Ideias a priori, por Marcelo Miterhof

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

Marcelo Miterhof

Ideias a priori

Certas ideias econômicas têm estrutura conceitual e sistemática, mas são descoladas da realidade

Estou lendo o livro “Seven Bad Ideas: How Mainstream Economists Have Damaged America and The World” (Sete ideias ruins: como os economistas convencionais prejudicaram os EUA e o mundo), do jornalista Jeff Madrick.

Seu intuito político é defender que a partir dos anos 1970 o liberalismo e a desregulamentação financeira elevaram a desigualdade e reduziram o ritmo do desenvolvimento em relação ao ocorrido no pós-Guerra.

Para isso, discute o conhecimento econômico, mostrando que ideias populares, como “a mão invisível do mercado”, embora engenhosas, são incoerentes com a realidade.

Algumas dessas “ideais ruins” serão tratadas nas próximas semanas. Hoje, o objetivo é falar de algo que o livro evoca: a capacidade humana de criar modelos para lidar com a realidade e como isso impacta o conhecimento, em particular o econômico.

O filósofo Immanuel Kant tratou disso no conceito de “ideias a priori”. O ser humano se distingue pela capacidade de interromper uma ação, perceber as relações e analisar se é possível agir de outra forma. Esse poder de generalização, de identificar o que é principal, permite criar modelos para o entendimento da realidade. Assim, um princípio não é o início, mas a conclusão de uma experiência. Só que a partir de então tal modelo será usado “a priori” para guiar as ações.

O ser humano não escapa desse poder de mediar a realidade e criar modelos. Com frequência, não é preciso mais do que um fiapo de realidade para que seja posta em ação, gerando uma profusão de modelos e idealizações.

Esses “preconceitos” são úteis, pois frequentemente não há tempo para formar os conceitos. São a eles que recorremos, por exemplo, ao andar numa rua deserta ou ao escolher um restaurante num lugar desconhecido. Como na célebre frase de Oscar Wilde, “só os tolos não julgam pela aparência”.

Entretanto, na sua acepção mais comum, a de generalizações indevidas e estigmatizadoras, os preconceitos mostram que tal capacidade é falível. O risco é ficar aferrado a ideias ruins.

Assim, na ciência, para que o conhecimento não seja só um choque de opiniões, é necessário estabelecer critérios racionais e, principalmente, empíricos que permitam a convergência dos entendimentos.

Novas formas de compreender a realidade sempre surgem. Foi o que aconteceu quando Copérnico percebeu que as mudanças de posição dos astros no céu não eram coerentes com a hipótese de um observador parado.

Os novos modelos precisam ser testados. Como diz Kant, se “deve obrigar a natureza e responder a suas perguntas”. Foi o que fez Galileu: ao jogar uma pedra do alto do mastro de um navio em movimento, verificou-se que um observa- dor no convés a vê cair em linha reta, pois ela acompanha o barco até cair no mar. Isso derrubou a tese de que, se a Terra não estivesse parada, nuvens e pássaros seriam deixados para trás.

Isso implica que o conhecimento humano é provisório. Mesmo as teorias mais sólidas e proveitosas, como a física newtoniana, podem ser substituídas.

É verdade que esse não é um processo estritamente racional e empírico, que ocorra sem resistências. Em geral, as mudanças de paradigmas científicos se consolidam somente quando uma nova geração de pesquisadores se torna dominante.

Na economia, porém, disputas teóricas raramente são resolvidas. Por um lado, há uma dificuldade de estabelecer experimentos que sejam inequivocamente capazes de isolar as características que se deseja testar. A poupança é um requisito prévio do investimento ou este multiplica a renda e, assim, gera a poupança que o financia? Por outro, interesses e convicções ideológicas enviesam a objetividade dos economistas.

Livros como o de Madrick mostram que a teoria e as recomendações dos economistas costumam ignorar tal dificuldade, destacando o caráter algo mítico de certas ideias econômicas: têm estrutura con- ceitual e sistemática, mas são descoladas da realidade. Pena que não são capazes de mudar o exercício da profissão.

Isso não torna a economia imune ao esforço do conhecimento, de olhar para a realidade para identificar padrões e testar hipóteses. Porém é preciso ter consciência de seus limites, buscando entender as distintas razões e os interesses em jogo.

Por falar em forjar entendimentos, fico imaginando como seria a cobertura da grande imprensa se a crise hídrica de São Paulo ocorresse sob um governo do PT.

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MARCELO MITERHOF, 40, é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco. Escreve às quintas-feiras nesta coluna.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. PhDBostas

    Almoçando outro dia, tive o azar de sentarem uma mesa ao lado de dois homens que discutiam economia, ambos acadêmicos, e de corte liberal.

    Tive que ouvir um infeliz façlando sobre uma excelente tratado de economia recente, onde o autor utiliza, entre outras ideias, as de Darwin, para sustentar o poder discricionário das elites econômicas.

    Darwinismo social e econômico são meras ideologias, nada possuem de ciência. Empulhações a serviço do abuso de poder que se autolegitima simplesmente exercendo sua tirania.

    Grande escola.

  2. Medidas impopulares “a priori”

    Bom dia pessoal,

    Caro Marcelo, gostei de boa parte do seu texto.

    De uma  outra boa  parte discordo.

    Isso  porque  sei que ao escrevermos um texto qualquer, evidentemente, somos obrigados a utilizar os significados das palavras, das expressão , das frases que são formadas com o uso do  vernáculo. Nem sempre conseguimos passar o que achamos que estamos querendo passar.

    Os  vocábulos,isoladamente ou não, estão carregados de “preconceitos”  que se juntarão aos “preconceitos” dos leitores, formando um mundo de preconceitos, onde a “moral”  ou a ética do momento vão predominar.  

    Você foi educado ao falar do pensamento econômico quando diz sobre o suposto  “esforço”  – da economia ( dos economistas) –  para se  compreender a “realidade” através de modelos etc.

    Eu não o serei. Economia pra mim vem se tornando num monte de baboseiras.

    Isso não é trivial, é  banal. O esforço,  no momento,   é o de “entrega” de resultado para ganhar prêmio. O prêmio  nobel confirma o que eu disse.Às vezes, o prêmio nobel “sopra” pra um lado, às vezes para outro e por ai vai.

    Mas, voltando às ideias,   acredito ser IMPOSSÍVEL uma ideia “a priori” no campo  social. O devir não me deixa mentir.

    Note que eu “acredito”. Não estou dizendo que “é” impossível, sob pena de cair num paradoxo.

    O termo “a priori”  forjado , salvo engano, por Kant foi uma tentativa espetacular e muito avançada de se acreditar em algo que já existe por que existe e nada mais pode ser a não ser o que já existe “a priori”. Kant é kant  a priori.

    O algarismo 2 , a priori, é 2 e somente 2. Nada “é” ou pode explicá-lo ” a posteriori”. ( pelo menos até hoje) 

    Isso, evidentemente, não pode ser considerado quando estamos tratando de evolução humana e seus contextos históricos e sociais.

    A economia, que parece buscar justificativas para a  divisão internacional  do  trabalho com recursos escassos, e todo aquele blá, blá, blá, se apoia em paradigmas,  ao meu ver, furados! Engana os otários.

    Rousseau teria dito: o primeiro que cercou um pedaço de terra dizendo ser dele e encontrou outras pessoas suficientemente IDIOTAS para acreditar nessa balela, forjou a ciência econômica “iluminista”.

    E, devemos acrescentar, essa pseudo ciência econômica  não soma 2. Soma zero!

    Ideia “a priori” nesse campo econômico pode ser “enganação antecipada”.

    Portanto, “ideiais a priori” no campo econômico seria algo do tipo:  Sofisma “a priori”. Ou melhor: Sofisma antecipado.

    A propósito, um outro paradoxo que me ocorre agora  – para não falar de enganação –  seria: Um representante do povo, que se fosse eleito pelo povo, cujo poder emana do povo dizer: Fui eleito meu ” povo” , agora, meu povo,  se prepare! Tomarei “medidas impopulares”! 

    Não queremos ser mais “marionetes a priori” como sugere o gravura acima.

    É claro que o  povo não cairá  nessa enganação( ops falei)

    Saudações

     

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