As mães de Gabriel, o menino passarinho

Enviado por Tálita Pollyanna

Do blog Pitcaos Perdidos

As mães de Gabriel

por 

Gabriel na árvore, antes de se mudar para o chão.

Gabriel na árvore, antes de se mudar para o chão.

Um: parágrafo único

E se ele não tivesse subido na árvore?

Dois: Vigília

Luciana. Sentada num banquinho de plástico, vestindo moletom porque está um pouco frio, falando baixo porque o menino está dormindo ao lado, no chão da rua Veiga Filho, bem em frente ao prédio de número 105, vizinho “de muro” do Shopping Higienópolis. É madrugada, já passa da 1 da manhã. Luciana que tem traços de mãe, é a primeira coisa que você pensa quando a conhece: ela poderia ser mãe de qualquer um. Luciana fala baixo mas às vezes também fala alto, porque não raro ela se entusiasma com o que está acontecendo naquela madrugada: ela sentada num banquinho de plástico ao lado do menino que dorme no chão da rua Veiga Filho. Luciana e o menino não estão sozinhos: sentados em volta, em outros banquinhos de plástico ou num elegante banquinho de madeira – e até no chão – estão mais seis pessoas.

Luciana fala baixo, então todos puxam seus banquinhos e se aproximam dela. O calor que vem da aproximação física das pessoas poderia ser usado como simbologia das ações que se desenrolaram até ali e se desenrolariam até o dia seguinte, mas ninguém percebe isso e alguém brinca dizendo que bem que poderíamos fazer uma fogueira ali no meio de nós.

– Era de manhã. Eu abri a sacada do meu apartamento e o vi em cima da árvore. Não senti medo. Senti um estranhamento. Pensei: tenho que fazer alguma coisa. Desci para falar com ele. Mas não lembro de nada desse momento, me deu um branco. Não lembro como eu cheguei até ele, nem o que conversamos.

Três: sábado, 20h15, no táxi a caminho do show de Fernanda Takai

Amor, você tá sabendo da história do menino passarinho?

Quatro: a história do menino passarinho

Gabriel é um garoto de 15 anos, negro, sorriso largo, de poucos gestos e olhar atento. Na última segunda-feira, Gabriel colocou seus pés descalços pela primeira vez na rua Veiga Filho, uma das mais importantes de Higienópolis, bairro de classe alta de São Paulo. Depois de caminhar pelas calçadas da alameda, Gabriel parou embaixo de uma árvore do grupo das caducifólias (mais conhecidas como amoreiras) que fazia fronteira entre a rua e a calçada. Olhou para cima e analisou algumas questões que certamente até então ninguém havia analisado ao passar por aquela árvore: o tamanho dos galhos, a oferta de folhas, a possibilidade de subir algumas tábuas até o seu topo. Respondeu essas perguntas para si mesmo e começou a montar sua casa.

Nos dias seguintes, Gabriel veria de perto e sentiria na pele a intolerância da chamada classe AAA paulistana, a incompetência dos órgãos municipais de proteção à criança e a falta de preparo da polícia. Também seria acolhido pela terapeuta Luciana Cah, moradora do 105, que diariamente aumentaria seus cuidados com Gabriel e cujo auge se dava naquela madrugada de sábado pra domingo, quando ela resolveu passar a noite na rua em sistema de vigília, assegurando que ninguém o machucasse.

Dois dias após subir na árvore pela primeira vez, Gabriel foi obrigado por policiais a descer e dormir no chão. Ele não gostava de dormir no chão. Segundo ele, no chão havia muitos bichos e, de onde ele vinha, todo mundo dormia no alto.

Cinco: Vigília

Nicolau Ayer é produtor cultural e atua especialmente no teatro. Ele está sentado no elegante banquinho de madeira. A cada 40 minutos, mais ou menos, Nicolau mexe nos bolsos da calça, retira o maço de cigarros, escolhe um e acende. Às vezes Nicolau se levanta para fumar, mas às vezes ele aproveita uma árvore que está logo atrás dele para encostar suas costas. Nicolau é o menos intempestivo do grupo, mas está longe de ser o mais calado. Na maior parte das horas, Nicolau está ouvindo alguém falar. Nos momentos de silêncio geral, olha pra baixo, como se estivesse processando um pensamento. Talvez por isso, quando se expressa, parece ter certeza do que está falando. Sua posição geográfica naquela noite era muito importante, embora fosse ocasional. A rua Veiga Filho é de mão única e Nicolau era o primeiro a ser visto pelos carros que surgiam durante a madrugada.

Talvez fosse umas 3 horas da manhã daquele sábado pra domingo quando eu perguntei a Luciana se alguém havia agredido o garoto Gabriel desde que ele montou sua casa na árvore da rua, na segunda-feira. A resposta – um sim – foi acompanhada de uma explicação resumida aqui: na noite de quinta-feira, um morador do prédio 105 saiu de seu apartamento, foi até onde Gabriel dormia no chão e deu pontapés na sua cama, fazendo o garoto cair e se machucar. O homem o xingava com violência. Assustado, Gabriel rapidamente correu e o choro que lhe dominava naquele instante não o impediu de gritar bem alto:

– O que eu te fiz para você me bater?

A história acaba, Luciana para de falar e seu olhar se perde. Todos no grupo estão enraivecidos. Ninguém é capaz de falar nada, no entanto. O silêncio é uma forma de oração. Nicolau mexe nos bolsos, puxa um cigarro do maço e se levanta:

– Vocês acreditam na lei do retorno? Quer dizer… eu acredito. De alguma forma esse homem vai receber esse ódio de volta.

Seis: Luciana

No segundo dia de Gabriel na árvore, Luciana começou a conversar com ele. A empatia entre ambos, embora não tenha se dado automaticamente, foi rápida. Aos poucos, Gabriel sentia confiança e abrigo naquela mulher de traços maternos; por sua vez, aos poucos Luciana ia eliminando qualquer mínimo preconceito e temor e descobrindo uma força interior que, até então, ela não sabia que existia – ao menos não dentro dela.

Sete: Rosália

O Shopping Higienópolis é um espaço arquitetônico de mau gosto, recheado de lojas e demais formatos comerciais cujo único intuito é arrancar o seu dinheiro em troca da pequena e prazerosa dose de dopamina que o ser humano recebe quando adquire um produto. Em uma cidade cujo espaço público é quase nulo, os shoppings não raro acabam sendo utilizados como centros de convivência. Assim como um garoto de uma pequena cidade do Rio de Janeiro – sei lá, Nova Friburgo, por exemplo – possui pequenas praças, parques e sua própria rua como espaços de interação social, o paulistano possui shoppings. Assim, na semana em que Gabriel lutava por um espaço na árvore da Veiga Filho, Maria Rosália e seu filho de 12 anos acabavam de sair do shopping. Viraram à esquerda e iam rumo ao prédio onde moram no final da rua, mas até lá obrigatoriamente teriam de passar em frente ao 105. Rosália percebeu que havia um garoto em cima da árvore. Parou. Conversou rapidamente com ele, talvez tenha conversado com Luciana. Foi embora. No outro dia, voltou. Queria ajudar. Luciana sorriu. Precisava de alguém para para lutar com ela, mas não imaginava que esse alguém seria muito mais do que um apoio.

É importante dizer que quando cheguei na vigília e vi Rosália e Luciana, não conseguia parar de olhar para elas. Havia uma força, um poder e um amor saindo daquelas mulheres. Olhei para Gabriel dormindo tranquilamente, voltei a olhar para elas – aquelas mulheres fortes fazendo as vezes de segurança em plena madrugada – e recordo claramente que pensei: vou escrever sobre isso e o título será “As Mães de Gabriel”.

Oito: Vigília

Gabi é uma estrela brilhante cadente que voa pelo céu nas noites mais inesperadas. Gabi não sorri, porque só sorri aquele que às vezes fecha a cara, e Gabi nunca fecha a cara. Gabi é alta, Gabi veste um pano na cabeça que eu não sei nomear, mas parece feito para ela. Gabi escuta. Gabi fala. Gabi é chef de cozinha mas naquela noite é ela quem faz algumas fotos para eternizarmos aquele momento de vigília. Gabi fuma um cigarro, mas não muito. Gabi já morou em tantas cidades que nem se lembra mais. Gabi já fez São Paulo/Curitiba de bicicleta. Sozinha. A viagem durou 6 dias. Gabi conta a história sentada no chão, e ri. A madrugada fica mais quente, o grupo inteiro ri quando ela conta que viajou tudo isso carregando nas costas uma mochila pesada com câmeras tripés roupas.

Talvez por isso, quando lhe perguntei de onde vinha, Gabi respondeu “da Serra da Cantareira” com uma naturalidade assustadora, como se estivéssemos ao lado da Serra e não a 20 quilômetros dela. Gabi chegou ali no sábado a tardezinha e não arredou mais pé. Pegou Gabriel acordado. Brincaram na calçada. Gabriel feliz. Gabi também. Dois Gabi’s. Em um determinado momento, Gabi mulher presentou o Gabi garoto com lápis e um caderno.

Nove: I was made to love magic

As pessoas passavam e perguntavam: e aí, Gabriel, vai ser o que quando crescer? Vou ser mágico, era sua resposta. Quando chegou à rua Veiga Filho no início da semana, Gabriel trazia poucas coisas na mão e uma delas era um livro sobre técnicas para fazer mágica. Não demorou muito para alguém ter a ideia: levar um mágico até a rua Veiga Filho, na árvore ou calçada em frente ao prédio 105, e fazê-lo dar umas aulinhas ali no meio da rua para Gabriel. Imagina se isso acontecesse?

Pois na quinta-feira à tarde, aconteceu. Quem passasse pelo número 105 veria um mágico dando aulas a um garoto “de rua”.

Dez: Assistência social não é profissão

Durante aquela semana, Rosália e Luciana – apoiadas por pessoas que manifestavam solidariedade e ideias seja aparecendo frequentemente em frente ao número 105, seja via internet – contataram os órgãos de assistência social da prefeitura. Após muita burocracia e demora, profissionais da área finalmente foram visitá-lo. Espantaram o garoto com perguntas inúteis (documentos, nome completo etc) e pouca curiosidade sobre o que realmente importava (de onde ele vinha, onde estava sua família, me conta essa história de você querer ser mágico etc). Mesmo assim, conseguiram levá-lo para um abrigo, onde Gabriel ficou algumas horas. Mas, quando viu que a assistente social só o havia colocado ali e nunca mais aparecido, Gabriel saiu de fininho, andou algumas quadras a esmo e logo parou novamente embaixo de uma tal árvore na rua Veiga Filho – que, naquele instante, certamente lhe provocou uma sensação de ter voltado pra casa.

Onze: Assistência social não é profissão, é dom

Numa tarde qualquer, Rosália entabulou uma conversa com Gabriel. O menino estava falante. Rosália foi sutilmente fazendo algumas perguntas sobre seu passado, e Gabriel foi respondendo naturalmente. Quando o garoto mencionou que vivia numa cidade próxima a Nova Friburgo (RJ), o coração de Rosália quase parou. Não só porque agora ela tinha uma informação importante sobre a localização da família de Gabriel, como porque ela, Rosália, tinha um sítio exatamente naquela região, o que facilitava sobremaneira o trabalho. Naquela mesma noite, Rosália e seu marido pegaram o telefone e fizeram diversas ligações. Pularam de número em número como quem pula de árvore em árvore. Até que ouviram do outro lado da linha a voz de Dulcinéia Klein, tia de Gabriel Klein, um garoto de 15 anos que – agora sabíamos – há cerca de um mês estava assistindo à novela Carrossel deitado no sofá de casa quando informou à mãe, ao padrasto e aos irmãos que iria ali fora e já voltava, mas nunca mais voltou. Pouco se sabe desta parte da história até o momento em que ele sobe na árvore do 105, apenas que ele fugiu de sua casa, em Nova Friburgo, e entrou em um caminhão de mudanças que o deixou em São Paulo. A família nunca mais teve notícias suas, a não ser por boatos de que ele estava no Rio de Janeiro e a suspeita de que, talvez, o melhor fosse aceitar que o menino havia morrido, o que motivou os familiares a vasculharem hospitais e IML à procura do corpo de Gabriel – o corpo que, naquele exato momento, se preparava para dormir na cama improvisada na calçada do número 105, sob o olhar atento de Luciana, que não via a hora de Rosália descer e lhe informar o resultado da investigação empreendida por ela e pelo marido.

Doze: Tropa da elite

Durante a semana em que passou na rua Veiga Filho, Gabriel sofreu agressão física de um morador e agressão verbal e psicológica de diversos outros. Um deles ligou para a prefeitura e fez a reclamação: tem um garoto morando aqui na rua e eu queria dizer que ele representa poluição visual para mim. Outro, tão prático quanto estúpido, propôs a seguinte solução: cortem a árvore e o menino não terá mais onde subir. São muitas histórias. O grupo que ali se reunia na vigília a Gabriel se apelidou de “Unidos da Veiga Filho”, nome criado pela estudante de cinema Belisa Bagiani, uma das integrantes. Como o nome logo remetia a escola de samba, não demorou para que se criassem as “alas” do bloco: ala da poluição visual, ala do corte de árvores e a ala do crime ambiental. Crime ambiental? Sim. Um morador disse que Gabriel não poderia viver na árvore porque ele estava cometendo um crime ambiental. O morador disse isso e foi embora. Gabriel virou para Luciana e perguntou:

– Tia, que que é crime ambiental?

Treze: Vigília

Cauê Matos é marido de Luciana. É dele a responsabilidade involuntária de fazer o grupo rir durante os momentos de vigília. Embora naquela noite a polícia tenha passado por ali 5 vezes, embora diversos mendigos tenham rondado a área de olho nas roupas e dinheiro que Gabriel havia ganhado até aquele momento, embora o morador violento fosse uma ameaça invisível mas possível, Cauê parecia estar de férias na praia em volta de uma roda de violão. Sua leveza era essencial e trazia paz não só para Luciana, mas para todo mundo. Ninguém se conhecia antes deste episódio, é importante ressaltar. Cauê era quem, com simpatia e naturalidade, deixava tudo à vontade para que, em questão de minutos, todos também se sentissem de férias na praia em volta de uma roda de violão.

Durante as cerca de 10 horas que ficamos ali, conversamos de tudo: as profissões, origens, sonhos e pensamentos de cada um. Às vezes fazíamos silêncio. Gabriel estava dormindo. Os períodos de silêncio podiam ser longos, porque ao mínimo barulho Gabriel se mexia, abria o olho, de modo que era preciso um bom tempo de silêncio para garantir que seu sono havia retornado ao estágio ideal. Nesses momentos, Gabi pegava seu caderno, abria, anotava coisas. Belisa pegava na minha mão, nos encostávamos. Nicolau contemplava a cena, às vezes fumava, onde eu quase sempre lhe acompanhava. Rosália mantinha a atenção na rua. Luciana, os olhos em Gabriel. Cauê via tudo e sorria. E ainda tinha Tamiê.

Quatorze: a mãe

Dulcinéia Klein falou com Rosália como se estivesse falando com um fantasma. Não acreditava que o sobrinho estava vivo, em São Paulo e sob os cuidados de uma pessoa que, mesmo ao telefone, já lhe parecia tão confiável. Logo Rosália conseguiu falar com a mãe, Dulciléia Klein, irmã gêmea de Dulcinéia. Não é possível relatar o que sentiu a mãe ao saber que o filho estava bem – é um sentimento certamente ainda não catalogado. “Estou indo buscá-lo”, disse a mãe. Rosália então ofereceu de pagar-lhe as passagens de ônibus de Nova Friburgo até São Paulo. Dulciléia viria com o marido, sairia na noite de sábado e chegaria na capital paulista na manhã de domingo. Combinado. Rosália desceu para a rua, abraçou Luciana e, tomando cuidado para que Gabriel não a escutasse, contou a notícia. “Amanhã ele estará com a mãe”.

Quinze: Vigília

Tamiê Tsutusumi está quieta, mas Nicolau puxou assunto com ela, então Tamiê fala. Quando o assunto acaba, ela se cala novamente. Às vezes olha para o celular, fica absorta na tela, não sei se jogando ou conversando com alguém. Tamiê foi quem, dias atrás, trouxe cobertor para Gabriel. Era quem também trazia baldes de água quente para que ele tomasse banho na rua – por questões jurídicas, ninguém podia colocar Gabriel para dentro de casa. Tamiê parecia ter uma energia inquebrável. Parecia sempre à postos. Seus traços orientais e seu humor provocativo e afiado formavam um conjunto extremamente carismático. Era fácil gostar dela, e todo mundo ali, embora nunca a tivesse visto antes – e ela e Belisa moravam no mesmo prédio! – já a tinham em alta consideração. Tamiê às vezes sumia no meio da madrugada. Quando voltava, dizia: fui pegar um banquinho, fui ao banheiro, fui pegar um cigarro em casa. Tamiê nunca iria nos abandonar. Como estudante de medicina, ela já sabia fazer o mais difícil.

Dezesseis: Jornalismo como ator social

No dia 31 de julho, Luciana acordou intranquila. Foi ao Facebook e compartilhou sua dúvida com o mundo.

– Pessoal, chamo a tv ou não? O que vcs acham? Quem saberia me dizer? Isso ajuda ou atrapalha? Ele está desprotegido aqui na rua e não quer ir para o C.R.A.S – Conselho Tutelar. E estou atrás de todas as possibilidades que me aparecem”.

No dia seguinte, a repórter do jornal O Estado de S. Paulo, Vivian Codogno, foi até a árvore em frente ao prédio número 105. Entrevistou Gabriel, Luciana e outros moradores, inclusive o senhor que sugeriu o corte a árvore como solução ao caso. Mais tarde, Luciana voltou ao Facebook.

– A repórter era muito sensível. Acho que fará uma boa matéria.

A reportagem de Vivian Codogno intitulada “Menino-passarinho intriga moradores de Higienópolis” foi publicada no portal do jornal. Em minutos, espalhou-se pelas redes sociais. Era imenso o número de pessoas que procurava Luciana via Facebook para desejar-lhe sorte, dar-lhe conselhos e oferecer ajuda. A matéria chegaria a ter 15.000 compartilhamentos e certamente atingiu mais de 1 milhão de pessoas, seguindo as métricas do Facebook.

Dezessete: Vigília

Animada e confiante com a repercussão – e com a consequente rede de proteção, ainda que virtual, que se formava em torno dela e de Gabriel – Luciana publicou em sua página no Facebook que naquela noite seria preciso fazer uma vigília. Era sábado a noite. Só seis pessoas apareceram. A advogada Guiomar de Paula, que não mora na rua Veiga Filho, foi uma delas. Guiomar foi uma delas, mas por pouco ela não entra na estatística dos que não foram. Com receio de passar a noite na rua por questões de saúde, ela titubeou. Seu medo era maior que seu desejo de ajudar. Mas Guiomar fez que lutou contra o medo, acordou às 4h da manhã daquela madrugada e se juntou a nós, trazendo ao grupo uma tranquilidade, força e segurança incomum.

Dezoito: Manhã, mãnhê

O dia estava amanhecendo. Um carro para ao nosso lado. Descem 5 meninas muito bem vestidas – certamente estavam em um casamento ou formatura. Estão bêbadas. Moram no prédio 105. Passam por nós falando besteiras, rindo e fazendo troça da vigília ali formada. Eu digo aos amigos presente: tudo isso já parece um filme, e agora ainda mais.

Embora cansados, embora alguns fossem trabalhar dali a algumas horas, ainda estávamos todos à postos. Luciana pediu a palavra. Disse:

– Talvez daqui a pouco aconteça algo que vá solucionar o caso do Gabriel. Algo muito bom. Depois explico direito. Mas é possível também que essa solução não aconteça amanhã, e aí teremos que fazer vigília no domingo novamente. Quem poderi…

Antes que ela terminasse a frase, todo mundo já tinha levantado a mão.

Éramos um grupo.

Dezenove: Acordei pensando no título

Fui dormir às 8h e acordei às 10 com Belisa me chamando e me dando duas notícias.

Uma saiu de sua boca no volume baixo: “Já to indo pro trabalho, amor. Vai me avisando de tudo que acontecer”.

A outra se deu aos gritos como se o prédio pegasse fogo: “O Nicolau mandou mensagem no seu Facebook!!! Dizendo que a mãe do Gabriel!!! está vindo!!! buscá-lo!!! ACORDA!!!”.

Me esforçando para abrir o olho, o cérebro tentando dar significado àquelas palavras, lembro claramente que tudo que eu consegui pensar foi:

O título. O título estava certo.

“As mães de Gabriel.”

Vinte: And in the end, the love you take is equal to the love you make

Eu poderia contar sobre o momento em que cheguei ao número 105 e abracei Luciana longamente. De nós dois tomando café e ela me contando a história que até então ninguém sabia, porque elas temiam que Gabriel fugisse ao saber. Só ela e Rosália sabiam. A mãe estava vindo.

Eu poderia contar sobre o desagradável encontro que tive com o morador que agrediu Gabriel dias atrás, de como ele me abordou violentamente e de como, ao sair xingando e cuspindo no chão do próprio prédio – o prédio que ele queria “proteger” da presença “suja” de Gabriel – coube a ele mostrar quem era o vilão dessa história.

Eu poderia contar a vocês que, enquanto esperávamos a mãe, um caminhão do McDonalds parou em frente à casa de Gabriel e ali ficou com o motor ligado, fazendo um barulho alto e irritante. Poderia contar a vocês que Luciana foi até o responsável pelo caminhão perguntar se ele não poderia desligar o motor, ao que o funcionário disse que não, infelizmente não, porque preciso deixá-lo ligado para manter a refrigeração dos produtos que vou descarregar. Eu nunca esconderia e vocês que Luciana então lhe inqueriu sobre quantas pessoas iriam ajudá-lo a descarregar e que ele respondeu que nenhuma, infelizmente seria só ele mesmo. Eu certamente contaria a vocês que Luciana propôs de nós todos ajudarmos a descarregar aquelas dezenas de caixas contendo pães, catchups, copos, guardanapos. O cara riu da ideia. Vocês me ajudarem? Por curiosidade ou seja o que for, ele topou a parceria e logo fez a sua conclusão da história:

– Esse menino vale ouro, é?

Por cerca de 5 minutos, André Gravatá, que havia acabado de chegar, Gabi, eu, Nicolau, Guiomar, Luciana e Cauê fomos voluntários do McDonalds. Pegávamos as caixas de dentro do caminhão, carregávamos até a entrada do shopping e empilhávamos uma em cima da outra. E o caminhão foi embora.

Eu poderia dizer que Gabriel acordou e pediu para entrar no shopping e gastar parte dos 200 reais que ele havia acumulado nos dias anteriores. Gastar em um único presente: um boneco todo invocado do Woody, personagem principal do desenho animado Toy Story.

Eu poderia dizer que Gabriel entrou no shopping de mãos dadas com Rosália e, minutos depois, um carro do Conselho Tutelar de Nova Friburgo parou em frente à casa de Gabriel, e dele desceu o motorista, o conselheiro, a mãe e o marido.

Eu poderia dizer que minha barriga quase explodiu de alegria ansiedade cansaço felicidade fome calor amor quando vi Dulciléia atravessando a rua e indo nos encontrar. Primeiro abraçando Luciana, falando com Luciana, desesperada em provar que era ela a mãe do menino – pra isso, ela levou fotos, álbuns, certidões e até o teste do pezinho -; depois, ouvindo Luciana lhe contar a saga e como tudo foi acontecendo para que Gabriel estivesse bem mas, principalmente, de como Luciana explicou para Dulciléia que Gabriel não sabia que ela estava ali e, portanto, era possível que ela reagisse mal.

Eu poderia dizer que quando Gabriel apontou na saída do shopping carregando uma sacola da Ri Happy numa mão e o boneco Woody ainda lacrado na outra, por um segundo eu desacreditei que eu veria ao vivo aquele encontro. De como ele caminhava olhando para o boneco e tentando abrir a caixa, mas de como por um instante ele parou de fazer aquilo e levantou os olhos e, foi nesse momento que ele viu Dulciléia. Eu poderia contar que ela correu em direção a ele, ele correu em direção a ela e os dois se juntaram num abraço tão forte quanto eterno.

Eu poderia dizer como o trânsito parou, as pessoas foram para suas janelas, saíram das padaria ou da banca de jornal, puseram suas cabeças para fora dos carros e bateram palmas. Ou da festa que ele fez com o padrasto. Ou de como as meninas que passaram por nós na madrugada e fizeram troça, agora choravam e batiam palmas – e de como eu fiz questão de dizer a elas porque não tinham se emocionado antes, quando o menino mais precisava? Eu certamente faria questão de esquecer essa parte e focaria em contar como Gabriel queria tirar fotos com todo mundo que o ajudou, ou de como ele me abraçou na hora de se despedir, ou da história do motorista que veio buscá-lo sem apoio da prefeitura, ou de como é forte ver a jornalista Vivian Codogno – presente desde cedo para registrar o final da história que ela ajudou a circular – chorando discretamente, o que é quase como um juiz chorando ao final de um jogo de futebol. Eu poderia lembrar que quando Gabriel, a mãe, o marido, o motorista e o conselheiro entraram no carro rumo a Nova Friburgo e nos davam tchau pela janela, todos nós começamos a chorar e pular e gritar ao mesmo tempo abraçados, atingindo um pico de adrenalina que duvido que alcancemos novamente. Eu poderia dizer tanta coisa. Mas eu já disse muito e na verdade tudo – Gabriel, Rosália, Luciana, os moradores violentos, a intolerância, a ignorância, a bondade, a sabedoria, o sacrifício – exatamente tudo está resumido na frase que dá título a este capítulo.

 Nicolau, Belisa, Gabi, eu, Rosália, Luciana, Cauê e Tamiê.

Vigília. Da esq. para dir: Nicolau, Belisa, Gabi, eu, Rosália, Luciana, Cauê e Tamiê.

 

No domingo cedo. André, Gabi e Guiomar veem Gabriel praticando truques de mágica.

No domingo cedo. André, Gabi e Guiomar veem Gabriel praticando truques de mágica.

Luciana, Cauê e Nicolau como voluntários do McDonalds.

Luciana, Cauê e Nicolau como voluntários do McDonalds.

Amor. Fim.

Amor. Fim.

Redação

16 Comentários

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  1. Cara!! Não tô conseguindo

    Cara!! Não tô conseguindo digitar!! Meus olhos estão lacrimejando com uma sensação tão gostosa que quero apenas curtir o momento…

  2. É isso!  Amor em poesia.

    É isso!  Amor em poesia. Ainda é possível  se emocionar, viver uma linda história de amor  e compartilhar. Que sejamos todos tocados e abençoados pela solidariedade.

    maria josé

  3. EU ACREDITO NO SER HUMANO,

    EU ACREDITO NO SER HUMANO, MESMO DIANTE DA DIVERSIDADE.ESTE RELATO DE VIDA, DEVE SER CONTADO E RECONTADO POR SÉCULOS.

  4. Ganhei o dia! 
    Não sei

    Ganhei o dia! 

    Não sei contar. Chorei e ri o tempo todo em que li esta estória.

    Parabéns a todos que ajudaram a fazer esta estória feliz. 

    Que o menino passarinho seja feliz e que todos tenham aprendido um pouco com ele e com vocês: Nicolau, Belisa, Gabi, eu, Rosália, Luciana, Cauê e Tamiê.

     

  5. Putz, chorei em pleno

    Putz, chorei em pleno trabalho burocrático numa das varas de um TRT.

    É como no Pequeno Príncipe. Os adultos se preocupando com bobagens sérias e deixando de lado o que realmente é essencial.

  6. Lágrimas nos olhos…

    Que linda e emocionante história de compaixão e amor ao próximo… Parabéns ao escritor Eduardo Lemos por saber traduzir em palavras e de forma muito bem contada toda a trajetória e retorno do “passarinho ao seu ninho”… Fico sem saber é como agradecer as mães de Gabriel… Já sei!… agradeço por vocês simplesmente existirem e me fazerem acreditar que é sim possível vivermos em mundo de paz e amor…

  7. que lindo!

    Parabéns a todos os envolvidos!   São ações como essa que nos faz pensar num futuro melhor…. emocionante, lindo!

  8. Ouvi esse ano é do embate
    Ouvi esse ano é do embate entre o discurso do ódio contra o discurso da esperança…me deu muito orgulho em paulistanos, negros, brancos, mulatos, orientais, de todas as classes sociais se não, o garoto estaria nu amarrado ao poste…principalmente ali na barra…ou melhor “higiênópolis”…..

  9. Como foi bom ler isso.
    Estou

    Como foi bom ler isso.

    Estou feliz. Hoje é sexta – feira, já são 18:00 hs, vou ver a turma no bar e contar tudo isso. Abraçar os amigos como essa turma aí que tenho certeza nunca mais se separa.

     

    Um Grande abraço.

  10. Como foi bom ler isso.
    Estou

    Como foi bom ler isso.

    Estou feliz. Hoje é sexta – feira, já são 18:00 hs, vou ver a turma no bar e contar tudo isso. Abraçar os amigos como essa turma aí que tenho certeza nunca mais se separa.

     

    Um Grande abraço.

  11. É difícil não chorar… Ë
    É difícil não chorar… Ë isso que precisa ser resgatado: a solidariedade, a fraternidade.  O que estamos nos permitindo fazer conosco mesmos, que estamos perdendo esses sentimentos? Grata, Gabriel, por ser o instrumento que mostrou que mesmo em Higienópolis existem corações ternos e fraternos.  Que a ação desse maravilhoso grupo de vigília tenha tocado a centelha divina que, eu acredito, mora em cada ser humano. Grata, Eduardo Lemos, por narrar com tanta sensibilidade essa linda jornada. Que todos vocês sejam abençoados!

  12. As mães de Gabriel
    Realmente não tem como não chorar! Eu não conseguia parar de ler! Parabéns pela sensibilidade com que vc escreveu esse texto. Como disse um de nossos heróis, vc recebe aquilo q faz! Essas pessoas q cuidaram do Gabriel merecem muita gratidão e amor de volta!

  13. Interpretação

    Estou fazendo um trabalho de escola e gostaria de saber,qual e o objetivo o cronista espera atingir com seu texto?

    Não sou boa em interpretação por favor me ajudem!!!

     

  14. Conheço esse garoto e

    Conheço esse garoto e infelizmente não é quem aparenta ser. Ao contrário do que se tá dizendo, em outros sites, a mãe dele está viva e à procura dele. E não é a primeira vez que ele foge de casa. A princípio ele fugia para o centro de Nova Friburgo, mais recentemente fugiu para o Rio de Janeiro, mas retornou, e agora foi  para São Paulo. E a todo o momento sua mãe atrás dele. Ele tem sérios problemas psicológicos que infelizmente não tem sido tratado adequadamente.

  15. Conheço esse garoto e

    Conheço esse garoto e infelizmente não é quem aparenta ser. Ao contrário do que se tá dizendo, em outros sites, a mãe dele está viva e à procura dele. E não é a primeira vez que ele foge de casa. A princípio ele fugia para o centro de Nova Friburgo, mais recentemente fugiu para o Rio de Janeiro, mas retornou, e agora foi  para São Paulo. E a todo o momento sua mãe atrás dele. Ele tem sérios problemas psicológicos que infelizmente não tem sido tratado adequadamente.

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