Corrupção e exclusão ou corrupção é exclusão?, por Ana Luiza Melo Aranha

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
 
Do Brasil Debate
 
Corrupção e exclusão ou corrupção é exclusão?
 
Ana Luiza Melo Aranha
 
A corrupção diminui o domínio da ação pública, diminui o alcance da própria democracia, ao reduzir instituições públicas de ação coletiva a meros instrumentos de benefício privado
 
Não me cansam de perguntar: mas, afinal, o que vem primeiro, a desigualdade ou a corrupção? Caros leitores, na minha cabeça esses dois temas estão tão entrelaçados, imbricados mesmo, que é impossível pensar em um sem remeter ao outro.
 
Numa democracia, quando elegemos algum político, está implícita uma relação de prestação de contas: você autoriza alguém a agir em seu nome, tomando decisões que afetam a sua vida. Mas há limites sobre este agir: ele não deve se pautar em ações ilegais (e eu acrescento, ilegítimas). Quando este político (e vamos deixar claro aqui que a corrupção é uma via de mão dupla ou tripla, a dimensão política é uma delas, mas muitas vezes também está presente o setor privado e a própria burocracia pública) opta por ações corruptas, usando recursos públicos para fins privados, o que ele está fazendo automaticamente é excluir os cidadãos e, portanto, contribuir para aumentar a desigualdade.
 
O fato de alguém adquirir algo a que não tem direito (seja montante de dinheiro, cargos, influência…) usando de um poder delegado pelos cidadãos significa a própria exclusão da cidadania do mundo político.
 
Quebra-se uma conexão básica entre representante e representado, entre as decisões coletivas ou a ação dos governos por meio das políticas públicas e o poder do demos de influenciá-las através da fala e do voto. A corrupção diminui o domínio da ação pública, diminui o alcance da própria democracia, ao reduzir instituições públicas de ação coletiva a meros instrumentos de benefício privado.
 
Se democracia significa formularmos as normas às quais nos submetemos (pela via de nossos representantes políticos), ela implica necessariamente uma condição de inclusão política. Abusar indevidamente do cargo político é usurpar essa inclusão, forçando uma desigualdade: alguns obtêm benefícios (aos quais na verdade não tem direito) e outros não ficam nem sabendo que foram roubados.
 
Assim, em uma democracia, a corrupção política adquire significado com referência a norma de inclusão: ela é uma forma de exclusão injustificada ou de privação de poder. Ela está conectada com decisões e ações que ocorrem fora do alcance do público, excluindo os que poderiam legitimamente demandar inclusão.
 
O dano provocado é dual: as normas públicas são justamente corroídas por aqueles que as professam e deveriam defendê-las. O corrupto, ao mesmo tempo, defende (publicamente) e viola (ocultamente) a norma democrática da inclusão. Ele pode ser chamado a prestar contas pelos próprios padrões que defende de forma pública. Nesse sentido, a ação corrupta não passa em um teste de publicidade: decisões corruptas não podem ser justificadas em público. Elas são escondidas, tomadas fora do alcance da visão do público, porque violam normas coletivas.
 
No caso das funções políticas, os cidadãos dependem dos representantes para darem razões sobre suas decisões, de tal maneira que eles possam julgar se os seus interesses estão suficientemente alinhados. Dentro das relações representantes-representados, se as decisões dos primeiros são resultado de tratos obscuros ou agendas secretas, os cidadãos estão descapacitados para julgar seus representantes e fazer com que estes prestem contas e sejam responsabilizados, pois a informação de que precisam está escondida. Mais ainda, perdem sua influência persuasiva sobre os representantes e dentro da esfera pública, já que estes respondem mais a influências veladas do que às persuasivas.
 
Nesta chave, a culpa pela corrupção não recai sobre a democracia nem sobre a desigualdade – a chave explicativa deve ser buscada nas falhas nos mecanismos que permitem o empoderamento democrático, como os mecanismos de prestação de contas. Estes empoderariam os cidadãos a não apenas revidar contra os danos causados pela corrupção, mas também a demandar a inclusão nas decisões e ações coletivas.
 
Falar em corrupção é, assim, falar em desigualdade – em direitos sendo usurpados, políticas não entregues, cidadãos desempoderados. De forma prática, se são repassados recursos para a construção de uma nova escola, mas o prefeito resolve repassar o montante para o próprio bolso, a exclusão está instalada, política e socialmente.
 
É por isso que focar na corrupção ela mesma e não pensar nas suas consequências imediatas em termos de exclusão, de desigualdade e de manutenção de privilégios é um caminho histérico. Estratégias de combate à corrupção deveriam estar entrelaçadas com estratégias de combate à desigualdade social – porque as duas coisas estão conectadas.
 
Por outro lado, focar apenas na desigualdade (afirmando que é a desigualdade que justifica a corrupção: um cenário no qual o fosso entre ricos e pobres é tão grande que todos tentam tirar proveito e isso é quase justificável), deixa de captar as dimensões de exclusão política e os efeitos deletérios deste fenômeno para a própria democracia.
 
Políticas públicas de combate à corrupção deveriam focar menos no apelo midiático de quantos foram presos e execrados e escolher uma via mais complexa de aproximação do fenômeno: recuperação dos recursos desviados, reforma política e conexão inescapável a políticas de redistribuição de renda. Combater desigualdade em um cenário de proliferação de práticas corruptas é como enxugar gelo – e combater corrupção sem se atentar aos efeitos sociais excludentes causados por ela é correr o risco de histeria coletiva sem maior empoderamento dos cidadãos para demandar inclusão. Correndo-se o risco, inclusive, de se jogar fora a própria democracia.
 
Ana Luiza Melo Aranha é cientista social e mestra em Ciência Política (UFMG). Doutoranda em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP)

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