Guitarrista busca sonoridades esquecidas após a revolução digital da música

Enviado por Romulo Cabral de Sá

Da Pesquisa Fapesp

Na ponta da agulha
 
A busca obsessiva de um guitarrista mineiro por sonoridades e climas esquecidos após a revolução digital na música
 
GUSTAVO FIORATTI

Há cinco anos o guitarrista Anderson Guerra, um veterano no circuito artístico de Minas, decidiu lançar um disco com músicas engavetadas. Ele reitera que não é avesso ao modo de produção digital, hoje amplamente utilizado pelo mercado por sua rapidez e eficiência, mas escolheu um caminho mais antigo e trabalhoso.

Ao optar pelas metodologias do processo analógico, velho responsável pela produção de vinil e de fitas cassetes, Anderson abriu mão de uma série de benefícios, portanto. As vantagens dos novos sistemas digitais incluem eliminar erros, dar afinação a todas as vozes e sincopar gravações realizadas em lugares distantes.  O registro de uma canção hoje pode, com auxílio de softwares, juntar o som de uma guitarra dedilhada na Rússia a um teclado tocado nos EUA.

O processo digital transforma tudo em gráficos, a música vira desenho na tela do computador, e isso permite recortar, juntar, aparar qualquer aresta. “Tudo o que dá errado é apagado. Não tenho nada contra esse processo, mas há um excesso de resultados esterilizados”, critica Guerra. “Era isso que eu queria evitar, queria humanizar o processo e apresentar uma sonoridade que derivasse disto.”

© ANDERSON GUERRA

Equalizadores, reverberadores e outros equipamentos antigos

Equalizadores, reverberadores e outros equipamentos antigos

Havia um preço a pagar, e ele sabia que era tempo e dedicação. Uma nota errada, nos anos que antecedem a revolução digital, muitas vezes significava ver a banda retomar a sessão desde o início. E, se um erro grave se repetisse na edição, todo mundo tinha que voltar para o estúdio mais uma vez. Guerra partiu em busca justamente desse clima que se perdera na revolução tecnológica.

No meio do caminho, no entanto, se deu conta de outra dificuldade: esse tipo de produção havia sumido do mapa no Brasil. “Encontrei muitos estúdios híbridos [que dão opção de gravar pelo processo analógico e digital], mas mesmo neles acho que a gente pode ficar tentada a utilizar uma ou outra ferramenta digital para resolver um problema específico. É muito difícil evitar.” Para garantir uma experiência pura, o músico decidiu então montar seu próprio estúdio.

Neste outono ainda, mais de cinco anos depois, o disco Mercúrio758 está enfim sendo lançado por ele com a participação de outros sete músicos. Também estão oficialmente abertas as dependências do Bunker, que é possivelmente o único modelo de estúdio totalmente analógico do país. O Bunker é dedicado à gravação de discos em vinil e fica nos arredores de Belo Horizonte, em uma área cercada por matas, no mesmo terreno onde Guerra reside.

Houve, no meio de sua pesquisa, uma caça ao tesouro. Montar um estúdio nos mesmos modelos de meados do século XX obrigou o músico a procurar pelas peças exatas, e muitas delas não são mais fabricadas. “Garimpei, comprei muita coisa sucateada. Consegui equipamentos que as pessoas não queriam mais.”

© JOÃO MARCOS ROSA

O disco Mercúrio758, que está sendo lançado com músicas compostas pelo guitarrista Anderson Guerra

O disco Mercúrio758, que está sendo lançado com músicas compostas pelo guitarrista Anderson Guerra

Boa parte do conjunto, ele prossegue, veio do extinto estúdio da Philips, que ficava no Rio de Janeiro. “Chico Buarque, Elis Regina, Raul Seixas gravaram lá, a MPB quase inteira passou por lá”, conta. “Quando a Polygram comprou a Philips, eles sucatearam esse equipamento. Eu encontrei isso com um amigo meu. Fiz três viagens de caminhonete para transportar tudo para Minas.”

Algumas peças foram encontradas com facilidade, outras não. “O microfone da Telefunken  (fabricante alemã) é super-raro, o último lote foi fabricado no fim da Segunda Guerra Mundial. Encontrei um e mandei para os Estados Unidos, para uma restauração. A discografia inteira dos Beatles foi gravada com esse modelo, e Frank Sinatra vivia dizendo ‘cadê meu tele’. É uma peça com características live-like, que capta um som detalhado. Arrisco dizer que soa melhor do que o real.”

O disco Mercúrio758 foi gravado no meio dessa busca, em 2011, e foi prensado em vinil pela Polysom, a única fábrica de disco de vinil da América Latina, diz o músico.

© JOÃO MARCOS ROSA

Anderson Guerra

Anderson Guerra

Para ele, o álbum Chet Baker sings, gravado pelo cantor e trompetista norte-americano nos anos 1950, “é onde o analógico chegou ao apogeu”. Esse disco, diz Guerra, “se tivesse sido gravado hoje, dentro da possibilidade do universo digital, não poderia ter algumas das características que o tornam especial”, defende.

O resgate das sonoridades do mundo analógico, prossegue, tem sedimentado um novo mercado nos EUA e na Europa. “De uns anos para cá houve um boom”, diz.

No Brasil, o retorno ainda engatinha. “As pessoas que faziam manutenção do equipamento que eu comprei não trabalham mais com isso. Elas agora vendem seguros”, ironiza o músico. “Percebi que vou ter que encarar a bronca. Comecei a pesquisar. Tenho conseguido com esforço fazer manutenção do equipamento.” Pode soar um pouco romântico, Guerra consente. Mas sua busca, de fato, é pelo resgate de uma sonoridade.

 

Redação

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Olha, acho historicamente

    Olha, acho historicamente válido. Principalmente para as pessoas conhecerem como era árduo esse processo. Em termos de qualidade, é bom não esquecer que essa aparelhagem antiga (dos amplificadores aos microfones) precisava de ótimos estúdios e engenheiros de som ultragabaritados e empenhados em suprir as deficiências da tecnologia da época.  Não é só porque você tem o microfone que os Beatles usaram que você vai obter o mesmo resultado.

    Vale dar uma boa olhada no livro de MESTRE Ethan Winer “Everything you need know about audio”.

    Sucesso ao projeto.

  2. Parabéns ao projeto, mas…

    Tenho amigos músicos, alguns defensores dos sons do passado. Outros, sem tirar os méritos das antigas sonoridades, explicam as diferenças. Acontece que os antigos processos analógicos foram desenvolvidos, durante muitos anos, para obter a melhor sonoridade dentro de certas limitações dos equpamentos de reprodução. Com isto, um vinil tem os graves mais acentuados, o que faz a festa e a predileção de muitos DJs. O contraponto é que com os programas de áudio digitais, muitos cabendo dentro de um notebook, é possível simular com muita precisão esta sonoridade. Alguns já trazem filtros que colocam as curvas sonoras e os chiados das antigas gravações em vinil, basta apertar um botão Portando, o resgate do passado vale como lição de tecnologia e como agrado a ouvidos saudosistas, mas os recursos atuais facilitam que um músico faça sua produção em casa e evite a mão grande dos grandes estúdios profissionais.

  3. Hoje em dia a busca pela

    Hoje em dia a busca pela “pureza” do som é implacável com o som real dos instrumentos. Se pegarmos o som cru de um instrumento e compararmos com o som “tratado” temos a impressão de que o som natural é uma “m…..”. Apesar de tudo isso ainda existem músicos que não se contaminaram com tanta tecnologia. Cito o Abe Laboriel Jr. baterista o Paul McCartney que não usa triggers nem fone, ele prefere ouvir o som natural da bateria.

  4. Vai sair também em CD e MP3? 🙂

    Piadinhas à parte, penso que o resgate desse tipo de som pelo músico é extremamente louvável, já que pelo prisma dos relançamentos, as masterizações dos clássicos têm sido extremamente mal feitas, por conta do fenômeno chamado “loudness wars”. Outro dia, só de brincadeira abri o disco “Passado, Presente, Futuro” de Sá, Rodrix e Guarabyra (edição de 2002, “protegida” contra cópias) num editor digital (Audacity). Quando vi o número de pontos em que o engenheiro de masterização tinha estourado o som acima de 0 dB, me deu quase vontade de chorar.

    A solução para isso, por enquanto, é procurar cópias pré-anos 2000 dos seus álbuns prediletos. Quanto mais “pré”, aliás, melhor (exceto talvez pelos primeiríssimos CDs).

    Para saber mais sobre a guerra dos volumes, veja http://rollingstone.uol.com.br/edicao/19/o-fim-da-alta-fidelidade.

  5. Comparação impossível

    Não existe a menor possibilidade de um disco atual, com os melhores músicos do planeta, soar igual, por exemplo, ao “Chet Baker Sings”, que menciona a matéria (eu, por exemplo, acho que o supra sumo da qualidade de gravação é o disco em que Arthur Rubinstein toca as baladas e os scherzos de Chopin). Por definição e por força da tecnologia empregada, um disco de vinil vai sempre soar melhor que um CD (a até uma fita casette vai soar melhor que um CD) porque o espectro do áudio inclui frequências que a maioria das pessoas não escuta mas o corpo percebe (em particular, as frequências mais baixas). É um registro analógico: foi gravado assim e é reproduzido assim. No registro digital, todas as frequências que  ouvido humano não percebe são eliminadas (Sempre lembro que o meu vinil de “Pithecanthropus Erectus”, de Charles Mingus, fazia tremer todo meu apartamento, enquanto o CD soava muito mais alto mas não fazia tremer absolutamente nada…). A indústria do CD disorceu a nossa percepção não somente das frequências mas também do volume: era preciso que um disco soasse alto no rádio, pra chamar a atenção, e tome de edições “remasterizadas”, para soar mais alto, e aí vieram discos já gravados em volume altíssimo, para ser masterizados ainda mais forte, numa maluquice que leva à indústria musical de hoje, com músicas a um volume pavoroso e comprimidas ao máximo perto de 0db.

    Quando estávamos no topo dessa maluquice, chegou o formato MP3, Apple demorou e adotou seu própio formato, e aí o troço desandou de vez. Experimento simples: botar o vinil do Michael Jackson “Thriller”, depois botar a mesma música no CD e finalmente a versão em MP3,  inclusive com a melhor taxa de compressão (320 kbps): a decadência é gritante. Menciono Michael Jackson porque na internet há N páginas dedicadas a essa música, mas vale para cualquier disco. O Ipod consagrou a música som-de-lixo. Comprimida em formato mp3, é para ser ouvida com headphones minúsculos no trem barulhento, no carro barulhento, na rua barulhenta. Um horror. Útil, mas um horror.

    O que Andersom está fazendo é tentar manter toda a linha (gravação, mescla, masterização e prensagem) no domínio analógico). Vale lembrar aquí que por exemplo o guitarrista The Edge, do U2, gasta uma verdadeira fortuna recuperando e comprando equipamentos velhos precisamente pelo seu som inigualável, e a mesma coisa faz o Jeff Beck, entre muitos outros.

  6. Maior apoio ! Legal ter essa

    Maior apoio ! Legal ter essa opção, mas não há estudio ou formato

    de gravação que de jeito em músico ruim.

     

    Obs.Mantenho meu vinil do Chet Baker “sings”  original e muito bem conservado

  7. Show de bola!

    Fala Baiano! 

    Muito massa esse seu projeto. Como excelente músico que é, tenho certeza que suas produções não ficam atrás. Lembro-me muito bem na época do B&C as incansáveis buscas pelo melhor som de guitarra e como produzia os arranjos de suas composições.

    Grande abraço.

    Fred

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador