Carter teve de abrandar cobrança por direitos humanos ao regime militar

Sugerido por Pedro Penido dos Anjos

Do O Globo

‘Hipersensibilidade’ brasileira à intromissão dos EUA fez Carter pensar duas vezes
 
Presidente americano abrandou cobrança por direitos humanos
 
Flávia Barbosa, Correspondente

WASHINGTON – A promoção dos direitos humanos foi uma das peças-chave do projeto de política externa do democrata Jimmy Carter nas eleições presidenciais americanas de 1976. O discurso duro implicava numa alteração das relações com as ditaduras militares na América do Sul, especialmente com o Brasil. Porém, logo depois de assumir a Casa Branca, Carter foi obrigado a ser extremamente cauteloso na pressão sobre o general Ernesto Geisel. É o que mostram memorandos da equipe do americano, que reconhecem a “hipersensibilidade” brasileira à intromissão dos EUA.

O termo foi usado com frequência tanto pelo chefe do Conselho de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, quanto pelo secretário de Estado, Cyrus Vance, em recomendações e avaliações a Carter. Consta de documentos consultados pelo GLOBO nos arquivos da Biblioteca Presidencial Carter, em Atlanta. A “hipersensibilidade” também era observada pelos americanos na questão nuclear — principal ponto de atrito das relações bilaterais.

A reação do Brasil foi considerada muito forte aos discursos do primeiro trimestre de governo Carter e à decisão do Congresso dos EUA de obrigar o Departamento de Estado a divulgar um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, em março de 1977. O Brasil cancelou imediatamente a cooperação militar com os EUA, assinada em 1952, e adotou forte postura antiamericana, acusando a Casa Branca de intervencionismo.

Na preparação da visita de Estado ao Rio e a Brasília em março de 1978, Cyrus Vance diz a Carter um mês antes:

“(O cenário) pede que a abordagem com o Brasil seja feita com sutileza e de forma indireta, reconhecendo sua hipersensibilidade”.

A personalidade do general brasileiro era outro fator levado em consideração na montagem da estratégia americana. Em relatório secreto ao presidente, Zbigniew Brzezinski assinala que “Geisel não é uma pessoa que sucumba a pressões”.

O temor do governo Carter era que ocorressem três desdobramentos a partir de gestões insistentes dos EUA por mudanças. O que causava maior apreensão era que o Brasil aprofundasse a cooperação com a Alemanha e ampliasse seu programa nuclear, ignorasse rígidas salvaguardas internacionais, e incentivasse uma corrida nuclear regional. Os americanos queriam a revisão do contrato brasileiro, com adiamento da transferência da tecnologia alemã para enriquecimento de urânio e reprocessamento de material, etapas que davam condições de construção de armas nucleares. Uma recusa brasileira afetaria a posição global dos EUA de não proliferação.

Os documentos também refletem preocupação com a possibilidade de o Brasil, irritado, capitanear um movimento antiamericano no Cone Sul. Telegrama da embaixada americana em Lima de maio de 1977 relata ao Departamento de Estado — com cópias para as embaixadas de Brasil, Argentina, Paraguai, Equador, Colômbia, Bolívia e Venezuela — a realização de um encontro secreto de generais em Assunção, dias antes, para discutir uma reação comum da América do Sul à política americana de direitos humanos.

Desdobramentos políticos

Teria se discutido um encontro de chefes de Estado ou dos chanceleres, e também a possibilidade de a reunião ocorrer nos bastidores da cúpula da Organização dos Estados Americanos (OEA), que aconteceria no mês seguinte em Granada. No telegrama, a embaixada em Lima afirma que Brasil e Uruguai estavam pressionado por forte linguagem antiamericana em documento do eventual encontro.

Por último, o primeiro escalão americano temia que o Brasil, sob Geisel, utilizasse a pressão dos Estados Unidos para recrudescer o regime militar, em vez de flexibilizá-lo. Isso porque a avaliação dos americanos era que a eleição de Carter mudara a equação política no Brasil, com as críticas dos EUA, até então alinhados à ditadura, servindo de combustível às demandas da oposição.

“O Brasil está caminhando lentamente em direção a maior respeito por direitos humanos e maior liberalização política”, reconhecia Brzezinski ao presidente em fevereiro de 1978. Mas, para não “provocar um passo atrás”, “a fórmula (para a visita) é dar apenas declarações gerais sobre direitos humanos e democratização e evitar especificamente comentários sobre desdobramentos políticos no Brasil”.

O abandono da agressividade nas cobranças ocorreria, porém, já no segundo trimestre de 1977, quando Carter encaminhou carta a Geisel reafirmando os laços entre os EUA e o Brasil. Prosseguiu com a visita da primeira-dama Rosalynn Carter em junho de 1977, quando mesmo a prisão e tortura de dois missionários americanos pelas forças repressoras no Recife foram tratadas sem grande alarde pela enviada da Casa Branca.

A revisão da estratégia diplomática previa comentários genéricos dos EUA sobre direitos humanos, “num arcabouço global geral”, escreveu Zbigniew Brzezinski ao presidente na preparação da visita de Estado, “em vez de isolar esses assuntos e lidar com eles no contexto Brasil-EUA”. A decisão da Casa Branca foi pela pressão indireta, resumida ao encontro de Carter com Dom Paulo Evaristo Arns e outros poucos representantes da sociedade civil no Rio, ou seja, longe do Palácio do Planalto, e ao discurso ao Congresso, onde o tema foi tratado sem acusações ou sermões.

Carter também fez gestões nos EUA para evitar enfurecer o Brasil novamente, após a sua visita, e um ano de esforços diplomáticos. Ele foi informado por Brzezinski em maio de 1978 que o Congresso estava pressionando por medidas que afetariam o Brasil — entre elas a confecção de novo relatório de direitos humanos. Avisado por seu assessor direto que tais iniciativas deixariam as relações bilaterais “em potencial campo minado”, Carter instruiu à mão no relatório que a Casa Branca mantivesse posição firme na negociação com os parlamentares e ameaçasse, inclusive, vetar as legislações.

O fim da era mais difícil da ditadura brasileira, patrocinada por Geisel, também ajudou os EUA a relaxarem as cobranças. Apesar da insatisfação americana e de decisões controversas do general, como a suspensão do Congresso em 1977 e mudanças da legislação eleitoral em 1978 — para garantir a maioria da Arena, em meio ao sucesso eleitoral do MDB nas eleições locais —, o governo Carter avaliava positivamente o desempenho do presidente brasileiro, reconhecendo que ele se empenhou em manter a promessa de distensão política e que “houve uma tentativa sincera de sua parte em eliminar a tortura”.

 

Redação

7 Comentários

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  1. Uai, mas os

    Uai, mas os generais-presidentes não batiam continência pra Washington? Não é esse um dos mitos caros à esquerda latino-americana?

    1. Colocando a esposa de joelhos

      Meu caro, se vc acha que as relações internacionais (e humanas) são simples assim como “bater continência ou não”, esqueça todo o enredo socio-politico histórico do Brasil e do mundo.

      Apenas decida para quem vc deve bater continência.

      Aí fica como naquela estória do cara machão que sempre colocava a esposa de joelhos!

      Fugia pra debaixo da cama e a esposa ficava agachada de joelhos, gritando:

      “Saia de baixo da cama, seu merda!”

       

    2. Não é mito. Justamente, a

      Não é mito. Justamente, a matéria mostra que a história não é tão simples assim. O contexto político e econômico deve ser observado. O governo Carter foi um intermezzo entre as duas políticas externas linhas-duras de Nixon-Ford e de Reagan. (Interessante notar que seis anos depois da conferência da OEA em Granada citada na matéria, esse país seria invadido pelas forças de Reagan!) Os EUA havia acabado de sair humilhado de uma guerra embaraçosa no Vietnam. O mundo vivia a crise do petróleo e estava muito longe da bonança econômica dos anos 60. Ao mesmo tempo o governo brasileiro buscava outros alinhamentos diplomáticos, vide a cooperação nuclear com a Alemanha. O cenário diplomático entre Brasil e EUA era bem diferente dos anos 50 e 60 e os monstros ditatoriais que os EUA ajudaram a criar no cone Sul demonstravam ter vontade própria. 

      Entretanto, sabemos que tampouco é mito que a cooperação militar entre os EUA e os países do Cone Sul funcionou muito bem nesse período, através do que se chama Operação Condor. Poucas vezes na história da América do Sul vimos governos tão alinhados e dispostos a trabalhar juntos de maneira tão sistemática. O resultado foi o eficiente desaparecimento e assassinato de vários líderes políticos, inclusive muitos líderes não-esquerdistas.

      Mas talvez você tenha razão sobre a mitificação de nossa história. Afinal, até pouco tempo atrás, poucos tinham exata noção do papel dos EUA em 1964, e somente conspiradores insanos poderiam imaginar o áudio divulgado recentemente no documentário “Jango”, em que JFK e o embaixador americano no Brasil conversam sobre que ações efetivas tomar contra um possível “golpe de esquerda” de Jango. Poucos tinham, até pouco tempo atrás, exata noção de como os EUA financiava militares e políticos para desestabilizar o governo de Jango. Felizmente, existe hoje um esforço (nunca tardio) em nosso país para tentar entender o que se passou nesse período.  

      1. Só os EUA tinham influência

        Só os EUA tinham influência no Brasil durante a guerra fria a URSS deixou de “boa” o Brasil para os EUA , não fizeram nada então.

        O problema é contar as coisas só de um lado.

  2. “Take it ease, Mr. President,

    “Take it ease, Mr. President, we helped to put these crazy nuts in the control!” – Abraham Lincon Gordon

     

     

     

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