Cenas da ditadura, por Antonio Prata

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

Dar cabo, por Antonio Prata

Aos oito anos de idade, descobri que o ser humano não prestava. Estava no banco de trás do carro, descendo a 23 de Maio, li “Abaixo a ditadura!” num muro e perguntei pro meu pai o que significava aquilo. Meu pai, cuja particularíssima pedagogia baseava-se no princípio de que as crianças deviam ser tratadas como os adultos, sem filtros, me deu uma resposta bem detalhada.

Meia hora mais tarde, tendo passado pelos porões do Doi-Codi, pelo pau de arara, pela coroa de Cristo, pela cadeira do dragão e por minha prima Julieta, aos 20 anos, sendo violentada com um cabo de vassoura e um fio desencapado na ponta, cheguei, lívido, em casa.

Durante a ditadura, milhares de brasileiros sofreram horrores semelhantes aos da minha prima. Centenas não sobreviveram. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado na última quarta (10), traz o assunto novamente à tona. Felizmente, pois apesar de essas histórias serem há muito conhecidas e documentadas, apesar de boa parte de seus responsáveis estarem vivos, há quem ache que o melhor é deixar tudo pra trás.

“Eram outros tempos”, “O mundo estava polarizado”, dizem os que querem minimizar cabos de vassoura com fios desencapados. Verdade, o mundo estava polarizado, e o Brasil também, mas o embate ocorria dentro do campo democrático. Então veio o golpe de 64 e aqueles que temiam por aqui uma improvável Cuba de Fidel nos impuseram a certeza de uma Nicarágua dos Somoza, um Haiti de Papa e Baby Doc, uma República Dominicana de Trujillo.

“Ninguém ali era santo”, “A luta armada não queria restituir a democracia, mas instalar uma ditadura de esquerda”, dizem os que acham compreensível deixar um ser humano pendurado a noite inteira de cabeça para baixo, nu.

Não vamos entrar no mérito de que muitos dos mortos e torturados sequer estavam na luta armada. Não vamos entrar no mérito de que um golpe militar tende a radicalizar um pouco a postura da oposição. Apenas aceitemos, hipoteticamente, que todos os torturados e mortos quisessem, de fato, instituir uma ditadura de esquerda. Mais ainda: aceitemos, hipoteticamente, que eles quisessem matar todas as criancinhas brasileiras e comê-las com farinha. Ainda assim, o Estado que os torturasse ou os matasse estaria cometendo um crime.

O Estado detém o monopólio do uso da violência justamente para garantir a lei: não pode agir ao largo dela.

“Revanchismo” é o termo que vem sendo usado contra os que desejam ver punidas as violações dos direitos humanos durante a ditadura. Ora, se você é assaltado e quer ver o bandido na cadeia, está sendo “revanchista”? Se você tem um pai, uma filha ou um irmão morto e quer ver os assassinos na cadeia, está sendo “revanchista”?

Pois por 21 anos o Estado brasileiro assaltou, assassinou e violou os direitos de seus cidadãos: com Atos Institucionais, com mentiras, com cabos de vassoura e fios desencapados. Cabe a ele reconhecer seus crimes e prender os responsáveis. Do contrário, estará não só desrespeitando a todos os que sofreram a sua barbárie, mas, pior, estimulando as torturas e assassinatos que seguem acontecendo Brasil afora, todo dia, pelas mãos da polícia.

Os anos de chumbo não são águas passadas: continuam a mover nossos moinhos de moer gente.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Concordo plenamente…

    Se você pensar a nação Brasil como um grande organismo vivo é fácil concluir que o processo da Comissão da Verdade e o julgamento de todos os que se excederam durante o regime militar constitui uma salutar revisão na mentalidade deste organismo vivo chamado Brasil. E não é por acaso que os defensores da intervenção militar e até da invasão americana ao Brasil para “eliminar o PT” surgiram com tanta força nos últimos anos. Afinal o Brasil como nação se absteve de refletir sobre a ditadura e seus abusos. Num arremedo de anistia na base do “vamos esquecer tudo” se construiu uma falsa identidade nacional, de país e povo pacífico, que não se sustenta quando nos olhamos no espelho.

    A principal virtude portanto do processo da Comissão da Verdade e se possível do julgamento e condenação dos envolvidos em crimes é trazer o debate e a reflexão para o conjunto da sociedade brasileira. Poderemos então refletir sobre nossas responsabilidades e omissões do passado, nos arrepender sinceramente e assumir o compromisso sincero de nunca mais permitir que o nosso organismo Brasil se deixe contaminar por tal doença. Condenar criminosos é importante, mas muito mais importante ainda é assumir nossas responsabilidades coletivas que permitiram que a ditadura fosse o que foi!

  2. texto claríssimo, sem

    texto claríssimo, sem ironias, na veia.

    o final diz tudo:

    sem punição dos culpados pela tortura,

    continuaremos por muito tempo com esses entulhos autoritários

    (pms matando negros e pobres etc e grande mídia golpeando as instituições)

    decorrentes da ditadura a torturar nossa sociedade.

  3. Exato!

    Clap, clap, clap!   Não tenho nenhuma dúvida de que a criação da CNV teve enorme influência sobre o (re)surgimento de discursos e figuras emblemáticas do período. Onde cresceu o apoio e o saudosismo em relação aos militares: onde estavam acomodadas as certezas de que este era um assunto encerrado. Com a CNV, e o retorno do assunto à baila, o lodo no fundo do lago foi remexido, e o que temos é isto que está aí.  Saudosismo e ressentimento, principalmente com o PT, aos olhos dessas pessoas o responsável pela revisita a um assunto que todos julgavam morto e a consequencias que todos acreditavam estar varridas do horizonte.

  4. A Covardia Anistiada elavada a Troféu de “Guerra”

    Os Militares, que deveriam ter a formação profissional apropriada para enfrentar “inimigos”, se mostraram totalmente despreparados para a “guerra”.

    Foram preparados pelos militares norte-americanos, os mesmos que mantiveram o centro de tortura de Guantánamo, durante a Guerra Fria, onde o interesse era aumentar seu poder geopolítico a todo custo e diminuir qualquer possibilidade da antiga URRS ter alguma influência nas Américas (além de Cuba).

    Ou desconheciam que o poder de fogo das “esquerdas” que pretendiam “implantar a Ditadura do Proletariado” era pífio ou nulo ou foram informados do contrário pela contrainformação norte americana. Ou, pior ainda, se sentiram os todos poderosos e acharam que nunca precisariam dar satisfações dos seus atos “de guerra” infames. Matar por matar e sumir com os corpos é inadmissível para um oficial que deveria estar formado nas artes da guerra. É primário! É barbárie inaceitável! É usar o poder que a sociedade lhes concedeu de forma covarde e criminosa!

    Partiram com muita força e sem nenhuma seletividade pra cima de qualquer opositor do regime! Não respeitaram nenhum regulamento da guerra! Ora, dirão alguns, guerra é guerra e pronto! Não é bem assim. Guerra tem, sim, condicionantes e, ao término do confronto, os tribunais de guerra funcionam e os excessos são punidos (infelizmente os que funcionam melhor são os tribunais dos vencedores contra os perdedores).

    Deixar passar em brancas nuvens estes crimes, perpetrados por funcionários do estado relapsos e embevecidos pelo poder político que adquiriram, é não honrar a História do nosso país. Punição, já!

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