As dificuldades dos cadeirantes e a vogal do desespero, por Jairo Marques

Enviado por anarquista sério

Da Folha

A vogal do desespero

POR JAIRO MARQUES

Para ir a qualquer lugar fora da rotina, o pessoal prejudicado das partes como eu precisa de um plano de ação detalhado para evitar bater a cara, a cadeira, as muletas ou a bengala na porta.

Tudo precisa ser examinado com antecedência: se há rampas nas ruas (oi?), se as calçadas são assassinas de primeiro ou de segundo graus, se há onde parar a charanga, se o elevador funciona ou é daqueles da Pensilvânia, se o transporte público é amigável.

Não raro, mesmo depois de fazer tudo isso, é preciso botar a viola dentro do saco e voltar para casa por dificuldades de acesso. Arrastar um ajudante para as empreitadas no mundo “lá fora” pode facilitar o ir o vir, mas, com isso, autonomia passa a ser luxo distante e a pessoa com deficiência reforça a pecha de ser um necessitado extremo.

Semana passada, tive de ir a um banco, de repente, para tentar entender por que a Receita Federal havia suspendido meu CPF, afinal, não me lembrava de ter dado golpe na praça a ponto de me botarem na lista da pendura.

“Olha aqui, ó, o seu nome no título eleitoral está seu Jairim Marques ‘de’ Costa, mas é ‘da’ Costa. Tem que ir na Receita para eles estarem olhando”, disse-me o funcionário, que constatou o “problemão” existente havia 20 anos e que tanto prejuízo levou à humanidade.

“Seu moço, então você explica aí para o computador que, conforme o meu registro de nascimento, o meu RG, é ‘da’, não, ‘de’, e resolve para mim? Para chegar até aqui, quase fraturei duas vértebras caindo em buracos das calçadas do Haddad. Caso tenha de ir até a Receita, já vou encomendar minha certidão de óbito”.

Não teve jeito. Ele não quis apertar uma tecla e confirmar. Fui catando cavaco até chegar à Receita que, segundo o funcionário do banco, era “pertinho”. Não adiantou dizer a ele que, para cadeirante de uma cidade tão dura com São Paulo, nada, de fato, é pertinho.

“Olha aqui, ó”, repetiu a ladainha o homem do Leão. “Tem que pagar essa taxa de cincão nos Correios, ir a um cartório eleitoral tirar outro título e voltar aqui.” Pensei que me seriam necessárias umas três encarnações para dar conta daqueles deslocamentos todos.

Com a mulher cuidando de nossa Elis, arregimentei a sogra para me ajudar a vencer a via-sacra mal-acabada em busca da libertação de meu CPF. Grudamos na mão de nossa senhora da bicicletinha e fomos.

O primeiro cartório eleitoral havia mudado de endereço. Desmonto a cadeira de rodas, pulo para dentro do carro, a sogra guarda os “trem” e vamos para o segundo. No segundo, a vaga exclusiva aos “alei”, na rua, estava ocupada indevidamente. Procuro um estacionamento, lotado. O moço responsável pelo local, tocado por minha cara de desespero, acabou cedendo mais um lugar.

“Ahhh, não é aqui, não. Você tem que ir até o cartório na Água Branca.” Desmonto a cadeira, vaga ocupada, não tem rampa, calçada podre… O sistema da Justiça Eleitoral faz charme e trava na hora de eu botar o polegar. Sinto que lá vem um infarto, a máquina funciona e, finalmente, mudou-se o ‘de’ para o ‘da’.

Mais cansado do que o pente da Maria Bethânia, cinco horas depois e economizando o leitor de mais detalhes pitorescos, desamarrei meu CPF. Brasil, menos burocracia e mais consideração com as diferenças, por favor!

Redação

9 Comentários

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  1. Interessante. Cada um manifesta sua dor com seu currículo oculto

    mesmo.

    Acessibilidade é importantíssima, até para quem não está em cadeira de rodas. Para todos. Um quebra a perna tem que andar com um mínimo de segurança. Há os idosos que andam sem tanto equilíbrio mais. Há ainda as crianças, que distraídas, caem sem literalmente olhar onde pisam.

    Ruas e equipamentos públicos têm que ser acessíveis. Ponto.

    Quando Marta Supicy assumiu a prefeitura de SP, lembro-me dela reclamando e demonstando que tomaria providências pra que as calçadas fossem consertadas, por exemplo. Dizia que uma mulher não podia andar de salto em calçadas como as da cidade. Ela sentia isso quando ia visitar obras, etc. andando a pé.

    Kassab fez obras nas calçadas , criando acesso em esquinas etc. Sabe-se que não em todas.Fez com que equipamentos os criassem também. Creio que por decreto- salvo enganos.

    Conta-se que na Copa em Barcelona, muitos brasileiros se surpreenderam com o número de cadeirantes na cidade e se eram os atingidos pelas guerras etc. Não, eram cadeirantes que simplesmente VIVIAM, porque a cidade os convidava a sair de casa. Era acessível .

    AGORA, referir-se às calçadas como AS CALÇADAS DE HADDAD é MUITO CURRÍCULO OCULTO pra meu gosto.

    Ou nem oculto, né não?

        1. Se vc remonta a prefeituras

          Se vc remonta a prefeituras passadas e até de outros paises, quer que eu entenda como?

            Vc rodeou, rodeou e tirou uma frase do contexto e opinou.

                 E o cara escreveu o martírio dele–nada a ver com Haddad 

                    Como vc quer que eu entenda depois de ler seu comentário?

                       A sua citação de Haddad é completamente desnecessária.

                           ”Né, não ” ?

                       Abraços efuzivos( efusivo é com S ?)

          1. A crise hídrica em SP também é debitada ao Haddad

            Portanto, é pertinente contestar esta parte do texto. As calçadas não são do Haddad. Se um tucano for o prefeito a partir de 2017, ele escreverá “calçadas do Tucano?”

            Sou deficiente auditivo, acompanho o blog do Jairo Marques e estou sempre apoiando o que ele escreve, mesmo que o meu problema seja muito mais fácil de resolver (barreira da comunicação). O texto é pertinente, a citação “calçadas de Haddad” destoa completamente.

             

  2. Exatamente.
    Convivi com os

    Exatamente.

    Convivi com os problemas de locomoção e dificuldade dos cadeirantes por nove anos, em razão da dificuldade de locomoção da minha mãe.

    O único senão do texto é a afirmação das “calçadas do Haddad”. Embora intgrem o passio público as calçadas são de responsabilidade dos proprietários!

    No mais, força porque não é fácil!

    Lembro-me, especialmente de uma ocasião em que o Circu de Soleil foi agraciado com a cessão do espaço público no parque Villa Lobos, os civilizados responsáveis pelo espetáculo, reservaram as vagas de cadeirantes do parque para os afortunados que comoravam o ingresso mais caro, o tapes ruge (não sei nem quero saber como se escreve).

    Tive que travar uma pequena batalha com os seguranças do local para fazer valer o direito da minha mãe, o que pra mim nunca foi problema.

    Deixei que a malta que se infelerava em mercedes e BMWs se indignasse o quanto queria enquanto tranquilizamente tirava minha mãe do carro e acomodava na cadeira.

    O desrespeito e o descaso são norma, e no final das contas os passeios com minha mãe ficaram quase que exclusivamente restritos aos espaço privado, sobretuddo shoppings.

    Pra mim, a maneira como as pessoas ocupam as vagas para cadeirantes é o retrato perfeito e acabado da selvageria, incivilidade e a lei do mais forte vigoram por essas paradas.

     

     Luciana Mota

     

     

  3. Eu fico imaginando como a dor

    Eu fico imaginando como a dor de um cadeirante que desabafa sua saga , se tornar uma polêmica política sobre as calçadas do Haddad,

       Eu sou formado em psicologia. Mas não sei definir esse ser.

                   Defini-lo como paranoico seria fácil demais.

                         É muito além disso.

                        Mas uma coisa eu sei:

                           Só petista reage assim.

                                

    1. Desculpe, mas não desmereci o relato de Jairo Marques

      Quanto a sua análise de psicólogo, eu a desmereço.

      O que é uma pena, anarquista.

      Vida que segue.

    2. Padrão descaso

      A regra é o descaso com o menos afortunado, seja por não ter a mobilidade dos demais, seja por não ter um par de sapatos.

      O desabafo é mais que pertinente.

      Já a alusão ao Haddad, mais que impertinente, é absolutamente desnecessária, e enfiada na conversa por alguma deformação de caráter, coisa que, vamos combinar, os cadeirantes estão tão sujeitos quanto qualquer outra pessoa.

      Não sou psicólogo, e mesmo que fosse não diria nem que o autor do texto é peéssedebista (ele apenas culpa erroneamente o atual prefeito), nem que o paranóico é você, mas não é preciso nenhum estudo para se tocar que as calçadas já existiam antes do Haddad.

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