Documentário aborda papel da mídia no assassinato de Eloá

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Ingrid Matuoka

Quem matou Eloá?: a mídia e a violência contra a mulher

Na CartaCapital

Foi um “crime de amor”, um “crime passional”, diziam os noticiários em outubro de 2008 sobre os cinco dias em que Lindemberg Alves, o “jovem trabalhador de 22 anos que gostava de jogar futebol e teve uma crise de ciúmes”, manteve Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, em cárcere privado sob constante ameaça e violência.

As 100 horas em que ela ficou presa foram transmitidas por diversos canais da tevê aberta, em tempo real, com ar de filme de ação. O desfecho se deu no dia 17, quando a polícia invadiu o apartamento e Lindemberg matou a ex-namorada com um tiro na cabeça e outro na virilha.

Do caso nasceu o documentário “Quem matou Eloá?”, de Lívia Perez, que participou de 16 festivais brasileiros e internacionais, e ganhou cinco prêmios. A proposta da obra é discutir a naturalização da violência contra a mulher e a abordagem da mídia televisiva. 

“Houve uma postura muito machista por parte da imprensa que enalteceu a personalidade do criminoso e romantizou o tipo de crime”, diz a diretora em entrevista a CartaCapital. Ela também afirma que esse tipo de jornalismo é um dos pilares que mantém os altos índices de feminicídio no país.

https://www.youtube.com/watch?v=uY35iu1rX_Q width:700 height:394

CartaCapital: O que a motivou a fazer um documentário sobre o caso de Eloá?

Lívia Perez: Minha maior motivação foi o fato de que em nenhum momento da intensa cobertura midiática do crime se utilizou a expressão “violência contra a mulher” apesar de estarmos diante de um caso clássico deste tipo de crime e de o Brasil ser um dos países líderes em feminicídio no mundo.

CC: Como você avalia a atuação da imprensa durante o sequestro?

LP: Em primeiro lugar, o crime não deveria ter sido noticiado, pois esta é normalmente a conduta em casos de sequestro: o crime só é noticiado após a resolução, a fim de evitar qualquer tipo de interferência.

A imprensa não só noticiou como explorou intensamente o sequestro na ânsia de conseguir um furo. Praticamente todas as tevês abertas e os principais jornais do estado entrevistaram o sequestrador durante o crime. Alguns deles o fizeram ao vivo com jornalistas e repórteres se posicionando como negociadores.

Além disso, houve uma postura muito machista por parte da imprensa que enalteceu a personalidade do criminoso e romantizou o tipo de crime que era praticado naquele momento.

A atuação da imprensa foi abusiva pois o feminicídio é um problema muito sério no Brasil que é o quinto país que mais mata mulheres no mundo e apesar da imprensa explorar intensamente o crime não o discutiu de forma séria. Isso é um problema principalmente no caso das tevês abertas que se tratam de concessões públicas.

CC: O caso é de 2008. Desde então, notou alguma diferença na cobertura jornalística de casos similares ou o padrão se manteve? 

LP: Apesar de tudo, acho que houve avanços, mas apenas porque o público, por meio da internet, tomou certa consciência do problema de concentração de mídia no Brasil e já não aceita mais alguns tipos de abordagens.

O próprio sequestro e assassinato de Eloá causou uma reflexão e até um processo contra uma das tevês. Por outro lado, ainda há muita exploração da violência contra mulheres, negros e classes sociais mais baixas nos programas policialescos que ocupam a faixa das 18h na grade de programação.

Num caso mais recente, em que uma adolescente foi vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, os veículos de comunicação tentaram dar a notícia como um “suposto crime” quando na verdade os próprios criminosos já haviam postado na internet fotos e provas que os incriminavam. A audiência reagiu na internet pedindo que se reconhecesse o crime como tal e não apenas como suposto.

CC: Parte da mídia chamou o caso de “crime de amor”. Como você avalia isso?

LP: Esta é a abordagem mais perversa que se pode dar para este tipo de crime. Nós, mulheres, estamos pedindo a revisão desta trágica expressão, assim como “crime de honra”, desde a época do assassinato de Ângela Diniz nos anos 1970.

É muito nocivo quando tevês abertas, que são concessões públicas e, portanto, falam a milhões de brasileiros, retratam este tipo de crime muito frequente no Brasil desta forma. É como se legitimassem o assassinato de milhares de mulheres que acontece no país em nome do “ciúme”, da “dor de amor” e da “honra” dos homens.

CC: Quais são algumas consequências de romantizar um feminicídio?

LP: A consequência é a legitimação deste tipo de crime na opinião pública, a criminalização das vítimas e portanto a manutenção dos altos índices de feminicídio no país.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

13 Comentários

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  1. Os crimes do machismo

    Embora eu nao veja nenhuma possibilidade de mudanca imediata da postura machista em nossa sociedade, ou em outras sociedades em diversas partes do mundo, precisamos continuar a denunciar e a lutar contra o machismo vistos os crimes hediondos que gera.

  2. Naquela tragédia, além do

    Naquela tragédia, além do deplorável comportamento da mídia, houve uma não menos lamentável manifestação de incompetência da polícia. Em casos assim, uma regra básica adotada em todo o mundo é a de que, se o sequestro ultrapassar 24 horas, a possibilidade de uma solução “pacífica” cai rapidamente; ou seja, deveriam ter “neutralizado” o agressor em uma das várias oportunidades que tiveram. 

    1. e a entrevista com o negociador afastado?

      Lembro-me que na época houve uma entrevista com o negociador oficial da PM/SP, acho que foi no programa da Leda Nagle, sem censura, onde ele teria observado que a regra das 24 horas fazia parte de seu treinamento, inclusive em cursos no exterior, mas logo no começo do caso teria sido afastado do processo de negociação… a ordem “de cima” era para que o caso não fosse resolvido rápido, era preciso a comoção da mídia, que realmente ocorreu, para tirar o foco de uma crise política que estava ocorrendo no Governo de São Paulo e que poderia levar ao impedimento do Governador. Visto dessa forma, teria havido um aproveitamento político do caso desse sequestro onde teria sido dada uma ordem para transformar o caso em comoção social, onde a mídia seguiu um papel de focar única e exclusivamente nessa comoção para relevar a crise política, que deveria ser esquecida. A incompetência da PM teria sido proposital? A posição da mídia teria sido proposital? Será que a documentarista teria interesse de pesquisar esses outros cenários para contextualizar sua análise?

  3. Mas tambem não formaram um

    Mas tambem não formaram um gabinete de crise?

    E  a participação desta não está sendo analisada?

    Hoje assistindo a rede brasil de repente surge uma tal “semana do presidente”, o que prova a vassalagem da midia e da preferencia por governos golpistas……..vergonhoso.

     

    1. como….

      A midia teve sua parcela de culpa, mas principalmente um governo acovardado comandado por uma patrulha ideológica. Uma esquerdopatia tupiniquim que crê no criminoso no lugar da vítima. Uma cadeia de comando com protocolos a serem seguidos e poderiam ter anulado a ameça do sequestrador frente à vida das vitimas. A patrulha ideológica politica exerceu poder de comando, enquanto o governo do estado de SP se escondia em algum buraco, ao invés de forças policiais experientes comandarem toda a operação. O resultado só poderia ser trágico. Chegaram a cometer a bárbarie de tirar uma das sequestradas, menor de idade, das mãos do assassino e devolvê-la a condição de prisioneira e alvo potencial  E depois o Poder Judiciário ainda com extremo espirito (de porco) de corpo avalisar e justificar a pratica desqualificada do comando de Secretários, Governador e Oficiais da Polícia. Algo impossível em outra parte do planeta. Depois disto tudo, novamente a patrulha ideológica, procurando acusar um dos lados pela catastrofe. Por sinal o menor, omite os verdadeiros culpados pelo assassinato e tentativa contra duas meninas. Este pensamento tacanho da esquerda nacional não se emenda mesmo. Nem tomando pé na bunda.  

      1. “Uma esquerdopatia tupiniquim

        “Uma esquerdopatia tupiniquim que crê no criminoso no lugar da vítima.”

        Afff…. a mão de escrever merd…. não aguentou e deu sua colaboração.  

      2. A culpa é da esquerda e esta resposta basta.

        Parece que o PIG (Partido da Imprensa Golpista) transformou muita gente em papagaio. Eles dão sempre a mesma resposta aos mais diversos questionamentos que a realidade apresenta. Se essa tragédia acontecesse em um estado governado pelo PT, a culpa seria da esquerda que não sabe governar, mas como aconteceu em um estado governado pelo PSDB, a culpa continua sendo da esquerda porque faz críticas à polícia do PSDB.

        Ou seja, não existe nada a ser apurado, não existe nada a ser estudado, não existe nada a ser entendido, não existe nada a ser aprimorado. É só culpar o PT ou a esquerda. Quem dera os vestibulares e os concursos públicos tivessem a simplicidade de sua visão de mundo. Uma única resposta, como “Pedro Álvares Cabral” garantiria acertos em todas as questões de física, quimica, matemática, direito, etc..

  4. A montanha dos sete abutres fez escola

    É inevitável rever a tragédia de Eloá sem traçar um paralelo da realidade de nossa mídia com a do filme “A montanha dos sete abutres”. Para ganhar audiência, a mídia interferiu na atuação da polícia, deu poderes ao criminoso e gerou uma tragédia.  É impressionante como a vida imita a arte e este filme é uma referência obrigatória para entendermos a mídia no Brasil.

     

  5. com sequestro do ônibus 174 foi a mesma coisa…

    liberdade total para o JN explorar o acontecimento, impediu ou dificultou ao máximo todas as decisões e manobras policiaís

    desenhando: quem não apenas espelha uma realidade, ou acontecimento, muito contribui para a construção de qualquer outra, geralmente trágica……………………..

    não temos reportagens, temos torcida para que demore, facilitando assim que acabe em tragédia

  6. tudo se altera com a chegada da imprensa…

    parece que policiais esquecem tudo que aprenderam

    parece que substituem o comandante

    parece que ficam aguardando novas ordens

    e, com isso, a possibilidades de neutralização, que na maioria das vezes se faz necessária de imediato, vão caindo uma a uma, enquanto a mídia segue criando outras realidades completamente fora de sua atuação legal e permitida

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