Desproteção social da Reforma da Previdência, por Joana Mostafa e Mário Theodoro

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Joana Mostafa e Mário Theodoro

No caminho da desproteção social: a reforma da previdência no contexto urbano
 
Da Plataforma Política Social
 

A proposta de reforma da previdência social consubstanciada na PEC 287/2016 altera diversos parâmetros de concessão de benefícios, como as idades para acesso e as regras de cálculo de seus valores. Contudo, dois aspectos emergem como centrais no que se refere às regras do Regime Geral de Previdência Social (RGPS): (i) o fim da modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição e (ii) a ampliação significativa, de 15 para 25 anos, do tempo mínimo de contribuição para o acesso ao benefício da aposentadoria. O artigo mostra que ambas as propostas terão impacto deletério para o regime público de previdência social brasileiro, sua sustentabilidade, inclusão e garantia de benefícios pelos trabalhadores brasileiros.

O texto sustenta 3 argumentos, desenvolvidos em cada uma das suas seções. O primeiro argumento é o de que a uniformidade proposta entre os regimes de aposentadoria tenderá a reduzir o tempo médio de contribuição ao RGPS e estimular a fuga dos trabalhadores com melhores remunerações. Na segunda seção, apresenta-se estimativas de desproteção, mostrando que as novas exigências de tempo de contribuição podem promover altos patamares de exclusão previdenciária, estimando-se que entre 35,5% e 40,6% dos futuros aposentados do meio urbano muito provavelmente não conseguirão cumprir a carência de 25 anos para ter acesso à aposentadoria.

Por fim, como será desenvolvido na terceira seção, aponta-se que, ao desconsiderar a heterogeneidade desse mercado e, principalmente, os altos índices de rotatividade que o caracterizam, assim como o tempo de procura de trabalho entre um emprego e outro, a proposta governamental subestima o tempo de vida laboral necessário à obtenção dos requisitos de aposentadoria. Dada a rotatividade média e o tempo médio de desemprego, 40 anos de contribuição significam 53 anos de vida laboral ativa e os 25 anos mínimos de contribuição equivalem a 33 anos de vida laboral ativa.

A fusão dos dois regimes de aposentadoria: por idade e tempo de contribuição

A fusão dos regimes de aposentadoria, com a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição (ATC), visa intensificar o processo, já em curso, de aumento da idade média de concessão de aposentadorias, diante do envelhecimento populacional. Além disso, tal proposta daria uniformidade de tratamento a todos os trabalhadores: haveria uma igualação, ou seja, todos os trabalhadores se aposentariam com 65 anos de idade (65 homens e 62 mulheres, de acordo com o relatório aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados). Se a questão da elevação da idade média de concessão de aposentadorias é pertinente, a proposta de unificação das modalidades de tempo de contribuição e idade constitui uma forma equivocada de enfrentá-la.

Esta regra seria difícil de ser cumprida pelos trabalhadores menos favorecidos, que em geral acessam a modalidade de aposentadoria por idade, e excessivamente fácil para os mais estruturados, que atualmente acessam a aposentadoria pela modalidade de tempo de contribuição. De fato, a unificação dos regimes traz dois grandes riscos, com impactos para a sustentabilidade futura e para a equidade da previdência social brasileira. São eles: (i) o de fuga do sistema público por parte dos trabalhadores mais bem posicionados e remunerados no mercado de trabalho, e (ii) o de desproteção daqueles mais mal remunerados e sob relações de trabalho mais precárias.

Para analisar o primeiro destes riscos, cabe lembrar que o regime de tempo de contribuição (ATC) acolhe períodos de contribuição razoavelmente largos, com uma média de anos de contribuição que vem subindo e alcançou 33,3 anos em 2014. Para acessar a aposentadoria, a PEC 287/2016 propõe um requisito de contribuição de 25 anos, o que implicaria em redução do tempo efetivo de contribuição daqueles que se aposentariam pela modalidade ATC. Estes são justamente os trabalhadores mais escolarizados e com melhores posições no mercado de trabalho, com capacidade de realizar maiores períodos de contribuição enquanto têm capacidade laboral. Para este grupo, esta estratégia provavelmente favorecerá a busca de alternativas para a complementação ou mesmo substituição da aposentadoria pública por meio dos planos de aposentadoria complementar ou outros investimentos.

A fuga do sistema público por parte destes trabalhadores mais bem remunerados, e que esperam uma aposentadoria superior ao salário mínimo, seria estimulada por outra medida, qual seja, a obrigação, pela proposta pela PEC 287/2016, de 49 anos de contribuição (reduzido para 40 anos na proposta aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados) para a reposição integral da média de 100% dos salários de toda a vida contributiva.

Quanto ao risco de desproteção daqueles mais mal remunerados, cabe observar a baixa capacidade de contribuição por períodos longos de tempo por parte daqueles trabalhadores que circulam em um mercado de trabalho precarizado. O desafio que representa fundir as modalidades de aposentadoria por tempo de contribuição e idade, elevando o tempo mínimo de contribuição para 25 anos esbarra na realidade do mercado de trabalho brasileiro. Dados referentes à trajetória contributiva dos trabalhadores aposentados em 2014 mostram que estes enfrentam expressiva dificuldade até para cumprir o atual mínimo de 15 anos de contribuição. Vejamos com mais detalhes.

Ampliação do tempo mínimo de contribuição para acesso à aposentadoria

A economia brasileira tem uma trajetória estruturalmente instável, com ciclos de crescimento curtos. O resultado são vínculos razoavelmente precários ao longo da vida laboral de grande parte dos ocupados, com elevada taxa de rotatividade e longos períodos de desemprego ou subemprego. Nesse sentido, muitos trabalhadores e trabalhadoras acumulam, com dificuldades, os 15 anos mínimos de contribuição, especialmente os menos escolarizados e de menores rendimentos. Analisando as concessões do RGPS urbano em 2014 a partir dos registros administrativos do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, observa-se que as aposentadorias foram acessadas com 26,3 anos de contribuição. Na modalidade por tempo de contribuição a média foi de 33,3 anos, enquanto nas aposentadorias por idade foi de apenas 19,3 anos. Detalhando as concessões de 2014 com relação ao número de anos de contribuição, constata-se que, em 2014, foram concedidas 621.921 aposentadorias por idade e tempo de contribuição, para homens e mulheres da clientela urbana. Deste total, 30,8% conseguiram contribuir até 19 anos para a previdência.

Ou seja, contribuíram menos que 15, 15, 16, 17, 18 ou 19 anos para o sistema, mas não alcançaram 20 anos. Com base nestes dados, podemos inferir que, caso houvesse uma mudança de regra no ano de 2014 que implicasse na elevação de 15 anos para 25 anos na carência de contribuições exigida pelo RGPS para acesso à aposentadoria, quem contribuiu com até 24 anos não teria acesso ao direito. Esse contingente é de 40,6% dos que efetivamente se aposentaram por idade ou tempo de contribuição em 2014. Esse percentual é de 26,6% entre os homens, e maior entre as mulheres, alcançando 56,2%.

Considerando que o tempo de contribuição das mulheres é influenciado pelo fato de que a própria idade para acesso à aposentadoria delas é menor que a deles (de 60 contra 65 anos) simulou-se um ajuste supondo que todas as mulheres e homens se aposentariam com 65 anos, ou seja, permitindo maior tempo para que acumulassem os 25 anos propostos pela PEC. Nesta hipótese, ainda assim, 45,6% das mulheres aposentadas não acessariam o benefício e, na média, 35,5% dos contribuintes urbanos não alcançariam 25 anos de contribuição.

Em suma, tendo por base o perfil contributivo dos aposentados de 2014, estima-se que entre 35,5% e 40,6% dos futuros aposentados do meio urbano muito provavelmente não conseguirão cumprir a carência de 25 anos para acessarem a aposentadoria. Esse percentual é maior entre as mulheres, e está entre 45,6% e 56,2%.

Rotatividade e tempo de contribuição

As especificidades do mercado de trabalho brasileiro, notadamente no que diz respeito à existência de uma grande informalidade e à alta taxa de rotatividade, não dá muita margem para que se estabeleça parâmetros de contribuição excessivamente rigorosos. Tanto os altos níveis de informalidade como as altas taxas de rotatividade tocam mais diretamente àqueles trabalhadores de menor renda e menor escolaridade, justamente o grupo que atualmente se aposenta por idade e que será particularmente prejudicado caso aprovada a reforma da Previdência.

A mudança de emprego, acompanhada de um período de desocupação que pode variar de acordo com a maior ou menor oferta de postos de trabalho é uma das mais marcantes características da vida laboral do trabalhador brasileiro. A cada ano, dezenas de milhões de trabalhadores são submetidos a processos de admissão e desligamento, implicando em períodos de desocupação que variam em decorrência da conjuntura, setor econômico, região ou mesmo das condições de empregabilidade do indivíduo. As altas taxas de rotatividade não são característica de momentos de crise econômica. Ao contrário, os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mostram que quanto maior o crescimento econômico, maior a geração de emprego e também a rotatividade, de fato uma relação positiva entre aumento do emprego e crescimento do índice de rotatividade no Brasil. Ora, tal cenário cristaliza uma situação de instabilidade para o trabalhador mesmo em momentos de estabilidade econômica.

Dada a rotatividade média e o tempo médio de desemprego no Brasil, 40 anos de contribuição significam 53 anos de vida laboral ativa, enquanto o mínimo de 25 anos de contribuição equivale a 33 anos de vida laboral ativa. Ao estabelecer parâmetros mais rígidos de acesso ao benefício, a PEC 287/2016 pune mais uma vez, e de maneira direta as trabalhadoras, aqueles/as de menor renda, menor escolaridade e, por conseguinte, mais vulneráveis.

Outro fator importante a se considerar é o tempo médio de inatividade do trabalhador demitido, atualmente de 36 semanas, ou nove meses, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Emprego (CAGED). Assoma-se a esse número, outra informação relevante: o tempo médio de permanência no emprego, que, no Brasil era de cinco anos em 2009, segundo a OCDE. Assim, para chegar aos 40 anos de contribuição e obter a integralidade do benefício, esse indivíduo deverá dispor efetivamente de 45 anos e três meses de sua vida laboral. Do mesmo modo, pode-se inferir que para a obtenção do tempo mínimo de 25 anos de contribuição, o trabalhador deverá dispor de 28 anos de sua vida ativa.

Já os dados da Secretaria de Previdência Social estimam que o contribuinte do RGPS efetua, em média, 9 contribuições ao ano. Utilizando-se esta estimativa para a densidade contributiva média, 40 anos de contribuição equivalem a 53 anos de vida laboral ativa. Assim, se uma pessoa começar a trabalhar com 16 anos de idade, média do início da vida laboral dos ocupados no contexto urbano (PNAD 2015), só conseguirá se aposentar com valores próximos à integralidade aos 69 anos de idade. Já os 25 anos mínimos de contribuição equivalem a 33 anos de vida laboral ativa, período bastante largo para parametrizar a carência mínima do sistema.

Considerações finais

A proposta de reforma previdenciária em debate no Congresso Nacional ignora o papel primordial do mercado de trabalho e da dinâmica econômica na trajetória laboral e previdenciária do trabalhador brasileiro. Elevar o tempo de contribuição para acesso à aposentadoria por idade trará enormes barreiras de acesso ao benefício, em especial aos trabalhadores mais precarizados, menos escolarizados e de menores rendimentos.

Paralelamente, ao buscar uniformidade para as modalidades de aposentadoria por tempo de contribuição e idade, a PEC 287 propõe colapsar dois “Brasis” – um de empregos mais estáveis, salários maiores e trabalhadores mais escolarizados, e outro de trabalhadores com trajetórias entrecortadas por períodos extensos de desemprego, informalidade, longas jornadas de trabalho não remunerado e atividades invisíveis de cuidados e afazeres domésticos – em um só. A proposta de carência mínima para acesso à aposentadoria, de 25 anos, revela-se fácil de ser cumprida pelos trabalhadores mais bem inseridos, e excessivamente difícil de ser cumprida pelos mais precarizados.

Deve-se também observar que caso adotada a fusão dos regimes de aposentadoria, seriam perdidas regras diferenciadas de acesso que têm sido utilizadas (e poderiam ser mais exploradas), cada uma em sua modalidade e regime, para dar maior progressividade e sustentabilidade contributiva ao sistema como um todo.

Por fim, cabe lembrar que aumentar o requisito de tempo de contribuição para acesso à aposentadoria por idade não implicará em automática adesão dos contribuintes à nova regra. Isto porque não se trata de uma escolha, nem mesmo para os contribuintes autônomos ou facultativos. Exigir maior tempo de contribuição para a previdência exige também mais e melhores empregos, melhores salários e mais escolaridade, sob pena de barrar o acesso dos trabalhadores em situação precarizada à proteção social na velhice.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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