A marcha da vergonha alheia, por Matheus Pichonelli

Enviado por André Paulistano

Matheus Pichonelli analisa a posição da mídia em relação ao momento de vida de jovens estudantes revoltados com o governo

Do Yahoo

A marcha da vergonha alheia

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Meu nome é Matheus, nasci no interior de São Paulo, tenho 32 anos e não passo um dia sem acordar, olhar para o céu e agradecer a Deus por não ter inspirado a invenção do YouTube, do Facebook e de outras quinquilharias eletrônicas antes no fim dos anos 1990.

Naquela época, eu e meus amigos saíamos da infância/adolescência para entrar na vida adulta com a sensação estranha de que nada no mundo funcionava. A sensação era estranha, mas nítida. Diferentemente do que dizem, nem tudo é ausência ou confusão nessa fase de descobertas. Pelo contrário: tudo parecia claro e evidente, e este é o problema quando não sabemos lidar com os excessos – de tempo, de disposição, de certezas e de desencantos nas relações familiares, afetivas e políticas.

Tudo em excesso, caminhávamos com a convicção de que poderíamos mudar o mundo ao fim de um refrão de pop rock. Extravasávamos nossas indignações em rodas-punk entre sopapos entre marmanjos e acreditávamos atingir o ápice da rebeldia politizada quando o Dinho Ouro Preto visitava nossa cidade para cantar as sobras deixadas pelo Renato Russo entre impropérios destinados ao Sarney.

Já no cursinho, éramos incumbidos da missão de lutar contra tudo o que está aí graças a um professor de redação que, entre letras descontextualizadas de Chico Buarque e frases decoradas de colunistas de jornal e revistas alternativas, não perdia a chance de nos lembrar o quanto éramos alienados e pobres em espirito por sermos contemporâneos de celebridades como Paulo Coelho, É O Tchan e Tiazinha.

Provocados a sair da letargia, começávamos a trocar os bailes de sábado à noite por leituras silenciosas de Machado de Assis. Reaparecíamos na segunda-feira como que armados de candeeiros e lamentos por sermos tão poucos num país que mal sabia ler – sem perceber que havia uma satisfação mórbida na sensação de adentrar naquele mundo de signos restritos.

Nessa época, mais ou menos quando o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou ser inevitável o racionamento de energia, juntamos meia dúzia de gatos pingados do cursinho e convocamos o professor provocador a nos ajudar a propor uma ação popular contra o governo federal. Nossa meta era garantir eletricidade para o restante da população imóvel em seu comodismo.

O professor, que anos depois descobriríamos ser mais careta que nossos pais, jamais apareceu, e a reunião, no salão de festas do meu prédio, virou um encontro exclusivo de meninos revoltados com a lascividade das meninas daquela turma, todas interessadas (agora sabemos por quê) pelos rapazes mais velhos da faculdade.

Tínhamos tanta noção de nossa importância no mundo que, logo após os atentados de 11 de Setembro, nos escondíamos debaixo das cadeiras quando ouvíamos barulho de motor de avião. 

Aquele período de certezas inabaláveis demorou algum tempo para esmorecer. Na faculdade, descobríamos que não sabíamos sequer escrever. Víamos um político na frente e, em vez de ira, expressávamos medo e tremedeiras. E começamos a ficar confusos quando o Sarney, aquele que xingávamos a plenos pulmões no show de rock, tornou-se presidente do Senado e fiador do governo para o qual fizemos campanha às custas de murros na mesa, saliva e amizades que sobreviveram ao colegial, mas não à nossa primeira eleição.

O mundo era líquido, cinza, desbotado, e se desconfiasse disso antes não teria passado vergonha ao me propor a escrever para o jornal da cidade nem a um site de jovens autores da era pré-Orkut. O fracasso daqueles anos – inversamente proporcional à repercussão daqueles textos – é a benção de quem os revê após 15 anos. E o que me poupa da vergonha de ter escrito, no alto dos meus 19 anos, uma carta aberta a George W. Bush em uma coluna do jornal local, o mesmo para o qual escrevi um manifesto anticotas com uma lista de argumentos que me fariam corar pouco tempo depois. Ou do constrangimento de ter hoje esmiuçado um rascunho de conto que tinha tudo – moralismo, sexismo, homofobia – menos valor literário. 

A dúvida é talvez a maior benção com a qual aprendemos a lidar com a idade. Ela nos poupa da culpa da incompletude, das contradições e da autocensura de quem escreve para encher de vãs palavras e mais confusão as prateleiras, e não o contrário.

Por sorte, o tempo das nossas certezas não foi documentado e não está disponível para sempre em sites de compartilhamento. Por sorte, nenhum jornal estava interessado em cobrir a reunião em nosso salão de festas. Ninguém espetou um microfone nos nossos rostos para saber o quanto nada entendíamos de nada. Caso contrário, talvez nos sentíssemos encorajados a sair às ruas em direção a Brasília, Pequim ou Nova Yoirk para levar a boa-nova e nossas palavras agressivas e pouco depuradas pelo tempo. 

Num tempo de mal-estar mal nomeado, corremos, naqueles encontros, o risco de sermos rascunhados como símbolos de uma juventude que sairia da letargia e começava a mudar a história. Mentira. Só queríamos transar. 

Éramos confusos e nem desconfiávamos. Por isso tínhamos tantas certezas. Por isso, quando contrariados, apelávamos ao deboche, à violência, ao blefe. Era a reação típica da nossa idade proferir bobagens, e elas fatalmente seriam registradas no YouTube, que só seria inventado cinco anos depois.

Sorte nossa.

Se alguém, além de nós, nos levasse a sério, correríamos o risco de entrar para a história como os rebeldes da vergonha alheia. Os jornais ganhariam uma história e os leitores, uma grande piada. 

Em tempo. A nossa mobilização mambembe no fim dos anos 90 era antes um sinal de desorientação e arrogância do que de imaturidade. Posso citar dezenas de jovens que não chegaram aos 20 anos e são capazes de fazer, em suas redes, as melhores reflexões sobre o período atual. Nenhum deles se acredita imbuídos de uma missão moral ou salvacionista. Há um nome para essa mobilização tão incômoda quanto despretensiosa: consciência, e ela não tem hora para surgir.

Imagem: Cena do filme O Incrível Exército de Brancaleone, do qual não sabíamos a existência aos 19 anos

Redação

12 Comentários

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  1. Mas que heresia. Usar

    Mas que heresia. Usar o Exército de Brancaleone para ilustrar a marcha de um punhados de vilões de HQ que não aguentariam um peido do herói “Capitão Lamarca”. 

  2. Matheus,
    E se quem inspirou a

    Matheus,

    E se quem inspirou a invenção do facebook fosse apenas alguém em um momento assumido de desespero e confusão misturado com o encanto pela internet e ilusão sobre as possibilidades de um site que pudesse conter o que há de melhor nas pessoas?

    Eu realmente não sei como foi parar nas mãos de um Zubkerberg da vida e do porque se transformou no monstro que conhecemos; menos ainda o porquê de ser tão bem aproveitado pelos reacionários e ignorado por quem tem muito a dizer.

    Mas tenho certeza de que sua confusão adolesente da época teria acrescentado muito mais. E sem apelar para a ignorância em estado bruto, como vemos hoje.

     

  3. O homem e suas circunstâncias, não é assim que se diz?

    Senão, vejamos, Mário Prata, sempre ativo e crítico, escreveu em 25/8/1999 , no Estadão, esse texto, em tempos de FHC.

    Não sabíamos o que nos esperava, nos espera e nos espererá ainda.

    A saber :

     

    UNE ou desune ?

     

    Eu, a princípio, achei que tinha lido errado. Mas li de novo. O erro não era meu. Era de um moleque de 22 anos. Nascido, portanto, em 1977. Ele é o novo presidente da União Nacional dos Estudantes. Sabe qual é a meta dele? Derrubar o Fernando Henrique Cardoso. Simples, né? Ir pra rua e derrubar o presidente do País. Ele e a multidão do PC do B, um partido já natimorto quando ele nasceu.

    Será que esse moleque tem alguma noção do que aconteceu com o Brasil de 77 pra trás? E com a própria UNE? Ou será que ele achou lá um papel dos anos 70 em que estava escrito vamos derrubar o presidente e não leu a data?

    Será que ele não sabe o que a UNE fez durante anos, contra a ditadura para, agora, finalmente, a gente colocar lá o Fernando Henrique? Será que ele não sabe quantas pessoas morreram para elegermos o FH? Sabe quanto sangue, garoto, foi derramado para que a minha geração tirasse os militares do poder? Sabe quantos estudantes da UNE sumiram cumprindo essa missão histórica? Não precisa responder. Você sabe.

    Derrubar o presidente, rapaz? Será que você não tem mais nada pra fazer, não? Eu posso até não concordar com o nosso presidente. Mas vivemos numa democracia. Me emocionei quando ele subiu aquela rampa. Eu estava lá, trabalhando.

    Você não viveu a ditadura, menino. Dê graças a Deus por termos o Fernando Henrique como nosso presidente. É um homem digno, íntegro, honesto e não mata estudante. Está fazendo o possível. Se está errando aqui ou ali não é de propósito. Não é pra te irritar. Foram muitos mortos, moleque, para conseguirmos a democracia.

    Você devia estar preocupado com algumas mazelas do ensino no Brasil como o ministro Paulo Renato está. Ele é outro, que deu parte da juventude dele para chegarmos na democracia. Como o José Dirceu e o José Serra, que ocuparam esse seu cargo que, na época, era importante e respeitado. Homens como o Vinicius Brant sentaram aí nessa sua cadeira.

    Vai conversar com o Paulo Renato, vai. Vai lá ver o trabalho que eles estão tentando fazer. Vai lá discutir o vestibular, os cursinhos, o ensino pago, o salário dos professores, as bolsas escassas, as escolas apodrecendo. Vai lá tentar ajudar na luta contra o analfabetismo. Não seria melhor levar os estudante para a rua para derrubar o analfabetismo?

    E quem levou o ensino a esta situação que está hoje não foi o Fernando Henrique. Foram os militares que resolveram abolir a cultura neste país porque eles sabiam que os analfabetos não atrapalham. Há exceções.

    Eu não posso acreditar, meu caro, que a sua única preocupação seja acabar, logo de cara, com a democracia. Você acha, você que foi eleito pelo voto indireto, você acha que todos os universitários do Brasil pensam como você? Quem te disse isso? Aqueles vetustos com unha encravada do PC do Brasil? Sai dessa, menino. Caia na real e não no real.

    Você tem ideia do que pode acontecer com a economia do País se você conseguir tirar o presidente de lá? Tem noção das complicações internacionais que isso pode causar? Claro que você não vai conseguir. Não é isso que me preocupa. O que me preocupa é você estar preocupado com isso. Dói, menino, dói.

    Você ocupa um cargo, você representa um segmento da nossa sociedade, menino. Você tem de lutar com todas as suas forças para melhorar o ensino no nosso País. Para isso você tem o poder. Para derrubar o civilíssimo Fernando Henrique, não tem. Não passa de uma piada. Na hora errada, cara. Mesmo discordando do homem, como a maioria discorda, ele tem de ter o nosso apoio e a nossa ajuda. E respeito. E não adianta responder esta minha crônica com esse seu discurso fora de moda que eu não vou nem poder ler.

    Estou entrando em férias hoje e espero que, quando voltar, a UNE tenha caído em si. Caído democraticamente. Preocupe-se, meu caro, com os problemas dos nossos estudantes que estão por aí, tão perdidos quanto a sua direção. Me desculpe se peguei meio pesado. Mas é que era assim que eu fazia, quando era universitário, contra os ditadores assassinos. Do Brasil e de toda a América Latina

    http://marioprata.net/cronicas/

    1. “Dê graças a Deus por termos

      “Dê graças a Deus por termos o Fernando Henrique como nosso presidente. É um homem digno, íntegro, honesto…” É de doer. E olha que ele escreveu isso em 1999, com estelionato eleitoral, compra da reeleição e tudo mais!!!! Que derrapada hein Mário Prata?! Isso me dá uma vergonha alheia…

      Por outro lado, se transladarmos este texto para hoje e, substituirmos FH por Dilma, e o presidente da UNE pelo menino Kataguiri, faria muito mais sentido. Afinal, FH não foi (re)eleito com sangue suor e lágrimas, ao contrário, foi reeleito com amplo apoio dos setores mais reacionários do país, que muito contribuiram com a ditadura militar, muito diferente de Lula e Dilma,

      1. Esse foi mesmo o objetivo de eu trazer esse texto do Prata

        Como a história em suas circunstâncias, seus motivos claros ou ocultíssimos nos faz acordar para os próximos e próximos e próximos momentos em que viveremos.

    2. E hoje, o que se diz para

      E hoje, o que se diz para FHC, ele que sabe de tudo isso e fica proclamando o golpe? O presidente da UNE à época era um jovem, talvez irresponsável. E FHC? Por toda a vida que teve deveria ser um ancião, daqueles que servem de reserva civilizatória para os grupos e sociedades. Mas escolheu ser a escória.

  4. Sei não, mas isso soa como um desabafo
    de quem vivia na redoma da classe média, do tipo que brincava de ser politizado, moderno, mas que achava carreira mesmo era nas engenharias. Humanas era só pra transar. Esse tipo, na casa dos trinta, já careca, é o projeto de tiozinho que vamos ver apoiando movimentos conservadores utilizando o argumento de que todos os jovens são tolos e seguem coisas tolas, logo, meus pais é que estavam certos. Tal niilismo é típico de quem tem a luta política na juventude marcada por mentirinhas. Foi jovem e nunca foi incomodado pela polícia, não saiu com uma pastinha cheia de currículos levar não em portaria de fábrica, não sabia o preço do feijão ou ter que viver de bolsa trabalho na universidade. Não amigo, ninguém na vida real se escondeu de avião em 2001, pois já se escondiam quando havia tiroteio na vila. Se o amigo blancaleone pedisse para o papai deixa-lo uns quarteirões abaixo, na quebrada, quem sabe deixasse esse niilismo de lado e não se acomodar se, pondo a culpa no pobre professor de literatura.

    1. Ou talvez você esteja se

      Ou talvez você esteja se projetando no que você imagina ser o autor do texto.

       

      Em nenhum momento ele mostra nihilismo, só diz que devemos ter capacidade de entender o contexto em que estamo sinseridos.

       

      E de fato, afirma claramente sua condição de classe média. Nunca se coloca como herói desfavorecido da quebrada, como você está fazendo.

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