Corpo e escrita são ligados pela sensorialidade das palavras

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A ligação do corpo com a linguagem escrita acontece pela sensorialidade das palavras

A sinestesia é mais do que um simples artifício linguístico quando oferece originalidade e diferentes percepções fisiológicas à literatura.

Por Andressa Monteiro

“Nem luz de astro, nem luz de flor

Somente: um misto de astro e flor

Que olhos tais e que tais lábios, certo

(E só por serem seus)

São muito mais do que isto

Ela é a tulipa azul do meu sonho deserto

Onde existe, não sei, mas quero crer que existo

No mesmo nicho astral entre luares abertos

Em que branca de luz sublime a tenha visto

Longe daqui talvez, talvez do céu bem perto

Ela vem, (sororal!) vibrante como um sino

Despertar-me no leito: ouro em tudo, — na face

De anjo morto, na voz, no olhar sobredivino

Nasce a manhã, a luz tem cheiro…

Ei-la que assoma

Pelo ar sutil

Tem cheiro a luz, a manhã nasce

Oh sonora audição colorida do aroma!”

 

Assim é o poema “Soneto do Aroma”, do poeta brasileiro Alphonsus de Guimarães, que adquire contornos da chamada poesia sinestésica e sensorial. A origem da palavra “sinestesia” vem do grega sin + aisthesis = a união de múltiplas sensações.

Pela perspectiva da gramática normativa, enquanto figura de linguagem, esse fenômeno é mais comumente associado ao movimento simbolista, uma vez que uma de suas características principais é a interação de sensações ou de eventos, assim como a doçura de um estilo semântico que descreve contextos literários nos quais distintas imagens não convencionais e sensitivas se inter-relacionam.

Uma pessoa que possui características neurológicas sinestésicas ou um escritor que goste de escrever sentindo o sabor, o cheiro, a textura e o contorno das palavras no papel acaba por evocar e relacionar diferentes cores, tamanhos, fragrâncias e paladares vistos apenas nesse tipo de gênero poético.  

O que é escrito, muitas vezes, pode ser sentido pelo corpo e não lido apenas pelos lábios. Os sentidos humanos são fantasiados na mente, simultaneamente à criação de palavras, ritmos, rimas e jogos de fala.

Marcel Proust, no livro “Em Busca do Tempo Perdido”, descreve o gosto de bolachas francesas, lembranças de paisagens, cheiros e objetos que participaram do seu passado. A sinestesia, portanto, não é ferramenta da língua apenas para um fazer da poesia – ela faz parte da vida de um autor constantemente.

John Locke, em 1690, foi o pioneiro na descrição desse elemento, ao narrar a história de um cego, que ao meditar sobre o que não podia ver, deduziu o que era a cor vermelha por meio da sonoridade emitida por uma trompa.

Aphofonso Henriques da Costa é considerado o autor místico do Simbolismo no Brasil, pela mistura das temáticas “amor e morte” em suas obras, percebidas como musicais e melancólicas.

Porém, foi João da Cruz e Sousa quem marcou o início do movimento literário, trazendo uma realidade subjetiva pela essência do ser humano, investigada nos símbolos. Podemos destacar o trecho do poema “Violões que choram” como exemplo:

Ah! Plangentes violões dormentes, mornos

Soluços ao luar, choros ao vento

Tristes perfis, os mais vagos contornos

Bocas murmurejantes de lamento

A sinestesia também pode ser encontrada nas Artes Plásticas. O expressionista europeu, datado no final do século XIX, possuía elementos sinestésicos que ajudavam a recriar o mundo à percepção e gosto de cada espectador – e não apenas absorvendo-o da maneira como ele era visto.

Uma das obras mais conhecidas dessa época é a de Edvard Munch, “O Grito”, de 1893, que trás em sua composição elementos característicos das percepções auditivas. Mas a obra a ser analisada nesse texto, do autor, é outra: A Morte da Mãe (1899-1900). A audição é vista por meio da imagem – que trás cores e formatos não convencionais, como se a filha não quisesse ver ou tampouco ouvir os lamentos e dores da mãe. As formas desfiguradas podem lembrar vibrações sonoras.

 

 

 

O mesmo acontece no trabalho da jovem fotógrafa americana Amy Roth, em que cabe imaginar que o cão retratado estaria “buscando algo com o seu olfato”.

Voltando ao campo literário, outro autor que flerta com a sinestesia é Clarice Lispector. Em 1971, a escritora escreveu um manuscrito chamado de “Objeto Gritante”. O trabalho seria visto, posteriormente, com o nome de “Água Viva”, publicado em 1973. Eis um fragmento do livro:

“Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra […] O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.”

Não interpretamos apenas com a ajuda do raciocínio. Na obra, a personagem-narradora afirma: “Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras”.  Dessa maneira, observamos a leitura com todas as partes de nossos corpos de forma erógena e intensa. A escrita é o resultado de que o texto deseja o leitor e vice-versa.

O ensaísta paranaense Bruno Nunes, grande estudioso de Clarice, chama a atenção de estudiosos que não conseguem ver a importância de certos temas e situações constantes da obra da ficcionista brasileira.

De acordo com o crítico, que se baseia em diversas obras da autora, “a partir de um dado momento, quando as personagens se deparam com algo aparentemente corriqueiro, comum no dia-a-dia [sic] dos seres humanos, que as personagens vão despertar para o sentido da vida” (…). Há uma leitura fragmentada, mas não estilhaçada, como o efeito de um moderníssimo sistema de som que cerca o ouvinte por todos os lados, colocando-o dentro das cenas”, completa Nunes.

Concluindo, podemos citar os exemplos de Aphonsus e Clarice, como escritores que compreenderam plenamente os mecanismos de sutilezas, leveza, charme e formatos ao ocultar e desvendar o íntimo da literatura sinestésica.

 

Referências

BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia, Arte e Tecnologia: Fundamentos da Cromossonia. Annablume. 2002.

Jaffé, aniela. O simbolismo nas artes plásticas. Editora Perspectiva. 1997.

SOUZA, Cruz. Tropos e Fantasias; Missal e Broquéis; Evocações; Faróis; Últimos Sonetos. Martins Fontes. 1885.

SOUZA, Cruz. “Violões que choram…” In: Poesias completas. Ediouro. 2001.

SANTANA, Ana Lucia: Sinestesia. Info Escola, São Paulo, 2014. Disponível em: http://www.infoescola.com/psicologia/sinestesia/. Acesso em: 5 de janeiro de 2015.

NASCIMENTO, Maria de Fatima: Benedisto Nunes: Relações da obra de Clarice Lispector com teorias de ser e tempo de Heidegger. UNICAMP. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/seta/article/viewFile/1943/1518. Acesso em: 6 de janeiro de 2015.

LISPECTOR, Clarice: Água Viva. UNICAMP. Disponível em: http://www.cyvjosealencar.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/26/700/16/arquivos/File/Livros/Clarice%20Lispector/Agua%20Viva.pdf. Acesso em: 8 de janeiro de 2015.

EMANUELLE, Jéssica: A Sinestesia na Literatura e nas Artes Plásticas. Letras Anhanguera, São Paulo, 2010. Disponível em: http://letrasanhangueradf.blogspot.com.br/2010/11/sinestesia-na-literatura-e-nas-artes.html. Acesso em: 10 de janeiro de 2015. 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Otimo texto!

    Parabens Texto Perfeito!

     

    Jean Rodrigues, Apaixonado por Tecnologia e profissional na area de <a href=”http://forestcnc.com.br/corte-laser/” alt=”Corte Laser”>Corte Laser</a>, São Paulo – SP

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