Aumentar a pena não irá acabar com o estupro, diz Maíra Fernandes

Jornal GGN – Maíra Fernandes, advogada criminalista e integrante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, acredita que o aumento da pena para o estupro não irá acabar com o crime. “Temos que ir até a raiz do problema, enquanto isso não acontecer, não iremos mudar”, afirma. Para ela, esse tipo de medida vem de um populismo penal, quando os deputados aprovam penas mais duras quando acontece um crime de repercussão nacional.

No último dia 31, o Senado aprovou o aumento de pena para caso de estupro praticado por duas ou mais pessoas. Além de agravar a pena, a proposta tipifica o crime de estupro coletivo, que não é previsto no Código Penal. 

Para Maíra, o único caminho para prevenir casos de estupro e de violência contra a mulher é a educação. “Só através da educação, da discussão sobre feminismo e gênero nas escolas, universidades e em todos os locais, que vamos conseguir evitar os estupros.” Leia mais abaixo:

Do Justificando

“Aumentar pena não é solução para acabar com estupro, nunca foi e nunca será”, afirma especialista

No mês passado, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o aumento de pena para caso de estupro praticado por duas ou mais pessoas. A proposta, além de agravar a punição, tipifica o crime de estupro coletivo que, atualmente, não é previsto no Código Penal brasileiro.

Um dia antes (30) o ministro da justiça Alexandre de Moraes disse que enviaria ao Congresso um Proposta de Lei Complementar para endurecer o cumprimento de punições a todos os tipos de crimes, além de acabar com a progressão de pena.

Todas essas medidas que endurecem ainda mais o sistema penal aconteceram uma semana após se tornar público o caso do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, ocorrido no sábado (21).

Para a advogada criminalista e integrante do Comité Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, Maíra Fernandes todas essas medidas são, na verdade, frutos do populismo penal, no qual os congressistas aumentam as penas quando acontece um crime que ganha repercussão midiática.“Aumentar pena não é solução para acabar com crime, nunca foi e nunca será”, diz.

Além disso, Maíra explica que o estupro já tem uma das maiores penas no Código Penal, e mesmo assim é um crime que acontece muito. “Temos que ir até a raiz do problema, enquanto isso não acontecer, não iremos mudar”, acredita a advogada.

Confira a entrevista completa

Justificando: Aumento de pena para estupro é a solução?

Maíra Fernandes: Não, aumento de pena não é solução para evitar crime algum. Essa é apenas mais uma medida de populismo penal, que nós vemos sempre. Toda vez que tem um crime com repercussão midiática, nossos congressistas tiram da cartola um projeto de lei para aumentar a pena, como se isso fosse resolver o problema. Aumentar pena não é solução para acabar com crime, nunca foi e nunca será. Estupro já tem uma das maiores penas no Código Penal, e mesmo assim é um crime que acontece aos montes. Na verdade, a única forma de resolver esse problema é mudar a mentalidade dos homens através da educação, para que, efetivamente, não cometam mais estupros. Só através da educação, da discussão sobre feminismo e gênero nas escolas, universidades e em todos os locais, que vamos conseguir evitar os estupros.

Essa seria a única solução?

Primeiro é uma discussão absoluta sobre o direito da mulher. Precisamos aceitar a existência dessa cultura machista, dessa cultura que chamamos de cultura do estupro, isto é, a cultura por trás de como as mulheres são tratadas na rua, nas propagandas de televisão, filmes e novelas que incentivam, de certa forma, essa imagem de que o corpo da mulher pertence ao homem e ele poder fazer com ela o que ele bem entender. Não é a toa que toda mulher tem alguma história para contar, alguém que já tentou passar a mão nela, nos ônibus, no metrô, ou que tentou roubar um beijo a força, ou, enfim, alguma outra forma de violência. Nós precisamos de políticas públicas pensadas sob perspectiva de gênero, isso é absolutamente fundamental. E também politicas de segurança pública, pensadas sob uma perspectiva de gênero. É assustador saber que acabou de acontecer uma reunião com os Secretários de Segurança Pública de todos os Estados para, supostamente, tratar desse tema e nesse encontro só havia uma mulher. Já estamos no caminho errado, porque devemos pensar em políticas públicas e medidas de segurança pública sob uma perspectiva de gênero e precisamos fazer isso com as mulheres. Claro que os homens são bem vindos nesse debate, mas não pode ser feito somente por eles.

Só assim vamos começar a diminuir esses índices de estupro. Definitivamente, não é com o aumento de pena que vamos conseguir. Aumento de pena nunca reduziu crime algum e não vai funcionar com estupro.

Essas medidas são formas de prevenção, e caso aconteça o estupro, o que fazer depois?

Depois a gente precisa de um atendimento acolhedor para a mulher para que ela se sinta preparada para efetuar o registro de ocorrência, pois muitas vezes ela não se sente. Ela precisa encontrar um ambiente acolhedor, seguro e receptivo com profissionais treinados para colher esse depoimento. Tem que ter muita sensibilidade e cautela ao receber o depoimento dessa mulher que sofreu um crime sexual. Os locais de saúde precisam também ter esse mesmo preparo, para receber as vítimas de violência e orientá-las sobre todos os procedimentos que ela deve fazer, os medicamentos que deve tomar, os coquetéis de prevenção do HIV, a contracepção de emergência e fornecer a ela as informações sobre aborto legal, que independem de um registro de ocorrência. Ela precisa encontrar um ambiente acolhedor caso resolva interromper a gravidez resultante de um estupro, como prevê o nosso Código Penal.

Então, são necessárias delegacias de mulheres bem equipadas, preparadas, com profissionais mulheres que possam atender essas vítimas, além de um local acolhedor e com sensibilidade, com um treinamento apropriado para isso, porque não é um depoimento fácil. Ela não pode já ser julgada e culpada no momento que ela procura uma unidade policial. São muitos os relatos de mulheres que, em um primeiro momento, pensaram em fazer um registro de ocorrência, mas ao chegar na delegacia de polícia, ouviram perguntas como:como você estava vestida? porque você estava sozinha? você estava bêbada?. Muitas levantam e vão embora, desistem daquele registro. Precisamos de uma sensibilidade de todo o nosso sistema de justiça para receber esse tipo de denúncia, evidentemente respeitando a presunção de inocência, o direito ao contraditório, enfim a todo o devido processo legal, mas também precisa dessa sensibilidade para receber os relatos de estupro que são enormemente sub notificados.

Qual a estimativa?

Estima-se que em 2014 foram feitos 47 mil registros, mas que os casos cheguem a 476 mil, então realmente isso mostra o quanto é um crime muito sub notificado por conta desses fatores, e de muitos outros.

Como quais?

Por exemplo, muitas vezes o estupro é cometido por pessoas de confiança da vítima, pessoas do seu relacionamento, da sua família, do seu ambiente de trabalho, do seu ambiente universitário, enfim, pessoas com quem ela conhecia e ela tinha confiança. Isso causa uma dificuldade ainda maior para a elaboração do registro.

Você acha que existe uma alternativa melhor à prisão em caso de estupro? Existe algo que possa substituir essa prisão?

Eu não acredito que a prisão resolva muita coisa. Até hoje não foi pensada uma alternativa à prisão no Brasil, mas não significa que não devemos pensar. Considerando que a prisão, no geral, não serve para absolutamente nada, e que, de modo geral, quase ninguém sai melhor da prisão, poderíamos pensar em alternativas que trabalhassem com essa conscientização do autor do crime, do que significa o crime que ele cometeu. Muitas vezes sequer existe esse compreensão, a certeza de que o corpo da mulher lhe pertence é tão grande que ele até pode ser preso, mas vai sair de lá com a mesma compreensão de que o estupro um ato banal, podendo estuprar uma outra mulher assim que sair da prisão. É um ambiente complicado, que pode aumentar a intensidade dessa cultura do estupro.

Precisamos realmente fazer uma mudança mais estrutural da nossa sociedade e discutir isso mais abertamente. Mais importante do que a prisão, não significa que eu esteja dizendo que ela deva ser excluída, não estou fazendo uma proposta abolicionista, mas é preciso pensar como mudar a cabeça dessas pessoas e como mudar a sociedade em relação ao machismo. Em relação a esses autores do crime, que comprovadamente praticaram crime sexual, pensar uma forma de mostrar o que significa esse crime e como evitar que aconteça esse crime de novo, seja através de psicólogos, ou de trabalhos de profissionais especializados que possam, de alguma forma, ajudar, como o trabalho que o Instituto Personna faz em Brasília, lembrando o homem que a questão do estupro não tem nada a ver com doença. 

Enquanto a gente não olhar a origem do crime sexual, o que leva um homem a praticar um crime sexual, o que está por trás disso, o que passa pela cabeça dele, como ele encara isso, porque ele acha que ele possa se apropriar do corpo da mulher, a gente não vai conseguir evitar esse crime, a reincidência e que novos crime sejam cometidos. Temos que ir até a raiz do problema; enquanto isso não acontecer, não iremos mudar.

Redação

2 Comentários

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  1. Realmente, só aumentar a pena não basta

    É preciso também prender os criminosos.

    A ideia de que a solução do problema se encontra na educação assenta-se em um pressuposto ingênuo: de que o estuprador estupra porque ninguém ensinou a ele que estuprar é errado…

    Não é isso. O estuprador sabe muito bem que o que ele faz é errado, mas faz porque sabe que tem boas chances de escapar impune. No interior de favelas dominadas por facções criminosas, a impunidade é regra e a maioria dos estupros ocorrem ali, inclusive como forma de punição contra quem desagrada os chefões, assim como tortura, mutilação, raspar a cabeça, queimar vivo etc.

    Esse papo de cultura de estupro é um subterfúgio para dissolver no corpo da sociedade a culpa dos verdadeiros criminosos. Eu não acredito que a razão do elevado número de estupros no Brasil seja devido a uma cultura de estupro. Se fosse assim, eu veria o estupro acontecendo aleatoriamente em todos os segmentos sociais a minha volta. Mas eu não vejo conhecidos meus estuprando conhecidas minhas. Eu não vejo vizinhos meus estuprando vizinhas. Eu não vejo meus colegas de trabalho estuprando suas colegas. Eu vejo bandidos estuprando meninas em esquinas escuras, assaltantes estuprando suas vítimas após roubá-las e membros de gangues fazendo estupros coletivos como vingança.

    O elevado número de estupros no Brasil nada mais é do que uma faceta do elevado índice de crimes daqui: há muitos estupros assim como há muitos assaltos, muitos sequestros e muitos homicídios. Será que também temos uma cultura de assalto, sequestro e homicídio? Ou será que o buraco é mais embaixo? Sei que muita gente bem intencionada repete essa cantilena, mas isso é doença de uma sociedade que introjetou a culpa dos criminosos. Se querem mesmo diminuir o número de estupros no Brasil, de nada adiante inculcar sentimentos de culpa em milhões de cidadãos que nunca cogitaram estuprar ninguém. É preciso perseguir os verdadeiros criminosos, que aliás não têm sentimento de culpa algum.

  2. Simples.
    A maior pena

    Simples.

    A maior pena criminal – de longe – já é a do estrupro. Até os presidiários – e todos sabem – não o admitem… Portanto, bastesse a ameaça da pena, o estrupro não ocorreria.

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