Fogo no mar, por Daniel Afonso da Silva

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Fogo no mar, por Daniel Afonso da Silva

Mediterrâneo. Palco de tantas conquistas. Objeto de tanta tentação, glamour. Veio que liga a Europa ao mundo África. Espaço de tantas travessias, alegrias. Por esses dias convive com o luto. Mais uma vez arde em chamas. Chamas de discórdia. Do descaso, do desespero e miséria humana.

Compôs os headlines de segunda-feira, 20/04, o informe da tragédia. Os jornais de todos os continentes estamparam que 700, 750, 800 homens, mulheres, crianças e idosos encontraram seu fim no mar Mediterrâneo.

Imenso desassossego tomou conta das autoridades europeias e mundiais. Faz menos de dois anos do sinistro em Lampedusa onde, no 3 de outubro de 2013, tombara uma embarcação clandestina – como quase todas o são – transportando cerca de 500 pessoas das quais não mais que 100 sobreviveram.

Nesses menos de dois anos, atitudes deveriam ter sido tomadas. Justiça seja feita, muitas foram. Melhoramentos poderiam ter sido implementados. Verdade seja dita, alguns vários foram. Mas foi insuficiente. O tombamento do sábado para o domingo últimos superou todas as sombrias estimativas de mortos no Mediterrâneo em tempos de guerra e paz e/ou paz com guerra e guerra sem paz.

Os mortos todos havia muito somente sobreviviam. Combatiam seus demônios interiores. Sabiam que seu maior desastre seria morrer sem viver. Decidiram singrar o Mediterrâneo na espera de encontrar, além-mar pela Europa, vida para viver. Não encontravam. Morreram. Mas tentaram. Seus anseios eram dignos.

Eles todos partiram da Líbia. Mas na origem fugiam do Darfur, da Síria, de Érythrée. Sem meias palavras: intentavam escapar do genocídio, da guerra, da miséria; da fome, do estupro, da humilhação.

Esses movimentos de fuga remontam a decênios. Mas recentemente vêm aumentando em escala. As costas gregas e italianas vêm sendo as mais visadas. Viraram point de descarga. Pela Espanha também chega muita gente. Mas menos.

Com o aumento do fluxo vem se constatando aumento das mortes. Os números desta semana – entre 700 e 800 mortos – somados aos acumulados desde janeiro deste ano indicam mais de 1.600 cadáveres içados do mar.

Passada a emoção dos primeiros informes, mobilizações políticas foram agendadas.

O Conselho de Relações Exteriores da União Europeia se reuniu na segunda-feira, 20/04, em caráter extraordinário. Os chefes de estado fixaram reunião para hoje, 23/04, em Bruxelas, também em sentido de urgência. Autoridades italianas e gregas se consideram traídas pelos europeus que não lhas aporta subsídio necessário para responder aos fluxos migratórios vindos pelas águas objetivando chegar a Paris, Londres, Berlim.

Independente das querelas internas – algumas delas auxiliam a ascensão do populismo e do extremo-direitismo europeus –, essa tragédia suscita diversos núcleos de análise imprescindíveis para a reflexão. Ao menos três merecem abordagem imediata.

O primeiro é técnico.

Os desesperados não podem continuar errando pelos caminhos da morte. Seja em casa seja no mar. Aqueles que deixaram de viver no mar precisam ter seus corpos localizados e entregues às suas famílias ou aos seus próximos. Esses empreendimentos – para ficar apenas nos dois mais sérios – demandam recursos físicos, humanos e financeiros. Navios, guarda costeira, monitoramento etc. Aqueles que continuam entre nós precisam ter diminuídas suas possibilidades imediatas de morte.

O segundo é político.

A maioria desses sobreviventes atravessa o mar em cargueiros que lembram tumbeiros geridos por máfias e quadrilhas. Afrontar estes criminosos demanda estratégia política e policial local, nacional e da União Europeia mais evidentemente arrojada. Sobretudo vis-à-vis da Grécia e da Itália.

O terceiro é filosófico.

O norte-africano vive dois fenômenos de muita importância: a) explosão demográfica e b) desestabilização de estados. Parte majoritária daqueles que engrossam esses fluxos migratórios sentido Europa vem sendo submetida a estados falidos, confusos ou inexistentes. Esses migrantes devem ser impedidos de sair de seus países? Devem ser obrigados a sorver o gosto amargo da agonia dos não-estados?

Outra discussão, não menos importante, envolveria refletir que tipo de auxilio os países não-africanos poderiam conferir aos africanos. Intervir ou não intervir e como representa outra longa discussão. Ela parece imperiosamente necessária – sobretudo após o descaso internacional depois da intervenção na Líbia –, mas que ela chegue a um ponto-comum antes do sepultamento de mais gentes no mar.

Daniel Afonso da Silva é pesquisador no Ceri-Sciences Po de Paris.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Fuga em massa

    Daniel Afonso,

    Hoje, o que se tem é uma quase completa indiferença das sociedades e classe política com respeito ao que ocorre em países como o Sudão, Nigéria, Serra Leoa, Somália, Nova Guiné Equatorial e tantos outros, nos quais os não-governos imperam há muitos anos.

    Seria interessante analisar quem são os que incentivam tais governos a permanecerem como estão, imersos num ambiente notoriamente corrupto que não permite sequer o sonho da mudança. Do lado de cá, é o que ocorre no Haiti, onde a Minustah proíbe a melhoria das condições de vida do povo haitiano, que ainda não conseguiu se privilegiar de qualquer progresso de ordem sanitária, social, etc…, prá conferir, basta olhar as fotos da capital Porto Príncipe neste momento, pois o resto do país com 10 milhões de habitantes é traço.

    Quanto aos líbios que tentaram a travessia do Mediterrâneo, por qual motivo optaram por algo que os daquela sociedade nunca tinha feito antes ? É sinal evidente que o que existe por lá atualmente é bem pior que o regime de Muamar Khadafi. Para proteger os civis líbios há uns quatro anos, as chamadas forças de paz mataram cerca de 70 mil deles, muito bem.

    E depois a ONU, Banco Mundial, UE e outros, nun fabtástico show de hipocrisia dizem não saber o que move tantas pessoas a fugir de seus países, ou não-países.    

  2. Minha nossa, é desgraça para

    Minha nossa, é desgraça para todo lado!  As fotos dessa tragédia falam por si. Isso tudo é muito chocante! Sinto Muito!

  3. Não é fogo, é sangue!

    Estes idiotas não sabem resolver suas diferenças nesta imensa terra sem recorrer ao morticínio? É preciso que milhões precisem abandonar suas terras nativas e tentar se refugiar em terras estrangeiras para se livrarem de seus semelhantes que, não passam de idiotas? Idiotas assassinos!

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