A música esquecida da dupla Rodger e Teti

Os cearenses explodiram nos anos 70. Alguns permaneceram, outros menos.

Fuçando nos meus arquivos, encontrei esse LP da dupla Rodger e Tati. No repertório, a inesquecível “Siá Mariquinha”, que nossa mãe Teresa cantava para os filhos na infância.

Depois do som, uma reportagem de O Povo de 2013 com Rodger.

 

Entrevista: Rodger Rogério, cearense de letras, histórias e voz

O que faz de um artista um ídolo? Seria uma vida de muitos sucessos e popularidade? Ou logo num primeiro trabalho é possível alguém se inscrever na galeria dos imortais? Se esta segunda proposta estiver correta, existem muito motivos para se admirar Rodger Rogério. Há exatos 40 anos, junto com Ednardo e Teti, ele gravaria o antológico Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem. Popularizado como Pessoal do Ceará, o disco foi o marco de uma geração de compositores e cantores cearenses que, até hoje, funciona como farol para os mais novos.

No entanto, longe de sonhar com o sucesso, Rodger preferiu uma vida discreta, mesmo que não perdesse a arte de vista. Foi o estudo da Física que o levou a viajar pelo Brasil nas décadas de 60 e 70. E, fosse em Brasília, Rio ou São Paulo, novos encontros, velhos amigos e o talento de sempre fizeram surgir canções marcantes como “Retrato Marrom”, “Falando da vida” ou “Ponta do lápis”.

Timidez 

Uma timidez implacável insistiu em lhe puxar o tapete sempre que algum convite mais assanhado era feito. E foi por isso que ele chegou a fugir de nomes como Elis ou Roberto Carlos. Sim, o rei chegou ao portão de Rodger Rogério, mas não levou nenhuma música. Hoje, o cearense não nega que se arrepende de tamanha timidez. Por sorte, seu legado musical o redime e novos artistas e ouvintes já têm a oportunidade de vê-lo orgulhoso da própria voz. A voz que, a seguir, conta a própria história.

Queria que você começasse lembrando seus primeiros contatos com a arte.

A primeira arte que me tocou foi a música mesmo. Eu me lembro de querer me alfabetizar logo pra ler letra de música. Para acompanhar cantor cantando e tentar ler na mesma velocidade. Então eu sempre fui muito ligado em música. 

Qual é sua primeira memória musical?

Meu pai cantava muito Orlando Silva. Tem música que aprendi não sei como. Acho que foi de ver minha mãe cantar. Música do Lauro Maia, do Luiz Assunção, por exemplo. Música dessa turma que tocava no rádio. Eu também ia a muitos programas de auditório, tanto na Ceará Rádio Clube quanto da Rádio Iracema. 

E em termos de profissão, o que lhe chegou primeiro: a música ou a Física?

Sempre gostei muito de estudar. Eu fiz Física por curiosidade. Eu queria entender aquele negócio, que me pareceu muito complicado. Interessante que, no ano que entrei pra universidade, eu tirei minha carteira da Ordem dos Músicos. Mas logo vi que pra ser violonista não daria tempo. Ou eu estudava violão ou Física. Eu lembro que tinha o Cirino, que também tocava violão, e a gente era mais ou menos do mesmo nível. Quando eu o vi evoluindo, passando de mim, vi que tinha condição de acompanhar, mas não tinha tempo. Eu queria estudar Física. Aí eu vi que tinha facilidade pra compor. Comecei e no início não mostrava pra ninguém. Depois passei a mostrar umas músicas e no meio eu botava uma minha. Como ninguém reclamava, ia passando (risos).

O que eram essas primeiras composições?

Era Bossa Nova. Eu era aprendiz de Tom Jobim. Louco por Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra também. Eu adorava a música desse pessoal. Era nessa linha. 

Como acontece o encontro com a turma que depois formaria o “Pessoal do Ceará”?

Era época de grêmio estudantil, o pessoal descobre que eu bato um violão, tinha reunião ali pelo Benfica. Eu ficava tocando, fazendo serenata. E fui conhecendo as pessoas. Na Arquitetura era bom porque tinha uma discoteca enorme e um som bom. 

O que vocês ouviam?

A música era, basicamente, bossa nova, jazz e, depois, os Beatles. E a gente ouvia muito. Era uma coisa de louco como se ouvia música. E a gente precisava ouvir muito também porque a informação era pouca. Hoje, quando vejo, você baixa uma coisa na Internet e vem com a cifra, a letra, tudo pronto. Na época, era tudo no ouvido. Uma dificuldade pra aprender, mas fez bem porque a gente se desenvolveu muito.

E, nesse meio, você foi conhecendo as pessoas.

O Augusto (Pontes), o Fausto (Nilo), o (José Soares) Brandão, Francis Vale. Foi tudo ali no CEU, como chamava o Clube dos Estudantes Universitários. Depois a gente começou a tomar umas, passou a frequentar o Bar do Anísio, que era longe da Cidade, na Beira Mar. Lá a gente tocava violão, mostrava música uns pros outros. O Petrúcio (Maia) eu também conheci nessa época. Inclusive, participamos de um grupo juntos, chamado Cactus, com música, poesia e tal. Foi aí que comecei a mostrar minhas músicas. Mas assim, sem dizer que eram minhas.

Você compunha sem pensar em gravar?

Não, não pensava. O mercado de música não existia pra mim. Essa história de ir pro Rio de Janeiro, pra São Paulo, só foi depois. Teve a história dos festivais, né? E alguns foram importantes pra nós, como o da Rádio Assunção, em 1968, que o Aderbal Filho promoveu e que agregou mais gente. Foi nele que nós conhecemos o Fagner. No ano seguinte, teve o Festival Nordestino da Rede Tupi, que tinha eliminatórias em Fortaleza, Recife e Salvador. Eu me inscrevi e minha música tirou o segundo lugar. Era o “Bye Bye Baião”, que teve letra do Dedé Evangelista, que foi meu professor na Física. A música foi segundo lugar, mas foi a mais tocada, a que mais chamou atenção. Isso foi importante porque o pessoal da televisão aqui ficou muito animado em fazer programa de música. 

Queria que você lembrasse a época em que muitos dessa turma saíram de Fortaleza.

Eu terminei meu curso de Física em São Paulo, na USP. A UFC fez um convênio com a USP e nós terminamos o curso lá. E teve um professor que levou um monte de aluno pra Brasília. Eu fui um dos que ele levou, e o Dedé Evangelista também. Nessa época, o Fausto, o Augusto também foram para Brasília. O Fagner também foi pra fazer o vestibular lá, mas ele queria era chegar no Rio de Janeiro. Logo quando ele entrou na universidade, teve um festival universitário e as três músicas que ele inscreveu emplacaram. Enquanto isso, o Belchior ganhou o festival universitário no Rio. Aí assanhou todo mundo. Vimos que a música chegou no Rio. O Belchior foi um pouco esse estopim. E quando eu terminei o mestrado em Brasília, fiquei sem saber pra onde ir. Fui pra São Paulo e me hospedei na casa do Belchior.

E, ao lado da Física, você continuava a compor…

Compunha sim. Lá em São Paulo nós também participamos de um programa na TV Cultura que foi muito importante. Era um programa de entrevistas. E a sistemática era a seguinte: a gente conversava com o entrevistado durante horas e, depois, o produtor mandava o roteiro dizendo onde ele queria música. Era música pra uma pergunta, música comentando resposta. Quem fazia era eu, Ednardo, o Belchior e a Teti. Com esse programa a gente começou a ficar conhecido e começaram a chamar a gente de “Pessoal do Ceará”. Como a gente chamava todo mundo de pessoal, passaram a nos chamar de “Pessoal do Ceará”.

E, como nasce, no meio dessa turma, o primeiro disco?

Um dos entrevistados desse programa foi o Walter Silva, que era produtor de discos aposentado. Mas ele se encantou com a nossa música. No dia da entrevista dele, a gente chegou na casa dele tipo oito horas da noite e saímos de lá de manhã. Ele queria fazer um disco com todo mundo. Mas, como o Belchior já estava meio encaminhado pra fazer um disco sozinho, o Fagner também, acabou ficando nós três. Depois de muita briga, a gente conseguiu lançar o Pessoal do Ceará aqui, antes do Carnaval.

Esse primeiro disco, Meu corpo, minha embalagem todo gasto na viagem, é um clássico da música cearense. Esse ano, ele completa 40 anos. Como você avalia esse disco hoje?

Eu gosto do disco. Eu não gosto muito das minhas intervenções de cantor. Na época eu não era cantor e nem gostava de ser. Eu cantava à força. Todo mundo forçava e eu dizia “basta a Teti”. Essa história de eu virar cantor foi depois dos 40 anos, quando fiz um curso de teatro e meu primeiro personagem foi um cantor lírico. Aí descobri que tinha voz.

Mas você também vê esse disco como um clássico?

Como foi o primeiro, é um pouco emblemático. Essa música “Terral” tocou no Brasil todo. E o fato de a gente não ser um grupo de músicos atrapalhou um pouco a carreira do disco. Lembro que a gente chegava numa rádio, o Ednardo começava a cantar “Terral” e o pessoal ficava “cantem juntos” olhando pra gente. Éramos compositores independentes, mas as pessoas queriam o “Pessoal do Ceará”. Mas o disco eu gosto. 

Dois anos depois do Pessoal do Ceará, você lançou o Chão Sagrado, com a Teti. Qual é a história desse disco?

A escolha das músicas era mais ou menos o que nós estávamos cantando naquela época. O Walter Silva deixava a gente bem à vontade para escolher o repertório. Ele confiava na música, no talento da gente. Agora, o Chão Sagrado achei mal mixado, equalizado. A Teti ouve o disco e diz que a voz dela está muito gasguita. É um disco bom, mas tem esse defeito. Depois que o Ednardo gravou sozinho, a ideia da RCA era que eu e a Teti fôssemos uma dupla mesmo, como tinha, na época, o Marvin Gaye e a Diana Ross. Mas quem acabou ficando com esse posto foi Jane e Herondy.

Sua geração fez discos que se tornaram antológicos local e nacionalmente. No entanto, boa parte destes discos está fora de catálogo. Isso lhe incomoda?

Olha, não…. O Ceará não curte tanto seus artistas quanto outros lugares curtem. Não tenho reclamação. Acho até que sou festejado demais, por conta de que eu não procuro, não fiz uma carreira mesmo. Eu voltei pra Fortaleza com o pessoal da reitoria me pressionando, dizendo que ia haver uma reclassificação e eu ia ganhar uma bolada. Eu vim, não teve a reclassificação, não teve a bolada. Mas eu não quis mais ir embora. A vida aqui é melhor.

Quanto tempo você passou fora?

Ao todo, foram seis anos. Mas o primeiro foi estudando, não tinha nada de música. Aliás, tinha, mas eu fugia muito. A Nara Leão quis me conhecer e marcaram uma reunião na casa dela. Eu fui e voltei da porta. Não tive coragem de entrar. Era uma timidez muito grande. 

Em algum momento você pensou em largar a Física para viver de música?

Teve um momento, quando a gente gravou o primeiro. A gente começou a ser muito requisitado e eu sofri uma certa pressão na USP. Em 1972 eu fui pra dar aula lá. Havia uma queixa porque um professor da universidade não deveria estar se expondo daquele jeito. Os alunos achavam uma maravilha. A gente começou a fazer programa semanal na Record e isso incomodava o pessoal.

A música lhe deu muito dinheiro?

Pra mim não. Agora, os meninos ganharam. O Fagner ficou rico, o Belchior ficou rico, o Ednardo ficou quase rico. Eu passei mais de 10 anos sem receber um tostão de direitos autorais. Quando fui ver, já tinha sido desfiliado. Acabei de me filiar de novo à UBC (União Brasileira de Compositores).

Essa timidez já lhe atrapalhou muito, não foi?

Atrapalhou. O Roberto Carlos uma vez marcou uma reunião comigo por que ele queria gravar duas músicas que ele tinha ouvido falar. Era “Barco de Cristal” e “Daniela”, que eu fiz pra minha filha. Eu não fui. O pessoal só faltou dar em mim. Essa do Roberto Carlos foi fogo. Ele marcou num horário em que eu estava me apresentando numa casa em São Paulo e eu resolvi cumprir minha obrigação. Mas na realidade eu não fui foi por timidez.

Você se arrepende de ter deixado passar essas oportunidades com o Roberto, a Nara…

Me arrependo, me arrependo. A Elis Regina também me procurou. Pra eu ir na casa dela foi um problema. E quando eu fui, ela já tinha fechado o repertório daquele disco que ela gravou duas músicas do Belchior (Falso brilhante). Ela morava pertinho da minha casa e queria ouvir o que eu tinha. Eu fui com o Clodo e a Teti, e ela recebeu a gente muito bem. Nem levei o violão.

Você se considera uma referência para essa nova geração?

Rapaz, estão querendo dizer isso (risos). Mas eu tenho tão pouca coisa gravada. Minha obra é bem maior do que a que ganhou acesso às pessoas. É muito pouco o que eu apresentei. O Fagner, o Belchior, o Ednardo, esses sim é que são grandes referências. Eu menos.

Curiosamente, mesmo sendo um nome referencial da nossa música, você só foi gravar um disco solo em 2003…

Pois é, e eu ainda não era cantor (risos).

Por que essa demora toda? Tem a ver com a o fato de você não gostar de se ouvir cantando?

Tem sim. Nesses dias que eu já estava me metendo a cantar, já não ia com tanta dificuldade, mas não me via cantor. Mas tinha algumas músicas que eu achava que cantava bem. Esse disco foi gravado ao vivo, não teve ensaio. Foi uma loucura. O Mingo (Araújo) não conhecia nenhuma música. Eu o conheci no dia (da gravação). Ele tava aqui sem fazer nada e foi. Mas o Manassés e o Aroldo (Araújo) são meus amigos de longa data. Quem escolheu as músicas, basicamente, foi o Manassés, que pegou as que ele conhecia mais. Foi o Ivan Ferraro quem me convidou. 

Na época, você chegou a comentar que tinha projetos pra outros discos. Por onde andam esses projetos?

Estão esperando alguém que me carregue (risos). 

Fonte: O Povo

Luis Nassif

1 Comentário

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  1. PESSOAL DO CEARÁ
    Belíssimo e merecido resgate de memória, Seu Nassif!
    Congratulations!
    Minha querida Mãe, Dona Nenem, também vivia a entoar “Sá Mariquinha”, obra do conterrâneo Luiz Assunção.
    PS: através de nosso comum colega e meu dileto amigo jornalista Nelson Augusto (da EXCELENTE Radio Universitária de Fortaleza), fiz chegar ao Rodger o link do post.

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