mesmo, à proporção que o filho cresce e mostra olhos, mãos, gestos e tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na cama).

    Mas, pela nossa eterna pruderie intelectual, também ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do pecado que “não ousava dizer seu nome”.

    Não fiz interpretações. Apenas selecionei frases – momentos – do próprio Dom Casmurro/Machado, da edição da Editora Nova Aguilar. Leiam, e concordem ou não.

    Pág. 868 “Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.”

    Mesma página “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro… Não sei o que era a minha. Mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou…”

    Pág. 876 “Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres.”

    Pág. 883 “Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa… mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.

    Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.”

    Mesma página “Fui levá-lo à porta… Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.”

    Mesma página “Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.

    – É o Escobar, disse eu.”

    Pág. 887 “– Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração.

    – Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça… Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.”

    Pág. 899 “Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se não me visse desde longos meses.

    – Você janta comigo, Escobar?

    – Vim para isto mesmo.”

    Pág. 900 “Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.”

    Pág. 901 “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão: um padre que estava com eles não gostou…”

    Pág. 902 “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos.”

    Pág. 913 “Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.”

    Pág. 914 “A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.”

    Págs. 925/26 (Depois da morte de Escobar) “Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costas do cartão: ‘Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70′.”

    • • •

    P.S.: Mas, se vocês ainda têm dúvida, leiam a página 845 do fúlgido romance. Bentinho, ele próprio, fica pasmo, e realizado, quando consegue dar um beijo (quer dizer, apenas uma bicota) em Capitu. É ele próprio quem fala, entusiasmado com seu feito de bravura:

    “De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

    – Sou Homem!”

    1. Pardon, mas não pude resistir.

      Delícia de comentarista, com todo respeito, rs. (você é do gênero feminino, pois não? Nomes incomuns, às vezes, enganam)

  2. Concordo com a Nilva. Embora

    Concordo com a Nilva. Embora não tenha a ver “com as calças”, atenua o luto pelo Ariano. Genios da raça. 

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