É mais seguro pensar com a permissão do chefe, por J.P. Cuenca

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Recursos Humanos checando a opinião do candidato no Facebook antes de efetivar uma contratação. Editores orientando, em e-mails despudorados, a equipe de reportagem a aderir ao clássico “podemos tirar se achar melhor”. Olhares opressores no almoço da família. Medo de sair na rua com camiseta de determinada cor. Hostilização em restaurantes e aeroportos. Emitir opinião em tempos de imposição de um governo à direita do espectro político sobre aquele que foi escolhido nas urnas virou perigoso. Ou um ato de coragem, dependendo do ângulo.

Por J.P. Cuenca

O triunfo do isentão: como é a censura no Brasil em 2016

No The Intercept

HÁ DUAS SEMANAS, participei de um debate em Berlim, na livraria da Torstrasse que é ponto de encontro da comunidade brasileira na cidade. Quando falamos sobre política, alguém perguntou se haveria o risco de termos novamente censura no Brasil depois do Golpe Temer.

Não creio que algum dia deixamos de ter. Sobre o tema, logo nos ocorrem a Ditadura Militar ou o Estado Novo, mas a censura tem a idade do Brasil — o Império demorou mais de três séculos para permitir a existência de qualquer jornal na colônia. A monarquia reprimia ideias de cunho laico ou anti-monárquico, e os oligarcas da república velha igualmente usavam o aparelho repressor do estado contra seus oposicionistas.

Nos raros períodos aparentemente estáveis da nossa jovem e frágil democracia, a censura ganha contornos menos oficialescos — ainda que bastante eficientes. Essa censura dissimulada, que atravessa toda nossa história recente, dá sinais de recrudescimento nos últimos tempos.

Ainda – ainda – é mais corporativa que estatal. O sujeito ideologicamente dissonante perde espaço e oportunidades em qualquer empresa. Nos conglomerados de mídia brasileiros, que costumam usar colunistas como pedra de toque de uma falsa isenção editorial, discordar da chefia sem estar defendido num espaço de cota é abreviar o caminho para a rua no próximo passaralho. Empregos, contratos, freelas, espaço ou cobertura na imprensa: tudo está em jogo.

Brigando para manter-se num mercado cada vez menor, onde o achatamento dos salários iniciais costuma apenas permitir que jovens bem nascidos tornem-se profissionais de comunicação, os jornalistas brasileiros sacrificam autonomia e liberdade de pauta apenas para manter seu salário de sobrevivência e algum frágil status. São como os oito músicos vestindo salva-vidas que continuaram tocando ragtimes e valsas sob a regência do maestro Wallace Hartley até que o deck se inclinasse como um tobogã e a estrutura do RMS Titanic finalmente rompesse. No caso, tocando sem improvisar.

,EM MUITOS CASOS, censura interna e demissão antes do naufrágio podem ser o melhor desfecho. Na cobertura de protestos, jornalistas costumam ser agredidos pela Polícia Militar e, em menor proporção, pelos próprios manifestantes, que os identificam com os meios para os quais trabalham. Isso, claro, quando estes também não estão sendo vandalizados por uma PM que continua recebendo carta branca para tal, através de editoriais irresponsáveis e desonestos e de uma cobertura completamente enviesada da cena das manifestações.

A contínua inversão causal dos fatos, onde as manchetes seguem ignorando o fato da polícia ser a responsável pela deflagração dos conflitos, acaba por cozinhar a liberdade de livre manifestação e de imprensa no mesmo caldo. Relatório recente da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) aponta para quase 300 episódios de violação de direitos contra jornalistas durante a cobertura dos protestos desde 2013.

A Associação Nacional dos Jornais (ANJ), em seu relatório sobre liberdade de imprensa, demonstra preocupação pelo crescente número de crimes ainda mais graves. No ano passado, sete jornalistas foram assassinados no Brasil, um número que só é menor que o do México e de Honduras nas Américas. Estamos também perdendo posições em rankings de liberdade de imprensa: em 2010 ocupávamos o 58º lugar e hoje, segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras, estamos em 104º.

Entre a violência nas ruas e a coação nas redações, fruto de evidentes contradições entre o interesse de grandes grupos de mídia e a prática do bom jornalismo, o Poder Judiciário é outra ameaça. Segundo outro relatório da Abraji, citado por Ronaldo Lemos, o número de pedidos de censura prévia no Judiciário por políticos totalizam hoje 28 ações em demandas contra cidadãos, empresas de mídia, sites e jornalistas ordenando-os “a calar a boca”. Na última década há casos já históricos como o de Elmar Bones e o Jornal Já, no Rio Grande do Sul, e mesmo o da censura prévia contra o Estadão. Exemplos não faltam.

CENAS E PERSONAGENS TÍPICOS dos vertiginosos últimos três anos, quando este golpe é articulado: repórter recebendo telefonema do diretor de canal de TV ou editor do jornal pedindo para apagar post de facebook. Funcionários de RH checando as opiniões do candidato na internet antes de contratá-lo. Artistas e produtores engajados calando-se na véspera de grandes eventos, como Copa do Mundo ou Jogos Olímpicos, para não perder contratos. Pais pedindo a filhos, ou vice-versa, que evitem se posicionar politicamente em público para evitar constrangimentos familiares ou laborais. Atores recebendo recados diretos de patrões e contratantes de publicidade: neutralidade é lucro. Em e-mails abertos, editores orientando repórteres a manipular coberturas através de omissões e ênfases, já sem qualquer pudor: é a era do “podemos tirar se achar melhor.”

O patrão, o patrocinador, o editor-chefe: não é de bom tom pensar sem a permissão deles. E, se o fizermos, que seja em silêncio, afinal. Pois o silêncio não atrapalha na hora de fechar um edital, um contrato, uma renovação.

Num sistema social orwelliano e autoprotetor, a saída para a maioria é fazer o isentão, figura tão simbólica da autocensura necessária para seguir empregado hoje em dia. Independentemente de qualquer julgamento moral — é o isentão um covarde, um canalha ou um sobrevivente? —, a necessidade concreta de pesar nossos posicionamentos para evitar represálias é a medida de como o ar anda tóxico no Brasil de 2016.

A naturalização desse policiamento pode nos levar a pensar que nossas opiniões nunca pareceram tão importantes ou mesmo perigosas. Em tempos de retrocesso democrático, talvez sejam.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

8 Comentários

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  1. Só agora que um de vocês

    Só agora que um de vocês percebeu isso? Que vocês assim como nunca viveram uma democracia de verdade, assim como nunca tiveram uma justiça de verdade, vocês também nunca realmente tiveram liberdade de expressão? Entendem agora porquê eu insisto que vocês socialmente ainda estão na Idade Média? Em pleno século 21 vocês ainda obedecem “senhores feudais” (inexistência de democracia), vocês ainda podem ser presos e executados sem ser necessário provas (inexistência de justiça) e vocês ainda podem ser presos ou humilhados pelo “crime” de discordar do senhor feudal (inexistência de liberdade de expressão). A cada ano que eu passo analisando com atenção o seu país mais claro fica para mim como vocês pararam no tempo

  2. Ótimo texto de estreia do

    Ótimo texto de estreia do J.P. Cuenca no Intercept Brasil. Aliás, o que dizer de um cara que teve a hombridade de trocar a golpista Folha de SP pelo site Intercept Brasil, do competentíssimo Gleen Greenwald. Se metade dos jornalistas brasileiros tivesse a mesma coragem e ousadia dele, com certeza ainda restaria o mínimo de democracia em nosso país. 

    1. Sobre a coragem

      Sem querer jogar pedra no Cuenca….

      Talvez este seja um relato testemunhal de quem sentiu e viu de perto como o processo de censura funciona.

      Não acho que todos devem ser herois, principalmente quando têm uma arma apontando para a própria cabeça.

      A prioridade maior neste caso, se quiser vir a denunciá-lo, é ficar fora do alcance da arma.

      Como dizia Brecht, “triste é o país…”, bem todo o mundo conhece.

       

  3. o patrão mandou

    Num pais onde o presidente se curva a opinião de um show de auditório, dá muito bem para imaginar o que significa liberdade de imprensa. De fato a imprensa é o proprio censor !

    1. Pois é mas temos que lembrar

      Pois é mas temos que lembrar que a Dilma logo após eleita foi fazer macarrão com a mulher do papagaio e o Lula quando reeleito deu a primeira entrevista para o jornal nazional. 

      Já o resto só posso afirmar com convições e provas que se alguém chutar o saco de um dos marinhos acerta o bico de um tucano.

  4. Plim Plim do Ipiranga

    Como apareceu, uma vez, numa charge no Coversa Afiada, do Paulo Henrique Amorim, “o Brasil é uma concessão da Rede Globo”. Uma verdade infeliz para nosso País.

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