Coisas do samba, minha nêga

Nestes dois dias esqueci um pouco o golpe do impeachment, a Lava Jato, os varões de Plutarco de Michel Temer, para curtir um pouco a música.

Ontem, me permiti dormir às duas da manhã por uma belíssima causa: fui levado por Eduardo Gudin a um jogo de sinuca com ele, Paulinho da Viola, Toquinho e Arismar do Espírito Santo. Gudin cometeu a ousadia de me desafiar para uma partida. Diria que poupamos de encaçapar a bola vermelha por uma boa meia hora.

Os “causos” foram melhores, especialmente a fina prosa de Paulinho da Viola, que revelou algumas das peripécias de festivais.

Um de seus primeiros sucessos foi “Coisas do Mundo Minha Nega”, interpretado por Jair Rodrigues na Bienal do Samba. A música ficou de fora na primeira seleção de 36 músicas. Aí um jurado descobriu que o samba de Zé Keti já tinha sido apresentado no filme “Rio 40 Graus”. Pelo regulamento, a música foi desclassificada e em seu lugar entrou a de Paulinho.

Na final, período em que o que mais se ouvia em festivais eram as vaias, Paulinho se escondeu no fundo da plateia, com receio da música levar vaia e o compositor ser identificado no meio do povo.

Para sua surpresa, viu a família de Chico Buarque – incluindo o pai Sérgio – esticando uma faixa com o nome do seu samba. Aí começou a achar que a música daria certo.

O receio de vaias vinha das experiências de Fernando Faro na TV Tupi, tanto nos Festivais Universitários como na Feira Permanente da Música Popular. Paulinho se lembrava da vaia que levou quando foi apresentar “Foi um Rio que passou na minha vida”, classificado na eliminatória do mês anterior. Havia uma torcida furiosa, defensora de músicas experimentais que não poupou o samba.

Por coincidência, participei daquele festival. Classifiquei uma música experimental, o “Congresso Internacional do Medo” e viemos com uma banda composta por amigos de Poços e São João da Boa Vista (na época, ainda cursava o clássico). A representante da vanguarda era uma música da Faculdade Paulista de Medicina, a “Ópera Obra”. A torcida, barulhenta, não poupava o que não fosse vanguarda. Por conta das nossas experiências, conseguimos claque a favor e acabamos vencendo a eliminatória empatados com a canção “Flor da Campina”, da promissora compositora iniciante Suely Costa, lindamente interpretada por Sonia Maria.

De Gudin veio a lembrança do dia em que me encontrei com ele, um sábado, indo para a casa dos meus pais. Os dele moravam vizinhos. Cruzei na calçada e ele perguntou o que eu iria fazer à tarde. Trabalhar, respondi. E ele apresentou a proposta irrecusável uma tarde com Baden Powell.

Fomos para o Brasilton, na Augusta. Lá, Baden pegou um tema de Gudin e passou uma hora, na nossa frente, tecendo um dos arranjos de Baden. E, com a generosidade e o discernimento que tinha, elogiou Gudin como um dos grandes compositores brasileiros.

A conversa evoluiu para a música instrumental contemporânea e nós dois concordamos que Yamandu Costa é o maior talento da história do violão brasileiro, com uma técnica inclusive superior à de Baden. A técnica, porque Baden – na definição de Gudin – falava com Deus. Nos anos 70 e 80, o estilo Baden foi dominante no violão mundial.

Gudin se dizia admirado com a generosidade de Yamandu, sempre disposto a acolher outros instrumentistas, a promovê-los, sua ligação com a história da música. Rafael Rabelo tinha a mesma generosidade, a empatia que o fazia dominar qualquer toda, não apenas com a musicalidade explosiva, mas com a liderança, o discernimento e a sede permanente de ouvir e contar a história do choro. E o mesmo talento.

Gudin estava presente no famoso show da boate Dobrão, em janeiro de 1971, que marcou a volta de Chico Buarque para o Brasil, após o período na Itália. Já contei esse episódio em uma crônica, especialmente a cena em que, no bar do Tobias, do lado, Chico Buarque quase matou Nelson Cavaquinho inclinando-se sobre uma mesa de ferro para beijar o ídolo e caindo com mesa e tudo em cima do sambista.

Gudin estava presente e acrescentou mais detalhes que eu me esquecera: Chico chegou a beijar os pés do mestre.

Muito mais historias rolou.

Hoje foi a vez de conversar com Thadeu Romano, o jovem acordeonista que está prestes a iniciar carreira internacional. Thadeu tornou-se o acompanhador preferencial de Sérgio Reis, Renato Teixeira e de outros sertanejos urbanos. E cultivou uma bela amizade com o gênio Dominguinhos.

Um amigo de Dominguinhos contou a história de ambos, indo tocar na casa de um coronel nordestino. No fim da apresentação, o coronel chegou todo cheio de razão para Dominguinhos e passou-lhe uma carraspana devido à interpretação de “Brasileirinho”.

  • Muito me surpreende você não saber tocar direito “Brasileirinho”, investiu implacável/

E Dominguinhos, humilde:

– Na próxima vinda aqui juro que vou ensaiar melhor.

E o coronel insistindo na bronca, para espanto do amigo de Dominguinho, incrédulo com sua passividade. Depois que saíram da fazenda, o amigo cobrou uma atitude dele:

  • Ele te fala aquelas barbaridades e você não reage?

E o sábio Dominguinhos:

  • Não toquei “Brasileirinho”. Foi “Tico Tico no Fubá”.

 

Luis Nassif

12 Comentários

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  1. Nassif falando das coisas

    Nassif falando das coisas cotidianas do Brasil, xadrez disso e daquilo é imperdível.

    Contando causos é muito melhor.

    Essas de hoje melhorou o meu astral.

    A do Dominguinhos, fechou com chave de prata!

  2. Vou confiar na memória

    Nassif já publicou mais de uma vez a crônica do Chico e do Nelson Cavaquinho. Vou confiar na minha memória, salvo engano o bar era um que ficava ao lado do Theatro São Pedro, estavam Chico e Nelson naquelas mesas de ferro. Obviamente, ambos em estado pra lá de Marrakesh. Chico, reverenciando o ídolo, diz ao Nelson que vai beijá-lo. Nelson resmunga, “sai pra lá , que eu não beijo homem”. Chico investe pra cima dele por sobre a mesa, e vão todos parar no chão em meio a cadeiras, garrafas e copos. 

  3. Origem do nome de um choro

    Esse papo devia ter sido gravado.

    Mas cá do meu canto, metido em  meu pobre eu, do alto da minha ignorância, não consigo ver Yamandu Costa na altura em que o veem. Aqui fala quem não conhece uma só nota musical, mas possui uma observação musical de olhos e ouvidos. Me parece às vezes que Yamandu se mostra como um artista de habilidades circenses. Se a gente não o vê, se a gente apenas o escuta, o feitiço diminui. Penso assim porque não esqueço o som de Baden naquele vinil em que ele arranja A Lenda do Abaeté, por exemplo. E porque sou natural do Recife, terra onde cresceu e amadureceu Canhoto da Paraíba.

    E aproveito pra contar uma, que uma vez me falou em segredo Henrique Annes, numa entrevista.  Aquele lindo choro de Canhoto, de nome Tua Imagem, foi batizado por Henrique Annes. Como? Ele estava ensaiando – aprendendo – na casa de Canhoto, quando o gênio de cara de lua lhe mostrou um choro, que ainda não tinha nome. Nesse momento, passa ao fundo da sala a filha de Canhoto, bela, vestida em camisola. E Henrique, no ato: “Tua imagem”.

     

    Esse choro depois geraria uma polêmica de plágio com Jacob do Bandolim. Mas a origem do seu nome só perde para a beleza do choro. Vitória da sensibilidade, de Henrique, Canhoto e musa.

    1. “Igual qui eu”

      Que, também, do alto da minha ignorância musical, que não conhece uma só nota, já tive a audácia de comentar que o músico em pauta não me agradava porque, em alguns momentos, ele “arranhava a nota”; em outras, “comia a nota” – diferentemente do Raphael Rabello.

  4. Rindo aqui aos tachos com a

    Rindo aqui aos tachos com a história do Dominguinhos. Pior que o sujeito tinha um jeitão assim mesmo. Nordestinês de primeira: pra que contrariar o cara se ele já é um estúpido por natureza?

  5. Sobre o post

    É disso que gosto.
    Espero que alguém escreva um livro contando esses casos.

    Essa música do Paulinho da Viola é a minha preferida, mais linda do que “Sinal Fechado”.

    Em entrevistas antigas da TV, lembro do Chico Buarque contar que ele e uns outros famosos (não lembro os nomes), roubaram um ônibus em Cuba  (acho) e saíram pela cidade para curtir a noite.

    O Chico e sua fixação em roubar. Roubou o meu coração e não devolveu…rsrs

    Quanto ao Dominguinhos, meu outro querido, foi genial, dei altas gargalhadas.

    Penso que precisamos mais de pots igual a esse.

     

     

     

  6. O assunto é sinuca, e tudo mais em torno

    Como dizia a saudosa Raquel, que costumava frequentar este salão de bilhar internético há poucos anos, aqui havia uma coisa diferente que não tinha nos outros blogues de política. Disse pra ela que isso era porque o Nassif é músico. Ou seja, sua sensibilidade é outra. E pra voltar ao tópico, segue a versão cinematográfica de Maurice Capovilla para Malagueta perus e bacanaço, de João Antônio. O assunto é sinuca, e tudo mais em torno, ao som do último trabalho de Radamés Gnatalli, e canções de João Bosco e Aldir Blanc. Além de grandes atores nos papéis principais, há também lendárias e históricas figuras da sinuca como Carne Seca e João Gaúcho. Raridade acessível. Então, vejam e leiam João Antônio.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=e2gNPbZrNLw%5D-

  7. Alto lá

    “Yamandu Costa é o maior talento da história do violão brasileiro”, diz o Nassif.

    Será mesmo?

    Já descontando o Baden, que não merecia isso, é preciso respeitar mais Raphael Rabello.

    Yamandu é performático. Ele “ataca” o violão, trata as cordas com certa brutalidade. Brutalidade genial, mas brutalidade.

    Raphael Rabello é virtuosismo e sensibilidade. 

  8. Foto abaixo inusitada

    Que foto: Roberto Carlos, Geraldo Vandré, Torquato, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Elis Regina, Edu Lobo, Marilia Medalha, Nara Leão, Sidney Muller e os Mutantes. Reunião de feras. 

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