A luta feminista contra a cultura do estupro

Do Justificando

Golpe, estupro e o silêncio dos responsáveis: a luta feminista não tem data para acabar

Por Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares

No momento em que escrevemos este texto, em nossas mentes ainda atordoadas pela força dos acontecimentos, ecoam os versos de João Cabral de Melo Neto: “é difícil defender, só com palavras, a vida”.

Não bastassem a agonias que sentimos nos últimos dias em razão dos descaminhos de nossas instituições políticas e dos retrocessos incalculáveis da nossa frágil e claudicante democracia, na última quarta feira sofremos todos mais um golpe atroz.

Por meio das redes sociais, surgiram e avolumaram-se notícias a respeito da brutal violência sexual sofrida por uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro. Trinta e três homens a estupraram e ainda não plenamente saciados em sua selvageria, expuseram publicamente a própria perversidade, divulgando na internet o vídeo com as cenas da violência, submissão e opressão. Dentre outras aberrações, os estupradores vangloriaram-se dizendo a respeito da vítima: “essa aqui mais de 30 engravidou”, “amassaram a mina, fizeram um túnel na mina, mais de 30″.

“Não dói o útero e sim a alma”, disse a menina vítima das barbaridades.

Para completar o quadro surreal, exatamente no mesmo dia, como numa ode à indigência e à degradação do país, o ministro interino da educação, Mendonça Filho, recebeu em seu gabinete o ator Alexandre Frota, de cuja biografia desponta especialmente o fato de ter narrado num programa televisivo[1] o episódio em que praticou ou simulou ter praticado o estupro de uma mãe de santo. Sem cerimônia ou sombra de constrangimento, relatou, ainda, que em decorrência da força física empregada no ato sexual não consentido, a mãe de santo perdeu a consciência e para que ela acordasse, disse-lhe: “levanta, filha da puta”.

Como amplamente difundido, no Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada. Em 2014, de acordo com o último dado disponível, o país teve ao menos 47.646 estupros. Pesquisa recentemente divulgada pela organização ActionAid, informa que 86% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de assédio em público em suas cidades. Esses assédios revelam-se na forma de atos indesejados, ameaçadores e agressivos, praticados por homens, configurando abuso verbal, físico, sexual ou emocional.

Os dados sobre desigualdade de gênero e sobre a violência real ou simbólica a que são submetidas as mulheres no Brasil deveriam ser argumentos suficientes para que um ministro de Estado sentisse vergonha de receber em audiência um indivíduo que faz em público apologia ou chacota da violência contra a mulher. Entretanto, mirando-se no exemplo de outros políticos, como o governador de São Paulo e o candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais, o ministro interino da educação não sentiu nenhum embaraço ou constrangimento ao ser fotografado ao lado do ator e tampouco de receber de suas mãos propostas no sentido de que nas escolas do país sejam proibidas discussões políticas ou sobre igualdade de gênero.

A relação entre os dois episódios não se dá em razão do acaso ou de uma infeliz coincidência. A responsabilidade pela violência real e simbólica perpetrada diariamente contra mulheres não é exclusividade dos indivíduos que as praticam, mas também daqueles que, através dos meios de comunicação, das igrejas e do Estado, disseminam e fortalecem na sociedade a cultura machista, edificada exatamente na reproduçao de múltiplas agressões à figura feminina e na ausência de debate e de medidas para combater as profundas desigualdades de gênero existentes no país.

No âmbito do Estado e de suas instituições políticas, deve-se afirmar com veemência que foi por meio de um complô criminoso de homens que a primeira mulher eleita presidenta da história foi deposta do poder. De fato, em um país em que violência de gênero tem sido a tônica, revelou-se um acinte ter uma mulher como chefe da nação. Nada mais fácil do que destruir a imagem de uma mulher e apeá-la do poder para livrar o próprio pescoço da guilhotina.

Ao longo dos últimos seis anos, capas e mais capas de revistas, de forma vil e ofensiva, reforçaram estereótipos machistas contra as mulheres, acusando a presidenta de descontrole, raiva e incapacidade de lidar com as próprias emoções. Em 2015, transitando livremente na onda do ódio contra as mulheres, à guisa de protesto, alguns carros chegaram a estampar em suas latarias adesivos com uma montagem na qual Dilma Rousseff aparecia de pernas apertas, pronta para ser estuprada por uma bomba de gasolina.

Nessa semana, foram divulgados os áudios de conversas que escancararam o caráter golpista do processo de impeachment movido contra a presidenta. Dentre os diálogos travados entre Sérgio Machado e Renan Calheiros, chamam a atenção os comentários deste último sobre Dilma Rousseff:“estavam dizendo que ela estava abatida, ela não está abatida, ela tem uma bravura pessoal que é uma coisa inacreditável”. Tais comentários, feitos em espaço reservado, o senador ou qualquer outro homem não teve a dignidade de fazer publicamente.

Como sabemos, para os representantes do patriarcado nacional, os elogios cabíveis de serem feitos publicamente às mulheres foram bem sintetizados na bastante difundida expressão utilizada por uma revista semanal para definir a agora primeira dama Marcela Temer: bela, recatada e do lar.

Homens da estirpe de Romero Jucá, Michel Temer, José Sarney, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, Mendonça Filho e Alexandre Frota não descansaram enquanto não derrubaram a primeira mulher eleita e reeleita pelo voto popular no Brasil. Homens como o atual líder do governo, André Moura, que subscreve, juntamente com Eduardo Cunha, projeto de lei que dificulta o atendimento das vítimas de violência sexual. Aliás, há na Câmara dos Deputados um pacote de alterações legislativas feitas por homens para retirar direitos das mulheres, inclusive sobre seus próprios corpos.

Outro articulador do golpe, o deputado Jair Bolsonaro, alvo de repúdio constante em razão de suas diversas manifestações machistas e homofóbicas, já havia se notabilizado por declarar as razões pelas quais não cometeria estupro contra a deputada Maria do Rosário: “ela não merece”, disse ele. Indo além, por ocasião do julgamento da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, o mesmo deputado prestou-se à máxima indignidade de homenagear o torturador de Dilma Rousseff, um dos maiores facínoras que a ditadura militar brasileira conheceu e que cometia indizíveis violencias sexuais contra mulheres encarceradas sob sua custória. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, bradou o parlamentar na sessão da Câmara.

São esses os homens que, agora, comandam país. Para eles, mulheres se prestam somente para saciar o apetite sexual, para servir de enfeite, para chefiar gabinete ou servir a copa. Jamais para comandar.

Tanto é assim, que ao assumir o poder, o presidente interino não nomeou sequer uma mulher na composição de seu ministério. Indo além, a demonstrar o desprezo com os debates e políticas públicas sobre as questões de gênero, extinguiu o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos. Michel Temer, ao justificar a completa lacuna de mulheres em seu governo, chegou a afirmar que a crítica ao evidente retrocesso não tinha fundamento já que a chefia de seu gabinete estaria reservada a uma mulher.

No entanto, como noticiado pela BBC, a ausência de mulheres no comando de ministérios do governo do presidente interino poderá “levar o Brasil a despencar 22 posições no ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial”.

Horror, ódio e revolta foram alguns dos sentimentos expressados por parte da sociedade em repúdio ao estupro ocorrido no Rio de Janeiro e contra as tentativas de culpabilizar a vítima. Como bem definiu Márcia Tiburi, “na lógica do estupro, a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada”[2].

Inúmeras vozes levantaram-se contra a cultura do estupro. Vozes femininas denunciaram também o silêncio complacente de parte significativa dos homens. Num vídeo com ampla circulação, ecoou o alerta: “o silêncio é amigo do estuprador”.

O silêncio amigo do estuprador não é apenas daqueles que são testemunhas oculares desse tipo de violência.

Foi apenas na tarde de sexta-feira que Michel Temer pronuciou-se sobre o episódio: “É um absurdo que em pleno século 21 tenhamos que conviver com crimes bárbaros como esse. Tomaremos medidas efetivas para combater a violência contra a mulher”. Parecendo ignorar a necessidade de aprovação de uma emenda à Constituição para atuação da Polícia Federal em casos da espécie, disse também: “Vamos criar um departamento na Polícia Federal tal como fiz com a delegacia da mulher na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Ela vai agrupar informações estaduais e coordenar ações em todo país”.

Não nos esqueçamos: uma das primeiras medidas do governo interino foi extinguir o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, transformando-o em secretaria secundária subordinada ao Ministério da Justiça.

Flavia Piovesan, atual titular desta Secretaria, nomeada, dentre outras razões, como tentativa de afastar as críticas quanto a ausência de mulheres no primeiro escalão da administraçao federal, em sua primeira entrevista à imprensa já como membro do governo, declarou que uma de suas principais prioridades seria o combate à violência contra a mulher. No entanto, até o momento sua voz não foi ouvida a respeito do caso do estupro ou sobre visita ou propostas apresentadas por Alexandre Frota ao Ministério da Educação.

Michel Temer, em seu discurso de posse e em diversas outras oportunidades, tem afirmado que sua meta é a de fazer um governo de conciliação e de pacificação nacional. As trabalhadoras do mundo, os movimentos feministas e os movimentos populares sabem que não existe conciliação entre classes sociais com interesses, prioridades e projetos tão antagônicos. À mercê de tanta violência e de tantas desigualdades, as mulheres não estão e não ficarão em paz.

“Ações, não palavras”. São esses os escritos que constam no túmulo de Emily Davison, sufragista que entregou a vida na luta pelo direito ao voto das mulheres na Inglaterra.

A luta feminista não tem data para acabar. “Viver é tomar partido”, disse Antonio Gramsci.

Giane Ambrósio Álvares é advogada, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares. 

Patrick Mariano é escritor. 

Ambos escrevem a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Rubens Casara, Marcelo Semer e Marcio Sotelo Felippe.

[1] http://www.revistaforum.com.br/2015/03/02/em-rede-nacional-frota-confessa-estupro-e-povo-aplaude/

[2] Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/04/logica-do-estupro/

Redação

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