Carnaval e ditadura, por Mariana Filgueiras

Jornal GGN – Na época da Ditadura Militar, nem o Carnaval acontecia sem que fantasias, alegorias, enredos e marchinhas passassem pelo crivo da censura. O acervo de documentos exigidos pelos militares das escolas de samba, blocos de rua e clubes será todo digitalizado até o final deste ano e poderá ser acessado por pesquisadores e pelo público. “É uma documentação muito rica, porque muitas agremiações mandavam seus croquis originais, que são verdadeiras obras de arte. Boa parte da história do carnaval do Rio está nessas caixas”, disse para O gLOBO o coordenador de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, Mauro Lerner. 

Enviado por Mara L. Baraúna

Revelados documentos inéditos do carnaval carioca retidos pela ditadura militar

Por Mariana Filgueiras

Do O Globo

Peças como croquis e letras de sambas-enredos começam a ser digitalizados pelo Arquivo Nacional

Croquis presentes no acervo de carnaval do Arquivo Nacional – Reprodução / Agência O Globo

RIO – Quem é do samba que se aguente: o carnaval está só na metade. Entre as dezenas de opções que brotam nas esquinas da cidade, nesta segunda ainda tem desfile do Cacique de Ramos, da Banda da Amizade, da Virilha de Minhoca, do Balança meu Catete; e, à noite, a Marquês de Sapucaí verá passarem as últimas seis escolas de samba do Grupo Especial, da São Clemente à Unidos da Tijuca, mais Portela, Beija-Flor, União da Ilha e Imperatriz Leopoldinense.

Mas o que há em comum entre todas essas agremiações, além de uma esperada predisposição à alegria? Nenhuma precisou submeter seus enredos, alegorias ou letras de samba à aprovação de alguma autoridade ou órgãos de controle.

Houve um tempo, porém, em que não era bem assim: durante a ditadura militar, tal qual acontecia com letras de músicas, peças de teatro e filmes, o carnaval não escapava às tesouras da censura. Todos os blocos de rua, clubes, cordões e escolas de samba, dos mais simples aos mais ricos, tinham de montar extensos dossiês com toda a documentação que pudessem produzir para explicar, tintim por tintim, os detalhes do seu carnaval. Esmiuçavam seus temas em protocolos, aos quais anexavam croquis das fantasias e dos carros alegóricos, coloridos a tinta e decorados com purpurina. Mandavam as letras com as piadas e trocadilhos enunciados e, depois de todo o trabalho, restava torcer pela aprovação dos censores. Só assim poderiam ganhar as ruas.

“VERDADEIRAS OBRAS DE ARTE”

Agora, todo esse acervo finalmente poderá ser acessado por pesquisadores e público em geral, como noticiou a coluna de Ancelmo Gois, na semana passada, no GLOBO. Armazenado pelo Arquivo Nacional desde 1992, quando a instituição teve acesso às pastas do Serviço de Censura e Diversões Públicas guardadas na sede da Polícia Federal, no Rio, o arquivo, enfim, está começando a ser digitalizado, 13 anos depois. Com patrocínio do BNDES, que custeará todo o processo, a digitalização deve ser concluída ainda neste ano. O acervo inclui ainda as peças de teatro e as letras de música que eram submetidas à censura no período, material que começará a ser digitalizado logo depois do arquivo carnavalesco.

— É uma documentação muito rica, porque muitas agremiações mandavam seus croquis originais, que são verdadeiras obras de arte. Boa parte da história do carnaval do Rio está nessas caixas — comenta o coordenador de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, Mauro Lerner. — Como os blocos de rua e as escolas de samba infelizmente não têm a preocupação de guardar seus arquivos, tendo sua história mais apoiada no registro oral, esses são documentos únicos, prontos para estudos de pesquisadores das mais diversas áreas, de história a moda.

Nas pastas, há croquis que ampliam detalhes de carros alegóricos do Salgueiro, por exemplo, ou os que revelam os mecanismos de movimento da indefectível águia da Portela. Há documentos curiosos, como um assinado por Joãosinho Trinta, de 1982, explicando aos censores a importância de se fundar uma escola de samba mirim, “para preparar os futuros sambistas da escola”. Há também letras de sambas-enredos (alguns ilustrados com capricho, para melhor explicar a abordagem do tema aos censores) de blocos que praticamente sumiram da memória do carioca, como o Samba Como Pode, de Inhoaíba, bairro próximo a Campo Grande, na Zona Oeste; ou o Fale Quem Quiser, do Rio Comprido, na Zona Norte.

— São 1.117 dossiês, cada um de um bloco, uma agremiação. Um total de 8.700 páginas de documentos históricos inéditos, que jamais foram usados por pesquisadores. A maioria compreende o período de 1973 a 85 — completa Lerner. — Pelo que notamos durante o manuseio, quase todos eram “aprovados” pelos censores. Só encontramos um croqui com o carimbo “vetado”, de uma alegoria que deixava os seios da mulher à mostra.

Era o carnaval de 1984, e o croqui, que parece até recatado para os padrões de hoje, era de um dos adereços do Grêmio Recreativo Império da Gávea, um dos primeiros grupos de carnaval da Rocinha, que começou como um bloco de família no início dos anos 1970 e chegou a desfilar na Praça Onze nos anos 1980.

ENSAIOS MONITORADOS E SAMBAS TROCADOS

Numa observação superficial, os documentos dão a entender que a censura não pegava muito no pé dos foliões, pelo menos entre 1973 e 1985, período da amostra. Autor de livros sobre o carnaval, o historiador Luiz Antônio Simas lembra que a história não é tão simples assim. No recém-lançado “Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos”, escrito em parceria com Fábio Fabato, ele cita três episódios emblemáticos de censura:

— Quando o Salgueiro desfilou em 1967 (um pouco antes do AI-5, portanto), com “A história da liberdade no Brasil”, os ensaios foram monitorados pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). O Império Serrano, agremiação nascida sob o signo da rebeldia no final da década de 1940, ousou desfilar em 1969 com o enredo “Heróis da liberdade”. No trecho final do samba, a palavra “revolução”, por interferência dos censores, virou “evolução”. Em 1974, a Unidos de Vila Isabel desenvolveu o tema “Aruanã Açu”, sobre os índios Carajás. Originalmente, a proposta do enredo exaltava os índios e fazia críticas severas ao progresso desenfreado. O regime fez pressões, e a escola teve que transformar o enredo em uma insólita apologia à Transamazônica, rodovia construída pela ditadura, descartando com isso um lindo samba de Martinho da Vila que denunciava o drama dos indígenas.

Os jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otavio, do GLOBO, estão pesquisando esses e outros exemplos para um livro sobre a relação entre a ditadura e o carnaval. Jupiara detalha:

— No livro “Salgueiro, 50 anos de glória”, o Haroldo Costa conta que até faltava luz na quadra durante os ensaios do Salgueiro em 67, o que seria uma tentativa de boicotar o desfile. No caso do enredo da Vila Isabel, de 74, houve um desdobramento curioso: o samba descartado do Martinho da Vila foi gravado futuramente por ele com o título “Festa dos Carajás”, e acabou se tornando muito mais popular do que o samba-enredo ufanista cantado na avenida — compara o jornalista, que celebra a digitalização do acervo do Arquivo Nacional. — É difícil pesquisar o carnaval, muitos personagens não estão mais vivos, e as escolas e blocos nunca tiveram o costume de guardar documentos que contem sua história. O valor de ter um acervo como esse disponibilizado é enorme, é importante saber, por exemplo, até que ponto o governo interveio numa manifestação popular, como é o carnaval. Será que os censores iam realmente para a pista checar se os blocos cumpriam o que o croqui submetido à aprovação indicava?

Redação

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