Bolívia: uma década da presidência de Evo Morales, por Wagner Iglecias

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Bolívia: uma década da presidência de Evo Morales

por Wagner Iglecias

A Bolívia historicamente foi um país pobre. Joía da coroa espanhola durante o início do período colonial, por conta da abundância de metais, em especial a prata, o país foi um dos últimos a alcançar a independência na América do Sul, no ano de 1825. Desde então constituiu-se numa das mais pobres e desiguais nações latino-americanas, contando com uma pequena elite branca, descendente dos colonizadores, e uma enorme massa indígena órfã da aniquilação completa do antigo Império Inca e de outros povos que existiam na região antes da chegada dos europeus.

Cor da pele e classe social sempre confundiram-se na Bolívia: a elite branca enriqueceu controlando ao longo dos séculos os negócios com o exterior e apossando-se das melhores terras. Aos indígenas sobrou a condição de pobreza extrema e submissão política. O país avançou nesses seus quase duzendos anos de independência em meio a uma profunda instabilidade política e a uma debilidade econômica permanente. Na Bolívia contam-se às dezenas os golpes de estado, rebeliões militares e assaltos de toda ordem ao poder constituído. Assim como o país figurou durante décadas como um dos menos desenvolvidos do continente. A Bolívia historicamente foi dependente da exportação de bens primários, como petróleo, gás e estanho, cuja renda foi sempre apropriada por uma pequena elite. Nos anos 1980, arrastada pela crise da dívida externa que varreu a América Latina, o país enfrentou um dos mais graves processos hiperinflacionários até hoje registrado no mundo. Em 1985 o aumento de índice de preços no país alcançou a impressionante marca de 35.000% ao ano.

Na sexta-feira Evo Morales completou uma década como presidente da Bolívia. Trata-se de uma marca histórica. Por uma série de razões. A primeira, óbvio, pela longevidade inédita de um mesmo mandatário no poder. A segunda pelo fato de que Evo, assim como 90% dos bolivianos, tem origem indígena. Não é pouca coisa para um país que durante décadas foi governado por uma minoria branca e rica. Um dos últimos antecessores de Morales, aliás, não só era branco como falava espanhol com forte sotaque por conta de ter sido criado nos Estados Unidos. Como contraponto tem-se em Evo um governante que busca uma inserção política mais autônoma para a Bolívia no cenário internacional e que investiu fortemente na integração latino-americana.

O segundo aspecto que torna histórica esta década de governo Evo guarda relação com o fato de que ele não é, obviamente, um produto de si próprio, mas sim do empoderamento crescente dos movimentos sociais bolivianos ao longo das últimas décadas. Os indígenas bolivianos sempre lutaram por seus direitos. E intensificaram sua organização nos anos mais recentes. Os protestos populares voltados principalmente à revisão das formas de apropriação dos recursos naturais do país, visando uma melhor distribuição da renda aferida com sua exportação, são a chave explicativa para se compreender as transformações recentes vividas pela Bolívia. A chamada “Guerra da Água”, ocorrida em Cochabamba, em 2000, e a “Guerra do Gás”, a partir de 2002, levaram à reversão de medidas privatizantes (no caso da água) e desnacionalizantes (no caso do gás). Acabaram por resultar na renúncia de três presidentes da política tradicional e na ascensão de lideranças indígenas e camponesas, como Evo, eleito pela primeira vez em 2006.

O terceiro motivo que faz do governo Evo um marco na História boliviana tem a ver com o significativo processo de redução da pobreza extrema que o país vem experimentando nos últimos anos. Aliado ao controle das contas públicas, ao acúmulo de reservas em dólar e ao crescimento econômico (de 5,5% ao ano em média durante os dois primeiros mandatos de Morales), tal processo foi objeto de elogios até mesmo do FMI e do Banco Mundial. Financiados pela nacionalização dos recursos naturais do país, os investimentos governamentais em educação, saúde e combate à pobreza teram grande aumento nos últimos anos. Em 2014 a Bolívia teve reconhecida pela UNESCO a erradicação do analfabetismo e naquele mesmo ano sua política de combate à fome foi elogiada pela ONU.

Como pano de fundo filosófico do governo Evo está o conceito de Suma Qamaña (Vivir Bien), que constitui o resgate e a revalorização da cosmovisão indígena. Em linhas gerais pode-se definir o Suma Qamaña como “vida plena”, ou “viver em plenitude”. Em outras palavras, ter uma existência em comunhão com a Pachamama (a mãe Terra) e com os demais seres vivos, a partir de conceitos como tempo cíclico, comunidade, irmandade e complementariedade.

Ainda que as tantas transformações desta última década caracterizem uma revolução na História boliviana, obviamente o governo Evo enfrentou problemas nestes dez anos e continua a enfrentar. A excessiva dependência da exportação de bens minerais mantém a Bolívia numa condição de subalternidade na economia mundial e fragilidade diante de suas oscilações. Setores do movimento indígena continuam a protestar, enxergando em Morales um governo politicamente muito moderado e muito menos socialista do que se proclama. Falta ainda ao país know how para explorar industrialmente suas imensas reservas de lítio, as maiores do mundo deste que é um dos minerais do século XXI. Além disso, ao completar seu terceiro mandato, Evo terá presidido a Bolívia por quinze longos anos, reiterando a visão de muitos, à esquerda inclusive, de que os processos de transformação política e social da América Latina continuam ainda muito dependentes de lideranças pessoais.

Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.            

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

13 Comentários

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  1. Então

    Sucesso em particamente em todas as áreas, sendo inclusive eleogiado por organismo saqueadores tais como Fmi e Banco Mundial. Mas mesmo assim, sofrendo retaliações de grupos em seu próprio pais!

    Nunca irá acabar este sentimento de subserviência de alguns nativos da AC e AS, para com as grandes potências, mormente o imperio que vira e meche tenta solapar os governos progressitas eleitos ultimamente em alguns países e que provaram estarem interessados nobem estgar do povo.

    Para eles, os saqueadores unidos as elites nacionais entreguistas, nunca irão aceitar serem banidos do poder e tudo farão para desestabilizarem e voltarem a gerenciar estes povos, com o aval do império que ainda agora, infiltrado pelos seus agentes, usam e pagam os insatisfeitos para voltarem a manipularem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  2. Não é preciso destruir a economia para se ter justiça social

    As esquerdas do Brasil, Argentina e Venezuela deveriam pensar melhor sobre isso, para rever seus equívocos. Muito pelo contrário, a devastação econômica que elas causaram em seus respectivos países revertem boa parte dos ganhos sociais alcançados.

  3. Note que não se ouve falar da Bolívia

    Na América Latina, quando você não ouve falar de um país, é porque ele vai bem. Também não tenho ouvido falar do Paraguai.

    Seria interessante que os comentaristas aqui parassem um pouco para ver o que Evo Morales anda fazendo de certo, ao contrário de Maduro na Venezuela e de Cristina Kirshner na Argentina estão fazendo de errado. Mas talvez o pessoal não se sinta muito a vontade para elogiar alguém que foi eleogiado pelo FMI…

  4. Evo, o cocaleiro

    Evo é mais do q um representante do movimento indígena. Como todo líder é carismático e inteligente. No entanto, movimento é um dos melhores exemplos de resistência ao imperialismo estadunidense 

  5. Acho que a Bolívia já deveria

    Acho que a Bolívia já deveria fazer um sistema eleitoral que permita um presidente se reeleger o quanto quiser – e que não seja modificado quando um presidente que não for Ivo seja eleito. 

     

  6. Outra observação = graças a

    Outra observação = graças a uma interpretação, digamos, esperta da constituição, Evo foi tendo o direito de se canditar seguidamente a presidência. Como vivemos em polorização política na América Latina, o mesmo ato admite duas interpretações = se é o meu candidato que faz tal manobra  , isso é realpolitik; se é meu adversário, é politicalha -rs. Aliás, um dos pontos altos de Lula foi não ter aceito a possibilidade de um terceiro mandato consecutivo. E foi porque ele quis, pois se ele pusesse isso em votação, teria conseguido facilmente mudar a consituição, pois estava no auge no final do segundo mandato. Pra mim, o melhor é uma pessoa ter o direito a dois mandatos – sejam alternados ou consecutivos – e só, como é nos EUA. 

  7. Há uma diferença marcante

    Há uma diferença marcante quando passamos do Peru para a Bolívia. Tem Aymaras – a etnia do Evo – dos dois lados da fronteira.

    Quando chegamos à Bolívia parecia que as fazendolas que no Peru dão uma impressão de uma vida bem dura dos campesinos estavam mais cuidadas, mais arrumadinhas, mais reluzentes. Parece que Evo financiou novos tetos reluzentes para as propriedades rurais, substituindo os tetos de palha tradicionais que se ve no Peru. Realmente dá uma impressão de progresso, melhoria de vida. Eles ainda precisam andar muito mas já estão na frente das fazendas Aymaras do Peru.

    Parabéns Evo Morales! Obrigado !

  8. Grande Evo Morales. Todo

    Grande Evo Morales. Todo governo que luta pelas camadas mais pobres vai sofrer forte oposição midiática e ideológica, principalmente por parte da classe média, isso é fato. A classe média só mantém o seu status por uma espécie de “contraste” com os mais pobres. Se estes últimos ascendem, entendem eles que estão ficando mais “pobres” e não que todos estão melhorando de vida. Isso explica algumas das reações contra ele.

    Um dia o povo irá acordar e ver que temos que caminhar em busca de um outro modo de viver, rumo a governos populares e que busquem a distribuição equânime da renda. Aí não vai ter quem o segure e serão vários “Evos” pelo mundo. Que as elites tremam frente a essa perspectiva. 

    1. Então……………

      Mrcos Antonio vc acertou em cheio. É como numa cascata. Cai Brasil e leva os outros governos progressistas junto.

      Mas esta é a jogada do impmério, ou vc acha que eles iam assistir de camarote a perda de suas colonias sem tomar alguma atitude.

      A reativação da IV Frota, não foi um acidente. É tudo muito bem planejado e note, estamos infestados de espiões, parasitas, sanguessugas e traidores, além de mercenários que, a soldo, estão desestabilizando um governo democraticamente eleito pelos brasileiros.

      Com a ajuda infernal da midia prostituta !!!!!!!!!!!!! Que aliás, são propriedade deles, e as que não são, comem na mão deles!

  9. Evo Morales é malandro no bom sentido

    Fez uma administração econômica conservadora, elogiada pelo FMI. Resultado, a Bolívia está tranquila e ele pode aplicar o projeto de Estado-cultura que seja mais adequado ao povo e à história da Bolívia.

    Enquanto isso a anta só faz besteira…

  10. Evo é diferente. Ele merece

    Evo é diferente. Ele merece aplausos de todo o espectro político, da direita à esquerda. Ele resgatou a dignidade da Bolívia, um país historicamente prejudicado por uma colonização predatória, por sua inacessibilidade (para um país exportador de gás e minérios a falta de uma saída para o mar é muito prejudicial) e por sua geografia (o altiplano não favorece atividades econômicas e a planície é muito quente e úmida). Evo não rouba nem deixa roubarem (leram, petistas?) e vem realizando um governo muito bom para seu povo. A Bolívia jamais será a mesma depois dele.

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