Controle de armas reduz homicídios, comprovam pesquisas

Estatuto do Desarmamento, atacado por Bolsonaro, teria poupado a vida de 121 mil pessoas entre 2004 e 2012, mostra estudo 
 
Homem protesta Durante comissão especial  na Câmara, em 2015. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
 
Jornal GGN – Não se pode confundir correlação com causalidade quando se trata de segurança pública. O crime é um fenômeno complexo e multidimensional. Não existe um único determinante que explica por que aumenta ou diminui. Assim, o debate sobre o tema não pode partir de argumentos simples, mas estar baseado em dados científicos e evidências empíricas. 
 
A avaliação é do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e um dos coordenadores do Atlas da Violência, Daniel Castro Cerqueira. Ele mostra que, entre 1995 e 2003, a taxa de homicídios no Brasil cresceu 21,4%, enquanto que, entre 2003 e 2012, o crescimento da taxa de assassinatos no período foi de 0,3%. O que teve de diferente a partir de 2003? A implementação do Estatuto do Desarmamento. 
 
“Concluímos que 1% a mais de armas nas cidades faz aumentar a taxa de homicídio em 2%, não tendo efeito para dissuadir os crimes econômicos”, escreveu na conclusão de um trabalho apresentado em 2013 e que lhe rendeu dois dos mais importantes prêmios de economia no Brasil: Haralambos Simeonidis da ANPEC e o BNDES.
 
O resultado do estudo brasileiro é compatível com outro feito nos EUA e publicado no American Journal of Public Health, em 2015, mostrando que para cada 1% no aumento da posse de armas de uso doméstico, houve um aumento de 0,9% no número de homicídios por armas de fogo.  
 
Nenhum desses dados foram considerados pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), ao assinar o decreto que facilita a posse de armas para cidadãos em todo o país, na última terça-feira (15). O chefe do Executivo se limitou a falar das alta taxas de homicídios – o Brasil bateu recorde de mortes violentas em 2017, com 63.880 casos -, trabalhando com o sentimento de insegurança da população. 
 
Bolsonaro poderia ter completado seu discurso com dados encontrados no mesmo levantamento que usou, do Atlas da Violência, mostrando que, em 2016, 71,1% dos homicídios cometidos no país foram com armas de fogo. 
 
“O uso defensivo de arma de fogo para conter crimes contra a propriedade é uma lenda, não há qualquer relação estatística”, afirma Castro Cerqueira, destacando que o Estatuto do Desarmamento, agora enfraquecido pelo decreto presidencial, produziu “efeitos significativos” reduzindo a circulação de armas de fogo no país. “[A lei] pode ter poupado a vida de 121 mil pessoas entre 2004 e 2012”, completa. 
 
O pesquisador explica, entretanto, que os efeitos do Estatuto não se deram de forma homogênea em todo o país, porque alguns estados tiveram menos êxito que outros na repressão do uso de armas. A conclusão, contudo, é que onde ocorreu o controle do porte de armas, diminuiram os homicídios.  
 
Consenso na literatura internacional: menos armas, menos homicídios
 
Estatuto do Desarmamento foi baseado em dados
 
A coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar, membro da diretoria do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Jacqueline Sinhoretto, explicou ao GGN que a correlação entre armas e mortes, provada cientificamente, foi inclusive o que levou à elaboração do Estatuto do Desarmamento.
 
Ela levantou relatos de moradores da Zona Sul de São Paulo para descobrir a origem das armas utilizadas nos crimes da capital paulista. 
 
“Fizemos entrevistas em locais com alta incidência de homicídios, principalmente entre jovens, e colhemos informações de que as armas foram facilitadas por agentes da própria polícia, envolvidos no tráfico de armas, começando no final dos anos 1980”. 
 
Segundo a pesquisadora, foi possível verificar que houve um aumento da circulação de armas nessas regiões no mesmo período em que a ditadura militar estava sendo desmontada. 
 
“Muitos revólveres e armas de fogo foram vendidos por policiais, acobertados pelas amizades e camaradagens dos próprios colegas”, explica. Jacqueline destaca que um levantamento semelhante, feito pelo cientista político Bruno Manso, no Rio de Janeiro, revelou o mesmo fenômeno na capital carioca, durante o período da redemocratização.
 
Para reverter o estado de conflito em bairros dessas cidades, como o Capão Redondo, que chegou a ser considerado o mais violento do mundo, nos anos 1990, organizações não-governamentais junto com os Estados realizaram uma série de projetos para a redução de homicídios, incluindo ações de desarmamento da população.
 
“Foi nesse contexto que nasceu o Estatuto do Desarmamento. Inclusive, na época, a Polícia Militar de São Paulo abraçou o Estatuto e a apreensão de armas ilegais estão no foco das abordagens policiais, desde então”. 
 
Um decreto alimentado pelo medo
 
A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, avalia o decreto do presidente Jair Bolsonaro como retrocesso em termos de políticas de segurança pública. 
 
“O presidente falou sobre um referendo de 2005 [como argumento] que tratou, especificamente, sobre a venda de armas, como se aqueles percentuais fossem de hoje”. Na época, 63% dos brasileiros votaram a favor do comércio de armas.
 
“Ele continua utilizando esses percentuais, de 14 anos atrás, porque os percentuais de hoje são desfavoráveis”, completa. 
 
Segundo levantamento Datafolha mais recente, feito em dezembro, 61% dos brasileiros defendem que a posse de armas seja proibida. Na divulgação anterior, realizada em outubro, a porcentagem era 55%. Nos três últimos meses do ano passado, a margem de pessoas que consideravam a posse de armas “um direito do cidadão” oscilou negativamente de 41% para 37%. 
 
A sensação de segurança proporcionada pela posse do equipamento, único ponto capaz de sustentar a decisão de presidente Bolsonaro, é rebatida por Pollachi: 
 
“Já está comprovado que mais armas é igual a mais crimes, mesmo nos Estados Unidos. Mas os defensores do armamento apostam no efeito dissuasório, o que é outra ilusão. Dificilmente quem comete crimes vai deixar de cometer porque a vítima pode estar armada. Basta uma reação errada para tomar a arma do cidadão. Policiais pegos em assalto, inclusive, não deixam de ser vítimas”. 
 
Outro ponto que preocupa o Instituto Sou da Paz é a extensão da validade do certificado de posse de arma que passou de cinco para 10 anos. 
 
“A extensão desse período também nos deixa mais desprotegidos. Antes, de cinco em cinco anos, o cidadão tinha que fazer testes motores e psicológicos para manter a posse de armas. Em dez anos o cidadão terá a mesma condição psicológica para portar uma arma de fogo?”, questiona. 
 
Leia também: Xadrez da indústria de armas e o financiamento da direita, por Luis Nassif
 
Responsabilidade do Estado na promoção de políticas públicas
 
A experiência do Estatuto do Desarmamento favorece a tese do papel do Estado no bem estar social, quando toma para si a responsabilidade de implementar políticas públicas. Esse mesmo princípio se verificou na cidade de São Paulo, na área da mobilidade urbana.  
 
Em 2015, a prefeitura implementou a redução da velocidade nas marginais. Um ano depois da medida, houve redução de 15,1% do número de mortes decorrentes de acidentes de trânsito na capital, em relação ao ano anterior. Em 2017, a nova gestão derrubou a regra de redução da velocidade e a cidade registrou, em um ano, o aumento de 23% do número de mortes causadas por acidentes nas marginais. Em suma, nem sempre alguém morre porque Deus quis assim. 
 
Leia também: EUA usaram controle de armas para reduzir violência
 
 
Redação

2 Comentários

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  1. muito significativa a

    muito significativa a diminuição dos números estatisticos a partir de 2003, 0,23 por cento….

    a tensão social diminui, a violencia diminui também…

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