Com a cabeça, por Marcos Dantas

“Com a cabeça”, explicou o craque

Por Marcos Dantas

Narro fato conhecido sobre o qual se pode ler ou ouvir em alguns artigos ou documentários narrando feitos antigos da Seleção Brasileira de futebol. Era o jogo Brasil x Uruguai, Copa do Mundo de 1970. Um  jogo marcado por toda a pesada lembrança do Maracanazo, exatos 20 anos antes. Em campo, com tão somente duas estrelas vitoriosas no peito, contra também duas do lado contrário, jovens, na faixa dos 20 anos ou pouco mais de 30, que haviam, pois, nascido à época daquela tragédia futebolística (para nós), ou glória (para os uruguaios), e crescido à sombra das conversas de pais, tios, avós, sem falar do noticiário jornalístico, sobre aquele fatídico 16 de julho de 1950. A memória era muito viva.

E a Seleção brasileira, aquela de Pelé, Gerson, Carlos Alberto, Tostão, Jairzinho, a seleção brasileira parecia sentir a pressão. Jogava mal. Errava passes. Acabou tomando o primeiro gol uruguaio. A história parecia se repetir nos gramados mexicanos. E não seria como farsa.

Então, narram os personagens, Gerson, o cérebro do time, comentou, em campo, com Carlos Alberto, o Capitão, que estava sendo muito bem marcado, não conseguia jogar. É que o técnico uruguaio percebera que, se parasse Gerson, poderia parar o Brasil. Daí, o “Canhotinha”, como era chamado, sugeriu retroceder para a posição de volante, liberando o médio Clodoaldo para ir à frente. O Capitão concordou, passou a orientação para Clodoaldo e… na sua primeira subida ao ataque, faltando poucos minutos para o fim do primeiro tempo, ele faz o gol do empate. O resto é história.

É um fato emblemático porque diz muito dos jogadores brasileiros de então. Com toda a certeza, muitos outros casos semelhantes podem ser colhidos por aí. A exemplo daquele, mais famoso, de Didi pegando a bola no fundo das redes, após o primeiro gol da Suécia na final de 1958, caminhando tranqüilo para o meio de campo, acalmando os companheiros e já dando instruções para a equipe buscar o empate. Ou um outro, alguma vez lido por aí, guardado na memória, protagonizado por Danilo Alvim, o Príncipe, um dos craques da Seleção de 1950. Com um hábil movimento de perna e pé, recolheu lindamente uma bola que chegava pelo alto. Ao fim do jogo, um repórter de campo lhe pergunta: “Danilo, como você fez aquilo?”. – “Com a cabeça”, foi a resposta.

Com a cabeça. Sim, futebol, ao contrário do que parece, se joga com a cabeça. Podem perguntar ao Pelé, ao Zico, ao Romário, a tantos outros, se toda a habilidade que exibiam não era conscientemente comandada pela cabeça. E a palavra “cabeça” aqui, como sabe qualquer um, é metáfora para pensamento, inteligência, raciocínio, tirocínio. Diante de nossos olhos, parece-nos que um time campeão chegou lá pela habilidade, além de preparo físico, dos seus jogadores. Nossos olhos, claro, não podem porém perceber que o time campeão chegou lá por que, se não todos, muitos dos seus jogadores PENSAM. Poderemos, depois, talvez entender isso, se começarmos a ouvir suas histórias de dentro do campo.

Pensar não é inato ao ser humano. Obviamente, nascemos e crescemos dotados de estruturas cerebrais que nos permitem sermos capazes de pensar. Mas assim como nossos músculos se desenvolvem em função de como os ativamos (será normal que jovens atletas tenham musculatura mais desenvolvida que os não atletas), também a nossa competência para pensar se desenvolverá conforme as estruturas cerebrais sejam ativadas e modeladas. Não fosse assim, a nossa civilização não teria criado a escola, desde os tempos dos gregos. Aliás, sempre que as sociedades humanas quiseram manter populações na ignorância, aboliram as escolas, ou tornaram muito seletivo o acesso, ou bastante rudimentar o ensino.

Se há pesquisa, desconheço. Mas dificilmente o jogador brasileiro de futebol, do tempo de Danilo, de Didi, Gerson, Pelé ou Zico, completava mais de oito anos de escolaridade, se é que não parava nos quatro ou cinco. Mesmo assim, sabia pensar o necessário para exercer muito bem o ofício que escolhera praticar. De onde vinha isso? Certamente, de uns poucos anos passados numa escola pública de qualidade. Sim, até os anos 1970, no máximo 1980, a escola pública primária brasileira podia ter muitas deficiências, mas ensinava o que lhe cabia ensinar.

Além da escola, numa época ainda sem televisão em cada casa (verdade, já houve uma época assim!), o tempo de lazer era ocupado em atividades lúdicas coletivas, que exercitavam a perspicácia, além de leituras, nem que fossem de revistas em quadrinhos, mas também jornais e revistas em geral. Claro, as conversas familiares ajudavam a exercitar os neurônios, até porque pautadas pelo rádio, além da imprensa escrita, inclusive na audiência de gongóricos locutores esportivos que precisavam florear a frase para edificar as imagens do espetáculo. E não vamos nos esquecer da Igreja, do Catecismo, da retórica grandiloquente dos padres em seus sermões.

Quantas vezes já vimos ou ouvimos, Pelé ou Zico agradecerem a Deus, ou Romário jactar-se que “Papai do Céu lá em cima, disse ‘este é o cara'”? Crença em Deus, religiosidade é algo muito próprio do ser humano. Nas camadas populares, sobretudo. Mas aquelas sucessivas gerações que fizeram a glória do futebol brasileiro, aprendiam a pensar e, nisto, também aprendiam a hora de rezar. Pelé alguma vez disse que, antes de alguma partida, gostava de permanecer muitos minutos silencioso, isolado, num canto do vestiário. Imaginava os lances com os quais pretendia surpreender o adversário logo mais. Pensava. Talvez até, no final, fizesse um rápido sinal da cruz. Mas isto não disse, seria porém natural.

A atual geração de jogadores do futebol brasileiro não sabe pensar. Como ficou muito claro no final do tempo regulamentar contra o Chile, na Copa recém encerrada, incapaz de analisar o jogo, ou “fazer a leitura” como gostam de dizer os comentaristas, não vê outra solução exceto entregar a Deus. Literalmente. Ao invés de pensar, rezam. É o que fez, como declarou querendo se explicar, o desmilingüido  zagueiro Thiago Silva. Logo o Capitão! E basta ouvir qualquer entrevista de qualquer jogador atual, seja de Seleção ou não, para se perceber a extrema limitação vocabular, reflexo da miséria intelectual, desses jovens. Aliás, como a Copa nos permite reencontrar, na condição de comentaristas, muitos atletas de Seleções passadas, fica ainda mais evidente o quanto, nas futuras Copas, os canais de televisão terão dificuldade para renovar ou rejuvenescer suas equipes…

É evidente que o desastre da Seleção brasileira nesta Copa, em total contradição com o extraordinário sucesso da Copa em si, resulta de um conjunto somatório de problemas. Mas ao fim e ao cabo, futebol se faz com gente dentro do campo. Gente que tenha não somente a habilidade mas a inteligência e tirocínio já exibidos por tantos que construíram no passado a beleza e glória do futebol brasileiro. Essa gente, nós não estamos mais formando. Menos porque exportamos talentos muito cedo, mais porque esses talentos já não são tão talentos assim. Tanto que já não formamos bons jogadores de meio de campo e ataque, setores onde mais se exige pensar o jogo. E o que exportamos, na grande maioria, segue para mercados secundários, ou times de menor expressão. Exceções confirmam a regra.

Entendendo que o futebol muito diz sobre um povo, suas crenças, suas condições de vida, seus sonhos, o desastre da Seleção está justamente nos dizendo o que é o povo brasileiro hoje, que tipo de jovens, homens daqui a pouco, nós estamos formando aos borbotões. Nesse povo é recrutado o atleta que no futebol enxerga uma chance de sair da pobreza, graças a Deus, não à sua razão. O poder da razão, aliás, ele só pode ignorar. E assim será enquanto continuar sendo-lhe dolosamente negada uma melhor educação, deixando vazio o seu cérebro para ser entupido até não caber mais por religiosidade fundamentalista.

Redação

9 Comentários

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  1. O texto ia mais ou menos bem

    O texto ia mais ou menos bem até que o preconceito religioso do autor – não o único, este de achar que todos os que procuram jogar futebol estão querendo sair da probreza é outro – o traiu, a irracionalidade o fez deixar de pensar com a cabeça e pensar com o instinto. Deixou de ser Gerson para ser um Hulk desorientado.

    Ao relacionar falta de educação, cabeça vazia e fundamentalismo religioso na parte conclusiva do texto com o desempenho e comportamento da seleção, e isto como espelho de uma geração de brasileiros cabeças ocas, só nos faltou convocar para uma revanche salvadora em outubro, como fez Fernão Mesquita em texto recente no seu Estadão.

    E o Brasil não está a exportar jogadores habilidosos para times médios da Europa. Não está porque parou de formá-los a alguns anos, mais de 10.

  2. Dessa última copa,

    e em relação à nossa seleção ficou uma dúvida: 

    o que os tais “massagistas de almas” (psicólogos) andaram colocando na cabeça de nossos guris? 

    Achei estranhíssimo que uma parte do time caiu em lágrimas, ainda que logo após uma vitória. 

    Será que esses psicólogos andaram incentivando os neurônios errados ? 

  3. DISCORDO

    Acredito que antigamente só se tornavam lendas como as acima citadas, os fatos positivos.

    Foram esquecidos os fatos negativos, a cobetura de eventos futebolisticos era feita por jornalistas mais alinhados com os jogadores, amigos mesmo, que tambem participavam e viajavam com os jogadores.

    Por isso noitadas, mulheres, bebidas e drogas eram coisas ignoradas desde que os jogadores jogassem bem.

    Também seria díficil, e às vezes perigoso fazer revelações sobre intimidades dos jogadores, pois a reação das gerações era matar pela honra.

    Hoje a exposição dos mesmos é imensa e fatos negativos são furos para jornalistas, rendem mais exposição. São criadas situções forçadas, boatos, tudo para apresentar o lado negativo do ser humano que sempre foram. 

    Também acredito que hoje futebol é um negócio, tem investidor, tem comprador, vendedor e matéria prima.

    O pai investe no filho na escolinha, contrata um manager, que coloca o menino em evidência, que é alvo de um olheiro, que indica ou agencia o garoto e usa de lobby para fazer ele subir na carreira, ser contratado por um time grande, ser convocado por uma seleção e ser negociado com um time rico no exterior.

    Isso acontece no Brasil e no exterior aumentando consideravelmente o numero de concorrentes ao estrelato. 

    Assim aqueles que tinham ou tem um dom, a partir de 1970 foram ou serão em sua maioria sobrepujados por aqueles que tem mais dinheiro para investir na carreira. 

    Mas é só o que eu penso.

     

     

     

     

    1. Meu, não é isto. Sou filho de

      Meu, não é isto. Sou filho de jogador, irmão de um que quase foi e não preferiu outra vida, a mim mesmo queriam me levar pros grandes também.

      Hoje eles são como os dos anos 60 e 70. Pensam as mesmas coisas, loira, dinheiro, carro, sempre rolou outras coisas. Sempre houve alguma exposição, saia no jornal as fotos, eram recortadas etc. Em outras profissões são outras as formas de exibição, jornalista vai a certos bares, usa certas roupas, faz pose de intelectual, etc e todas as profissões tem e sempre tiveram suas peculiaridades, todas humanas e comuns.

      Tem muita gente falando e escrevendo sobre o que não entende. Vem o jogo pela TV e raciocinam em cima de uma realidade virtual.

  4. O futebol é um esporte

    O futebol é um esporte “falado”. Nem vou comparar os jogadores

    de “70 com os atuais, até por respeito, mas me lembro de meu

    pai coçando a cabeça  após o gol do Uruguai dizendo: Vai ser

    2 x 1 para o Brasil. O velho quase acertou..3 x 1.. fora o baile   e 

    o gol perdido por pelé mais “feito” da história do jogo da  bola.

    Mas mudando de esporte..a seleção brasileira  2014 é……………

    ……………………..

  5. O autor meteu o dedo na

    O autor meteu o dedo na ferida.

     

    A baixa escolaridade atrapalha sim. Não sabem nem o que é ser atleta. 

     

    O Walter do Fluminense nunca tinha comido salada antes de vir para o Rio.

    Vc acha mesmo que isso não tem a ver com educaçao? O cara almoçava negresco todo dia.

     

    A partir do momento em que o Futebol passou a exigir aplicação e comprometimento, que pode ser traduzido por profissionalismo, os jogadores brasileiros deixam a desejar.

     

    Basta olhar um jogador Brasileiro de 31 anos e um holandes. quem tem o abdomem mais duro? Isso não tem nada a ver com educação?

    Saber qual é sua profissão, atleta, não tem a ver com educação?

     

    Aqui no Brasil, seu trabalho é irrelevante. O importante é estar nas graças de deus. Aí ta tudo certo, enquanto a graça durar…

    1. Claro que não tem relação

      Claro que não tem relação direta saber jogar com a escolaridade. Se joga, treina, se concentra, viaja, tem pouco tempo para seguir um curso regular. O Brasil tem vários jogadores bem informados, habituados a leitura, com boa vivência, basta olhar o movimento do Bom Senso. Veja o blog do André que está na China como escreve bem. Melhor do que a maioria com escolaridade que posta aqui. Bem melhor. 

      Durante o desenvolvimento, envolvimento com o esporte, a inteligência se desenvolve junto, não é esta que decora textos para ser médico ou advogado, é lúdica, intuitiva, ligada ao corpo, espaço. Esta parte lúdica explica o desejo de ser jogador mais do que o da grana. Converse com qualquer bom juvenil que não conseguiu encaixar num profissional e seguiu o plano B, se se arrepende. Não.

       

      1. Desculpe a demora.
         
        Houve um

        Desculpe a demora.

         

        Houve um tempo no futebol emq ue bastava saber jogar.

         

        Hoje, não basta saber jogar. O cara tem que ser atleta, tem que saber se posicionar, tem que ser disciplinado, tem que ser um monte de coisa que a educação FACILITA.

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