Ano pelo avesso, por Rubens Casara

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do Justificando

Em um de seus últimos livros, Eduardo Galeano retratou o mundo pelo avesso, as vilanias que ganhavam aplausos, os absurdos naturalizados, as opressões patrocinadas pelo mercado (sempre idealizado pela “Inteligência Brasileira”, mesmo diante de catástrofes como a de Mariana) e executadas pela ação ou omissão do Estado que impediam as potencialidades humanas, os sonhos e os sorrisos. O historiador do mundo pelo avesso, uma das muitas perdas deste ano, teria muito trabalho para contar o ano de 2015, em especial no Brasil.

Desde a redemocratização formal do país, a democracia, entendida para além da participação popular na tomada de decisões, como concretização dos direitos fundamentais, nunca foi tão aviltada. Os direitos fundamentais foram violados despudoradamente, isso com a omissão do Poder Judiciário, que cada vez mais se distanciou da função de garante da democracia para produzir decisões ao gosto da opinião pública, mais precisamente, da opinião publicada pelos grupos econômicos que detém os meios de comunicação de massa. Aprofundou-se a tendência de normalizar o afastamento dos direitos fundamentais, em especial daqueles que não interessam à sociedade de consumo.

Nesse ano, o governo capitaneado por Dilma Rousseff abusou de errarDa adoção de uma “política de austeridade”, que impediu o crescimento econômico e aumentou o desemprego, à defesa de medidas autoritárias (como, por exemplo, a chamada “Lei do Terrorismo”, instrumental inútil para evitar atentados protagonizados por pessoas dispostas a morrer por um Deus ou por uma causa, mas com enorme potencial para ser utilizado na repressão dos movimentos sociais). Um ano em que faltou coragem ao governo (essa virtude tão ausente também no Judiciário) para tratar de temas urgentes como o controle social e a democratização dos meios de comunicação. Covardia percebida também no tímido indulto de Natal, a perda de uma chance histórica de reduzir o drama do encarceramento feminino.

Com as oposições não foi melhor. Parcela da oposição, ligada aos detentores do poder econômico, inconformada com o resultado das urnas, demostrou profundo desrespeito com as regras do jogo democrático. Alguns chegaram a defender um novo golpe militar. Outros,  golpes mais sofisticados,travestidos de “legais”através do Congresso ou do Poder Judiciário.

Um outro grupo de opositores, que podem ser apontados como representantes tupiniquins do chamado movimento pós-político, afirmaram-se como opção para romper o dualismo entre os defensores do projeto político petista e os saudosos do projeto tucano, porém, mostraram-se incapazes de reconhecer os acertos desses dois governos. Ao negarem a polarização entre “direita” e “esquerda” (tida como obsoleta) e manejarem categorias como “boa governança”, “democracia cosmopolita” ou “democracia sem partidos” em seu discurso, acabam por encobrir a conflituosidade inerente à política, a historicidade de cada sociedade (impossível esperar um modelo de “democracia cosmopolita” que dê conta tanto do Brasil, de passado escravagista, quanto da Europa) e a divisão da sociedade em classes. Como se não bastasse, para empobrecer ainda mais o universo político brasileiro, os pós-políticos, juntamente com parte da chamada “oposição de esquerda”, resgataram o discurso do monopólio da virtude (que era frequente na origem do Partido dos Trabalhadores).

No campo das políticas de saúde pública, além da ameaça de esvaziamento do SUS, a desastrosa nomeação, sem qualquer debate ou consulta aos profissionais e usuários do sistema, de Valencius Wurch (escolha pessoal do Ministro da Saúde, Marcelo Castro – por sua vez, fruto da realpolitik empreendida pelo Partido dos Trabalhadores) para a coordenadoria de saúde mental, um profissional que tem no currículo o exercício do cargo de diretor técnico da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, tristemente conhecida pelas constatadas violações de direitos humanos (tais como a prática sistemática de eletroconvulsoterapia, a ausência de roupas para os usuários, internações desnecessárias de longa permanência, precariedade da alimentação, etc), bem revela as opções equivocadas de um governo que se afirma comprometido com os direitos humanos (vale lembrar que, desde o governo FHC, a coordenadoria de saúde mental sempre foi ocupada por profissionais comprometidos com o processo de reforma psiquiátrica).  

O ano de 2015 também foi um desastre no Congresso Nacional, dominado pela bancada “BBB”, dos defensores do boi (do Agronegócio), da bala (da indústria da segurança pública) e da bíblia (de uma visão religiosa machista, homofóbica, preconceituosa, egoísta e voltada à teologia da prosperidade, em que mais importante do que a solidariedade cristã são os bens materiais prometidos pelos pastores). Sobreviveu-se neste ano ao pior Congresso brasileiro desde a redemocratização.

No âmbito do sistema de justiça, nenhuma medida foi adotada para romper com a tradição autoritária em que estão inseridos os intérpretes e que condiciona a interpretação/compreensão/aplicação protagonizada pelos atores jurídicos. Ao contrário, a marca de 2015 foi o ativismo judicial (típico de sociedades em que ocorre a demonização da política), no qual os atores jurídicos, em especial os juízes, cada vez mais ignoraram limites aos “decisionimos” e perversões. Isso para não falar na busca por holofotes.

 No campo da justiça penal, a tendência à espetacularização de alguns casos somada ao fenômeno da administrativização das funções do juiz criminal, transformado em órgão de segurança pública, foram sinais firmes da tendência em curso do afastamento do modelo liberal para a edificação de uma justiça penal autoritária.   

Ao longo do ano, percebeu-se com maior clareza o processo de empobrecimento do imaginário, com a hegemonização do pensamento binário-bélico, que reduz a vida a uma luta do bem contra o mal e divide as pessoas em amigos ou inimigos. Jessé de Souza, em interessante estudo, levanta a tese do “sequestro da inteligência brasileira”[1], com ações e estratégias que retiram dos indivíduos a possibilidade de compreender a complexidade da sociedade, suas contradições e conflitos. Assim, parcela da “inteligência brasileira” atuaria, conscientemente ou não, para aqueles que detém o poder econômico ao reforçar no imaginário do povo brasileiro uma falsa e reducionista oposição entre o Estado, sempre demonizado, e o mercado, apresentado como o reino da virtude e da eficiência (essa fraude monumental pode ser percebida – e foi sentida por muitos – no desastre de Mariana, promovido pela iniciativa privada com enormes doses de conivência estatal).

A neofascistização da sociedade brasileira é outro dado desse ano pelo avesso. A ode à ignorância, o ódio às diferenças, a opção pelo uso da força em detrimento do saber/conhecimento, a raiva dirigida às (poucas e insuficientes, porém necessárias) política públicas capazes de produzir efeito concretos tanto na redução da brutal desigualdade social quanto na profunda concentração de riquezas em poucas mãos e o medo da liberdade (que faz com que pessoas clamem por medidas autoritárias que afastem a responsabilidade inerente ao exercício da liberdade) condicionaram a atuação de considerável parcela da sociedade. Os linchamentos, as agressões e o desrespeito ao outro foram naturalizados e seus adeptos parecem se orgulhar de sua estupidez.

Diante desse ano pelo avesso, em que vilões foram transformados em heróis, a burrice (entendida como categoria moral) tornou-se motivo de orgulho, o projeto democrático foi visto como algo descartável, o que esperar de 2016? Mais amor e menos ódio, mais Chico e menos Garneros, que Valencius saia e a reforma fique, que os direitos fundamentais sejam respeitados e os projetos autoritários, bem como seus símbolos e defensores, definitivamente arquivados na lata do lixo da história. Utopia? Pode ser. Mas, vamos nos lembrar novamente do Galeano.    

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
Imagem: Capa do Livro “De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso”, de Eduardo Galeano.

[1] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015.
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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  1. “Em um de seus últimos

    “Em um de seus últimos livros, Eduardo Galeano retratou o mundo pelo avesso, as vilanias que ganhavam aplausos, os absurdos naturalizados, as opressões patrocinadas pelo mercado (sempre idealizado pela “Inteligência Brasileira”

    “Um ano em que faltou coragem ao governo (essa virtude tão ausente também no Judiciário) para tratar de temas urgentes como o controle social e a democratização dos meios de comunicação.”

    Esta determinação de coragem não implica outras relações nem provoca a passagem da serenidade inerente a ausência do movimento para exteriorização econômica, em parte sob a forma do movimento interno da produção, em parte como resultante do primeiro movimento despertar uma exigência – do mundo pelo avesso – se quer que seja satisfeita pelo controle social e os meios de comunicação; encerrados em si próprios e a si próprios de baseiam. 

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