A homofobia como política de Estado na ditadura

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Sugerido por Gunter Zibell

LBGTs sofriam torturas mais agressivas, diz CNV

Da BBC
 

Ao passar a limpo muitas das violações de direitos humanos ocorridas nos anos de chumbo no Brasil, entre 1964 e 1985, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue nesta quarta-feira à presidente Dilma Rousseff, dá destaque inédito à perseguição e aos abusos ocorridos contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, que durante a ditadura foram alvo tanto do regime militar quanto dos grupos de esquerda e que sofriam mais em torturas, assim como negros e mulheres.

Entre as principais violações destacadas pelos pesquisadores estão as rondas policiais sistemáticas para ameaçar e prender travestis, gays e lésbicas, cuja prática de “higienização” levou ao menos 1,5 mil pessoas à prisão somente na cidade de São Paulo; torturas, espancamentos e extorsões dirigidas sobretudo a travestis; censura à grande imprensa quando abordava a temática das “homossexualidades” (o termo LGBT não era usado na época) e aos veículos gays, como o emblemático jornal “Lampião”; afastamento de cargos públicos por conta da sexualidade, como ocorrido em 1969 no Itamaraty; prontuários de servidores públicos com registros sobre a sexualidade; além de perseguições aos embrionários movimentos de gays e lésbicas na década de 1970.

Se para o regime ser homossexual era algo considerado algo subversivo e um agravante da periculosidade de uma pessoa frente à Segurança Nacional, além de ameaçar a moral e os bons costumes – pensamento que tinha o apoio de grande parte da sociedade –, para os grupos de esquerda os movimentos LGBTs consistiam em uma “luta menor”, ou um “vício pequeno burguês”.

Para um dos responsáveis pelas pesquisas que resultaram no relatório, Renan Quinalha, da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo, embora homofobia e discriminação não tenham sido “inventadas” pela ditadura e não se possa dizer que houve uma política de “extermínio”, é nítido que se tratou de uma “política de Estado”.

“Dada a natureza e o grau dessa perseguição, seja por atuação ou omissão do Estado, e levando em conta o preconceito e a discriminação com uma dimensão institucionalizada, é possível afirmar que a homofobia foi, sim, uma política de Estado durante a ditadura”, avalia.

Ao lado do brasilianista James N. Green, Quinalha organizou o livro Ditadura e Homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade (Editora EdUFSCAR, 2014). Os dois também assinam o relatório e as recomendações incorporadas ao relatório final da CNV.

Um dos colaboradores do livro, o pesquisador Rafael Freitas, da PUC-SP, abordou em sua dissertação de mestrado o papel das rondas policiais executadas pelo delegado José Wilson Richetti no centro de São Paulo no final dos anos 1970.

“A primeira dessas rondas data de 1968, quando de uma visita da Rainha Elizabeth 2ª a São Paulo. A polícia quis limpar o centro da cidade. Em declarações a jornais da época, Richetti não fazia questão de esconder este objetivo, ao afirmar que era preciso ‘limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados'”, conta.

Freitas relembra que algumas travestis, após repetidas prisões e espancamentos, criaram a tática de cortar os pulsos para saírem mais rápido da prisão. “Após três dias de humilhações, em que muitas ficavam sem comida e eram forçadas a limpar a cadeia, algumas chegavam ao ponto de tentar o suicídio para serem soltas mais rapidamente”.

Há relatos de operações de Richetti em bares de gays e lésbicas em que os camburões da polícia simplesmente levavam a todos, de forma indiscriminada. “Quem for viado pode entrar”, gritavam os policiais, lembra o pesquisador.

Tortura e esquerda

Pedro Dallari, jurista e coordenador da Comissão Nacional da Verdade, diz que os trabalhos da comissão ao longo dos últimos dois anos e sete meses identificaram que a sexualidade era um diferencial no grau de brutalidade das sessões de tortura.

“Homossexuais que eram presos ou perseguidos politicamente acabavam sofrendo mais. Na visão do regime isto era um agravante na condição deles, o que também acontecia com os negros e as mulheres”, diz.
Durante uma audiência pública em abril deste ano, em São Paulo, outro membro da CNV, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, também se posicionou sobre o tema.

“Durante a ditadura militar, a homofobia, traço incrustado desde sempre no funcionamento dos aparelhos estatais e nas atitudes da sociedade brasileira, acirrou-se. Havia repressão sistemática de homossexuais por parte do aparelho repressivo. Militantes gays eram humilhados nos interrogatórios e tortura. Espetáculos de travestis e transformistas eram censurados e proibidos. Publicações eram censuradas. A sociabilidade LGTB obrigada a se esconder e se reprimir”, disse, relembrando que o país precisa avançar na aprovação da lei que criminaliza a homofobia.

João Silvério Trevisan, jornalista, um dos principais personagens da história LGBT do país e um dos criadores do jornal Lampião, que entre 1979 e 1981 foi ousado em retratar a temática gay em meio à ditadura, diz que é preciso relembrar como a população LGBT também sofreu nas mãos da esquerda.

“Muitas vezes se esquece de deixar claro este outro lado do que os homossexuais sofreram. Muitas vezes chegou até a violência física, quando mulheres lésbicas foram atacadas pelo MR8 em São Paulo. Movimentos indigenistas, de negros, do meio ambiente, e dos LGBTs eram considerados ‘lutas menores’, com se a chegada do proletariado ao poder fosse resolver tudo. No início da movimentação no ABC, Lula chegou a dizer ‘não existem bichas na classe operária’. Houve muita indignação e posteriormente os movimentos também marcharam nas grandes greves”, relembra.

Contribuição esquecida

Para o brasilianista americano James N. Green, um dos fundadores do grupo Somos – a primeira organização politizada de gays e lésbicas do país, fundada em 1978 em São Paulo –, se por um lado os homossexuais precisam de um maior reconhecimento oficial como vítimas de perseguição e violações de direitos humanos, por outro, seu papel na resistência à ditadura também é muitas vezes esquecido.

Ele relembra que, apesar das dificuldades enfrentadas com os movimentos de esquerda e sindicalistas, um grupo de 50 pessoas do Somos aderiu à marcha de 1º de maio de 1980, durante as greves do ABC, com duas faixas: “Contra a intervenção nos sindicatos do ABC” e “Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual”.

Para ele, a inclusão da temática LGBT no relatório final da CNV é uma vitória nestes dois sentidos. “É uma conquista histórica, muito importante. O papel dos homossexuais na redemocratização do Brasil foi sempre muito esquecido. Não fosse a dura repressão, certamente o país teria movimentos LGBTs muito mais fortes já antes do final da década de 1970, como nos Estados Unidos e na Argentina, mas havia muito medo”, conta.

Marisa Fernandes, uma das pioneiras ativistas lésbicas no país, também relembra a participação das lésbicas na redemocratização, e como lutaram contra a censura. Ela conta que, em maio de 1985, a apresentara Hebe Camargo, ao trazer para seu programa na TV Bandeirantes a ativista Rosely Roth, do GALF (Grupo Ação Lésbico-Feminista), recebeu ameaças do Serviço de Censura Federal de São Paulo.

“Durante a ditadura militar, o modo de vida LGBT sofreu repressão com as tentativas de ocultar suas manifestações, porque a violência do Estado autorizava e apoiava a perseguição contra homossexuais”, diz.
Exemplo mundial e homofobia

Para especialistas, pesquisadores que estudam o tema, ativistas LGBTs que viveram à época e membros da CNV, há consenso sobre o avanço demonstrado e o exemplo que o Brasil dá ao mundo ao incluir os LGBTs em seu relatório final com destaque.

Eduardo González, diretor do programa de Verdade e Memória do Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ, na sigla em inglês), diz que em geral as comissões da verdade ao redor do mundo tendem a focar apenas nos crimes de maior visibilidade, como execuções, torturas, desaparecimentos e prisões políticas, e que o Brasil pode dar um exemplo a outros países com o destaque inédito à população LGBT.

“É muito útil, muito importante que o radar da comissão brasileira tenha se expandido dessa maneira. Tivemos menções superficiais a LGBTs em outros relatórios, e no Peru descobrimos já muito tarde que havia grupos de esquerda que reivindicavam assassinatos de homossexuais, prostitutas e travestis, mas tivemos tempo de incluir apenas uma breve menção”, diz o sociólogo peruano cuja organização já assistiu mais de 30 países em suas comissões da verdade.

Renan Quinalha, da Comissão Estadual de São Paulo, também elogia o trabalho da CNV. Para ele, a medida abre portas para a obtenção de políticas reparatórias e indenizações sofridas por esses grupos, além de aumentar consideravelmente a pressão pela criminalização da homofobia no país. “Por piores que sejam o direito penal e nosso sistema de justiça, a criminalização da homotransfobia é fundamental para mudarmos a cultura da impunidade e da naturalização das violências contra esses setores.”

“A cada 28 horas, uma pessoal LGBT é assassinada no país. Esse índice é alarmante. Conhecer o passado e dar o devido reconhecimento a esses grupos marginalizados historicamente nos ajudará a romper com o ciclo de violência e de impunidade existente ainda hoje. O trabalho que fizemos não foi só de historiografia, mas de ação política no presente”, afirma.

“Enquanto não for feito o acerto de contas com a ditadura em todas as suas dimensões de violências, não teremos uma democracia efetiva com respeito a direitos humanos e às diversidades.”

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

16 Comentários

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  1. Em boa hora a causa gay passa

    Em boa hora a causa gay passa a ser vista como justa por um número sempre crescente de pessoas no mundo inteiro. Aliás, a calça gay também fica mais justa a cada dia que passa (eu perco todos os meus amigos gays mas não perco a piada).

    1. Juro que não entendi. “Causa

      Juro que não entendi. “Causa gay”,  que diabo seria isso? Assim exposto fica parecendo que há uma “ideologia” por trás do que seria apenas a luta ´pelo simples reconhecimento de que há pessoas, do sexo feminino e masculino, que tem uma orientação sexual fora do diapasão. Reconhecer no sentido de respeitar, e não de aceitar, porque nenhum ser humano, seja em particular, seja integrante de um grupo identificado por qualquer tipo de peculariedade, necessita de aceitação, licença, seja lá o que for, para existir e exercitar livremente o que a outrem é dado como normal. 

      Continuaremos a ser uma sociedade doente enquanto não nos conscientizarmos que somos unos exatamente nas diferenças. 

      Temos que acabar com essa insistência em categorizar direitos humanos. Tudo que é inerente à natureza humana não pode ser tratado como algo à parte. 

      1. causa Gay

        Caro cabra da peste,

        acho que se pensarmos pelo aspecto mercadológico a “causa Gay” faz um certo sentido sim, pois o grande capital enxerga grandes lucros por trás das reivindicações legítimas da população LGBT.

        Tudo parte do princípio de que, atendidas estas demandas, a aceitação gradual da sociedade a estas maneiras de vida abrirá mercados (já abre, mas por enquanto em estágio inicial).

        Homossexuais (e até mesmo os metrossexuais) consomem produtos e serviços que muitos “machões” consideram “coisa de veado” ou de mulher. É mais dinheiro girando.

        Além disso, as ONGs e demais organismos ligados à causa podem beneficiar pessoas mal-intencionadas, quando estas as dominam. É assim entre defensores da natureza, abortistas, combatentes das drogas etc.

        Quanto às políticas do tipo “kit gay” em escolas e etc, confesso que estou em cima do muro com relação a isso. Qual a implicação disso em crianças de tenra idade? Elas descobririam por tabela, mais rápido do que de costume, que os bebês não vem da cegonha? E da diferenciação entre “ele” e “ela” na relação? (em alguns casos isso existe) Modo de se vestir, falar, gesticular? A sexualidade embutida na aparência? Oras, muitos de nós não reclamamos da crescente sexualização da aparência dos pré-adolescentes? Minha primeira impressão é que um “pé no freio” era realmente necessário quando o tema “pipocou” na imprensa, por outro lado é preciso sim aumentar o diálogo sobre isso nas escolas.

        Sei lá, estou confuso.

  2. Era de se esperar essa “gana”

    Era de se esperar essa “gana” maior dos torturadores quando os que caíam nas suas garras pertencesse ao grupo LGBT.

    Um dos ódios de qualquer reacionário é aos “diferentes”. Para quem pensa o mundo num quadradinho qualquer um que destoe fica na mira.

    Junto com judeus, comunistas e ciganos, foram um dos grupos perseguidos pelos nazistas. Nos campos de concentração recebiam uma identicação especial. Milhares foram gaisificados.

    A ironia é que Ernest Röhm, chefe das SA, um dos primeiros aliados de Hitler, era homossexual. Por constituir uma ameaça ao padrão homofóbico do Nazismo bem como desafiar o poder do tirano, foi fuzilado a mando deste.

     

        1. JV? Era um reaça de marca, mas nao comenta aqui há tempos

          E era um tipo de troll mais sofisticado, tinha discurso e ideologia, talvez mais para militante de Direita que troll. Esse Alex aí é troll de carteirinha. 

          1. Tenho certeza absoluta que é

            Tenho certeza absoluta que é o antigo JC, aquele que fazia apologia aos blacks bloqs quando das manifstações de junho de 2013, lembra agora?

            Por que tenho tanta certeza? Simples: há poucos dias ele se traiu quando numa réplica a um comentário meu(como é do seu feitio, rasteira) fez menção a um fato(ou sigla: IPPS) que só ele sabe o significado porque remete a um relato que fiz certa vez quando ele ainda usava o “JC”.

          2. Lembro dele, mas nao acho q seja o Alex

            Alex é troll de Direita, provavelmente pago. O JC era de “ultra-esquerda” (que, claro, se alia quase sempre à Direita, mas há uma diferença). Mas nao vou jurar, já que vc tem certeza. Agora o JV é outra pessoa. 

    1. Nossa JB viajou legal neste

      Nossa JB viajou legal neste post heim? rs

      Comparar a direita ocidental com o nazismo e dizer que o lider das SA foi morto pois representava alguma ameaça ao carater homofobico do nacional socialismo [é de doer.

      Armaram para pegar ele durante um suposto encontro ” intimo” para desmoraliza-lo diante da sociedade alema da epoca que era nazista mas mesmo que nao fosse o resultado seria o mesmo.

      Tanto na alemanha como em qualquer lugar do mundo naquela epoca, alias voce de modo indecente ignorou a citaçao sobre a perseguiçao à gays em Cuba pois tentou fazer disso uma faceta especifica da direita.

      Acho que voce ta precisando ponderar melhor as coisas que posta, ultimamente estao de um simplismo atroz…

    2. Röhm não foi assassinado por

      Röhm não foi assassinado por ser gay, mas por um conflito político entre diferentes correntes do nazismo. Na verdade, a corrente dele estava à direita de Hitler, e queria radicalizar o discurso anti-capitalista. Num acordo pragmático com a elite econômica alemã, pouco depois de ter chegado ao poder, Hitler topou fazer o expurgo dessa corrente, banindo as SA e assassinando suas lideranças no que ficou conhecido como a Noite dos Longos Punhais.

  3. Não dá para relacionar

    Não dá para relacionar diretamente a preseguição aos gays a ditadura militar. 

    Há 40 ou 50 anos os gays eram perseguidos mesmo.

    Como aqui os militares tinham o poder, eram perseguidos por estes. Em Cuba eram perseguidos muito mais ferozmente por Fidel.

    Na URSS também eram e a herança homofóbica por lá é muito maior que aqui.

    E nos USA, que não tiveram nem ditadura de direita e muito menos de esquerda. O que dizer disto 

    http://www.alternet.org/louisiana-gov-jindals-prayer-rally-handouts-blame-gays-and-abortion-hurricane-katrina

     

  4. Lampião era gay passivo..E o

    Lampião era gay passivo..E o macho dele comia Maria Bonita tbm.

           Isso está escrrito na biografia dele.

          E qual a novidade ?

            A novidade é que ”machões” tbm sentam.

             Não é verdade, Bolsanaro?

  5. Respeito os livros e o filme

    Respeito os livros e o filme de Trevisan, mas dizer isso aí do Lula, sem prova, é sacanagem. Foi de ouvir falar? Não tenho procuração pra defender o ex-presidente, mas se é que Lula falou que “não existem bichas na classe operária”, pode saber que foi de sacanagem, ou seja, por ironia. Lula se tornou a maior liderança política do Brasil, mas naquela época era peão…

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