Campo de Jogo e o Brasil que conjuga o futuro do pretérito, por Xico Sá

Enviado por Odonir Oliveira

Do El País

O Brasil que conjuga o futuro do pretérito
 
‘Campo de Jogo’ não explica nossa decadência, mas demarca a fronteira entre a vida cotidiana e a fantasia de um povo

Na fila com amigos do cinema de Botafogo, Rio de Janeiro, reparo no abraço de Chico Buarque e Jards Macalé, dois gênios da poesia, chega da farinha do desprezo sobre a afetividade que deveras sentem, esses caras dizem muito do espetáculo que veríamos logo mais. Corta.

No que vejo Chico, já batuco na caixinha de fósforo Fiat Lux: “Aqui na terra vão jogando futebol…/Tem muito samba, muito choro erock’n’roll.

A luz se apaga na cara dos supostos iluministas, o lanterninha relaxa, dou aquele beijinho de cumplicidade de amor cinematográfico na minha nega-galega-polaca e vos digo:

Duvido que haja qualquer filme, do mundo inteiro, em cartaz no Brasil no momento, melhor e mais significativo que Campo de Jogo, dirigido pelo flamenguista brasileiríssimo Eryk Rocha.

Deus e o diabo na terra do futebol pentacampeão do mundo. O futebol fodão que vive no momento uma crise técnica e moral nunca dantes percebida. Campo de Jogo não explica nossa decadência, não se propõe a isso, mas demarca, como a cal que divide o palco dramático na lindíssima cena inicial da parada, a fronteira entre a vida cotidiana e a fantasia de um povo.

Eryk, que se orgulha lindamente de ser filho de Glauber Rocha, o pai do cinema dos Tristes Trópicos, injeta poesia e uma redentora complexidade na crise. O filme é o nosso futuro do pretérito, esse estranho modo de verbo, donde miramos a pelada da várzea como o melhor que tivemos, a origem de craques como Garrincha, Paulo Cézar Caju, Jairzinho, Pelé, Zico, Sócrates, Rivaldo, Romário,Ronaldo, Ronaldinho, Neymar etc.

O futuro do passado também pode ser nosso futuro de fato com linguagem na bola, embora a especulação imobiliária tenha levado até a marca de cal do pênalti da mais distante e varzeana das peladas. Eis o drama. Aí não está a explicação completa, mas nos diz algo sobre a crise futebolística brasileira.

Perder a ideia da várzea como educação sentimental dos nossos craques é largar de mão um DNA que o filme de Eryk Rocha também alcança em sintonia com o livro fundamental chamado O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, o homem que ensinou Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) a entender a transformação estética do jogo de bola no Brasil –melanizado, mulatinizado, com a negritude ganhamos o melhor de nós, a ginga, o vai ver se estou lá esquina lateralzinho europeu de nada.

Quando conjugo o futuro do pretérito tento alguma ideia do que digo: nossa invenção no futebol está em um lugar que tem seus dias contados. Não haverá mais terreno baldio para a pelada que nos deu a ideia de free-jazz da bola. As modernas escolinhas da molecada e os centros de treinamentos luxuosos dos clubes não têm compensado a falta dos campinhos de subúrbios.

Falando assim parece um discurso ingênuo e pueril, mas vendo o filme Campo de Jogo, que trata desse drama de forma mais sofisticada, veremos nas preleções dos técnicos do Geração ou do Juventude, momentos shakespearianos que não vemos no Dunga. O técnico do Geração chega a dizer um verso que poderia ser assinado pelo maior poeta de todos os tempos, Walt Whitman: “Hoje o sol somos nós”. Ele se referia ao calor da hora, evidentemente, incentivando os seus jogadores.

O dedo na cara do juiz

Du-vi-dê-ô que haja cena mais bonita em todo o cinema do mundo! Falo daquela em que o juiz do jogo da várzea do filme enfrenta toda uma revolta. É contestado por todos. Como ideia de uma autoridade sob suspeita. O capitão do time, os adultos valentões e, principalmente, um menino de uns 10 anos que adentra o campo e o contesta, com a mão na cara da suposta autoridade.

Em que ideia de sociedade brasileira isso seria possível? Pelo time da Direita Futebol Clube e dos Bolsonaros da Vida esse menino deveria ser eliminado desde o útero.

E tudo isso ao som de Wagner, Villa-Lobos, Callas… Bonito demais o contraste da pelada com a música clássica, o grandiloquente e a dança dos corpos em nuvem de poeira ou seria (será) morto namenoridade penal que esta praga parlamentar nos prega.

No filmaço-aço-aço Campo de Jogo há uma discussão sobre autoridade. Só a várzea, o jogo amador dos suburbanos corações, nos dá isso contra o nos-dai-hoje do goela abaixo que nos impõem Fifa e CBF.

Há um infinito de discussões a partir desse filme: a poesia contra afilhadaputagem etc. Mas quer saber de uma coisa: esse filme é foda pela ideia de cinema mesmo, a poesia que sobe na poeira naquele vendaval no momento dos pênaltis, coisa que nem Wim Wenderssoube botar ao filmar futebol a partir do livro do gênio austríaco Peter Handke. E olhe que Eryk não sabia, filmou a seco e na realidade do documentário.

Brecht Futebol Clube

Só mais uma coisinha, importante, sobre o mesmo tema, a esquecida poesia do futiba brasileiro:

Há cronistas que só miram o futebol profissa e são bons, há outros que vão além e são melhores, há os que têm olhos em vários movimentos e são muito bons. Mas há os que se destinam –sobretudo aos domingos de guarda– ao mundo da várzea e estes são os imprescindíveis.

Bato uma bola aí de cara, na paródia com uma velha citação do monstro Bertold Brecht, para dizer, sem favor ou favas contadas, como a aventura de Marcelo Mendez, na investigação e na escrita, me deixa mais comovido que um bêbado que abraça feliz os desconhecidos de uma esquina erma e improvável de qualquer parte do planeta. Mendez, para quem não sabe ainda, é autor do livroContos da várzea (editora Córrego), motivo deste puxadinho na crônica. Veja o filme, leia o livro, até a próxima.

 

Redação

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