Insulto, logo existo, por Leandro Karnal

 
Jornal GGN – Leandro Karnal, historiador e professor da Unicamp, analisa a questão da crítica e do contraditório, se dizendo assustado com a virulência das ofensas proferidas na internet. “Há pessoas que querem fazer sucesso a qualquer preço e cimentam a estrada com palavrões”.
 
Para o colunista do Estadão, há uma vontade generalizada de classificar, mais do que entender. “Definido se o autor é X ou Y, encerra-se a discussão”, afirma, ressaltando que o talento não tem exclusividade política ou biográfica, citando os exemplos de Portinari, Jorge Amado, Jorge Luis Borges e Oscar Niemeyer, entre outros. 
 
“Tanto a maestria pode estar presente num indivíduo detestável como a mediocridade pode aflorar no mais engajado lutador dos direitos dos filhotes de foca”, diz Karnal.

 
 
Leia a coluna completa abaixo: 
 
Do Estadão
 
Insulto, logo existo
 
No momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte
 
Leandro Karnal
 
A crítica e o contraditório são fundamentais. Grande parte do avanço em liberdades individuais e nas ciências nasceu do questionamento de paradigmas. Sociedades abertas crescem mais do que sociedades fechadas. A base da democracia é a liberdade de expressão. Sem oposição, não existe liberdade.
 
Uma crítica bem fundamentada destaca dados que um autor não percebeu. Um juízo ponderado é excelente. Mais de uma vez percebi que um olhar externo via melhor do que eu. Inexiste ser humano que não possa ser alvo de questionamento. Horácio garantia, com certa indignação, que até o hábil Homero poderia cochilar (Quandoque bonus dormitat Homerus – Ars Poetica, 359). A crítica pode nos despertar.
 
Como saber se a avaliação é boa? Primeiro: ela mira no aperfeiçoamento do conhecimento e não em um ataque pessoal. A boa crítica indica aperfeiçoamento. Notamos, no arguidor sincero, uma diminuição da passionalidade. Refulgem argumentos e dados. Mínguam questões subjetivas. Há mais substantivos e menos adjetivos. Não digo o que eu faria ou o que eu sou. Indico apenas como algo pode ser melhor e a partir de quais critérios. Que argumentos estão bem fundamentados e quais poderiam ser revistos. Objetividade é um campo complexo em filosofia, mas, certamente, alguém babando e adjetivando foge um pouco do perfil objetivo.
 
Duas coisas ajudam na empreitada. A primeira é conhecimento. Há um mínimo de formação. Não me refiro a títulos, mas à energia despendida em absorver conceitos. Nada posso dizer sobre aquilo do qual nada sei. Pouco posso dizer sobre o que escassamente domino. A segunda é a busca da impessoalidade. Critico não por causa da minha dor, da minha inveja, do meu espelho. Examino a obra em si, não a obra que eu gostaria de ter feito ou a que me incomoda pelo simples sucesso da sua existência. Critico o defeito e não a luz.
 
Cheguei a essas conclusões por já ter errado. Arrependo-me de críticas passionais. Tomei consciência de que dois ou três temas mexem tanto comigo, que a objetividade tende a diminuir. Questões ligadas ao racismo, à violência contra mulheres e à educação implicam uma carga emotiva forte para mim. Hoje, quando vejo que o debate roça nisso, submeto-me a redobrada atenção para evitar fazer aquilo que estou reclamando em outros.
 
Reconhecida minha imperfeição, reafirmo: assusta-me a virulência da internet. Há pessoas que querem fazer sucesso a qualquer preço e cimentam a estrada com palavrões. Acreditam que agressões com palavras vulgares e apelidos sejam um grande impacto. Estão corretos: causam impacto, mas vulgaridade é simples concussão.
 
Suponho que alguns apresentem sintomas ligados à chamada síndrome de Tourette. Georges Gilles de la Tourette (1857-1904) descreveu pacientes que tinham compulsão de enunciarem palavrões, especialmente referências a fezes. A coprolalia, este fluxo de temas fesceninos e agressivos, escapa ao controle.
 
Além de uma síndrome generalizada de Tourette, noto a vontade de classificar mais do que entender. Definido se o autor é X ou Y, encerra-se a discussão. Basta dizer que ele é, por exemplo, conservador ou socialista. Nada mais preciso pensar da obra.
 
É preciso reforçar que o talento e a criatividade têm pouca exclusividade política ou biográfica. Portinari e Jorge Amado eram gênios na pintura e na escrita. Também foram devotados comunistas. Jorge Luis Borges mudou a maneira de pensar a literatura mundial. Era racista e achava a ditadura de Francisco Franco muito boa. Oscar Niemeyer mudou a noção de arquitetura do século 20. Era adepto do marxismo. Shakespeare, do ponto de vista político, era bastante conservador e desconfiava da participação popular. Descartes e Pascal eram religiosos; Bertrand Russel e Diderot, ateus. Picasso e Hemingway eram sedutores quase agressivos de mulheres. Nelson Rodrigues não era, exatamente, um feminista. O pintor Francis Bacon, o músico Schubert e o economista J. Keynes tinham vida ou desejo homoeróticos. O que eu quero dizer: no momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte. Fixar-se no estereótipo parece ser um recurso de certa estreiteza analítica. Tanto a maestria pode estar presente num indivíduo detestável como a mediocridade pode aflorar no mais engajado lutador dos direitos dos filhotes de foca.
 
Respondo raramente a críticos agressivos. Basicamente por falta de tempo e também por acreditar ser um direito de todos a manifestação com liberdade, dentro dos limites da lei. Internet funciona como terapia para muitos. Sempre recomendei que as pessoas fossem comedidas não por humildade, porém por vaidade, já que atacando alguém eu falo tanto de mim e dos meus medos que a prudência impõe certo silêncio obsequioso. Poucas coisas desnudam tanto minha alma como o ataque. Podemos sempre evitar o texto de quem discordamos. O impossível é evitar a nós mesmos.
 
Eis fevereiro entre nós. Hoje, chego ao meu verão de número 54. Nunca havia percebido a vida tão fascinante como agora. Melhorei muito porque tive bons críticos ao longo dos anos. Ajudaram-me a superar mazelas e lacunas. Agradeço a eles. Desejo paz aos outros julgadores. Estou com pouco tempo para odiar. Boa semana a todos. 
 
Redação

9 Comentários

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  1. Nesse recém-inaugurado reino

    Nesse recém-inaugurado reino dos articulistas e/ou comentaristas de internet, há uma certa tendência não ao insulto, mas à imediata desqualificação do contraditório e do contraditor.

    Há uma tendência à resposta peremptória, meio trombetada de Jeová, estilo Roma locuta, causa finita.

    Creio que é uma versão mais edulcorada do “insulto, logo existo.”

  2. O estadão, pertencente à

    O estadão, pertencente à gangue mafiosa ditatorial golpista, mantem mercenários que escrevem para fazerem bonitas e educadas molduras para o monte de mérda que são. Gostaria que o autor respondesse: “O senhor estava lá no Itaquerão mandando uma presidenta eleita democráticamente tomar no ú? Ou o senhor é apenas um puxa saco da laia dos mesquitas que lá não estavam de corpo mas estavam de alma?

  3. Artigo polido e inocente

    porque não percebe, ou se recusa a aceitar, que essa onda de comportamento pró-psicopatia é somente uma escala para o destino final: o grand finale em 2018, quando a ideia de discutir projeto de país se espalhar pelo povão e a vitória da esquerda for iminente…

    O principal objetivo do terço conservador da classe média é evitar melhorias na educação porque essas melhorias levariam a maior competição pra entrar na universidade, pra passar nos concursos públicos e assumir posições de status no Estado e na iniciativa privada.

    Eles te xingam, senhor Karnal, porque o senhor quer essas melhorias na educação…

    mas não são apenas eles que estão contra essa sua vontade…

     

    Melhorias na educação permitem que os gênios, cujos potenciais são mantidos atrofiados por debaixo da miséria material e cultural, possam florescer e se tornarem quadros das multinacionais brasileiras que estavam competindo de igual pra igual com as multinacionais do Eixo City-Wall Street.

    Os verdadeiros estrategistas do golpe possuem algo em comum com o terço conservador da classe média: eles querem que esses gênios morram e desejam a nós, que queremos ver esses gênios se desenvolverem e junto com eles o nosso país e nossas empresas, a morte também.

     

    Ou ao menos, assim será quando as escalas forem ultrapassadas e o destino final alcançado – por enquanto é só um treino, somente um exercício; quando o jogo de verdade começar, palavras doces e inteligentes não vão te salvar. 

  4. “Os suportes da comunicação e

    “Os suportes da comunicação e as tecnologias são determinantes na mensagem: os conteúdos modificam-se em função dos meios que os veiculam” (Marshall McLuhan).
     

    Como se constata, a preconização do filósofo canadense, à época – década de 60 – quando despontavam os modernos meios de comunicação de massa, em especial a TV, tão mal compreendida, encontra, enfim, com o surgimento da Internet o ápice da sua materialização. 

    O conteúdo a que remete o Professor Karnal, tendo como matérias-primas o insulto, a desonestidade intelectual, a arrogância e outras exteriorizações de incivilidades, encontraram,, enfim, o seu meio adequado. E nele se refestelam até mesmo aqueles ou aquelas a quem jamais negaríamos meter a mão nas labaredas. Em suma: sem a telemática os Mrs. Hydes continuariam adormecidos. 

    É comum se vê hoje no You Tube vídeos desancando “numa boa” monstros intelectuais como Hegel, Marx, Rousseau, Voltaire, Paulo Freire & Cia por serem “comunistas”. O próprio professor Karnal hoje é alvo do ódio dessa turba porque ousou criticar a “escola sem partido”. O oposto também ocorre; ousar, não defender, mas apenas citar e realçar a agudeza intelectual e a pertinência de alguns preceitos de qualquer pensador ou político da Direita, é comprar briga na certa. Até hoje, Roberto Campos, de quem podemos discordar de tudo, mas jamais da sua imensa capacidade intelectual e raciocínio cortante, é tido e dado em certas rodas apenas como um entreguista reacionário e sem escrúpulos. 

    Somente os aspectos singulares da internet permitiriam a produção de conteúdos tão vulgares em contraste  como a sua imensa capacidade de disponibilizar dados e informações para subsidiar como nunca na história das tecnologias suporte para as interações sociais em alto nível. 

     

  5. Da sobrevivências das focas e outras digressões
    O artigo trata da crítica, ou do exercício da divergência e da avaliação, especialmente de sua expressão mais elitizada – a crítica cultural, suponho – que foi contaminada pelos comentários vulgos e vulgares da internet, cujo paralelo sutil no texto permite extrapolar que ambas as pontas compartilham algumas motivações comuns, o “desejo de influenciar” e de ser “formador de opinião”, outro nome pra chefe de manada, onde a mera expressão da “opinião”, a cujo direito inalienável e indiscriminado não corresponde legitimidade automática do mérito do conteúdo nem da expressão, ainda que pretenda ser objetiva, é muitas vezes apenas o desdobramento da generalizada prática da grosseria nas relações sociais, cotidianamente diluída ou invisibilizada pelo anonimato completo. (O artigo do professor Wanderley Guilherme dos Santos, “Nenhum país”, http://insightnet.com.br/segundaopiniao/?p=451, explica com clareza o paradoxo democrático).  A falta de limites é favorecida pela virtualidade do meio, que confere extrema liberdade, sem contrapartidas de responsabilidade de todos os envolvidos (apenas em casos extremos alguém vai à justiça, o que também nem sempre é freio pros abusos…, os provedores e sites que permitem comentários nem sempre os moderam adequadamente, nós, usuários, muitas vezes não sabemos como, quando e até porque opinar, mas o fazemos…), o que simultânea ou proporcionalmente, permite angariar e multiplicar atenção, que é o que realmente interessa a muitos, se não a todos – “falem mal mas falem de mim” é o mote da era das efemeridades, celebridades “nem nem” (nem notáveis nem ilustres, apenas notadas e ilustradas artificialmente), em que as subjetividades ficam (ou se dispõem a ficar) sujeitas ao despudor que se alimenta do espelho sem retrovisor. Publique (intransitivamente) ou pereça, também saiu do mundo acadêmico pras “redes e ruas”.   A melhor parte do artigo é quando o autor passa da teoria a seus motivos pessoais quase ético-religiosos – “Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?” (Evangelho de Mateus 7:4), reflexão autocrítica que ainda não aprendemos, disciplina rara em tempos de “vale tudo” de rua que virou a cultura e a vida em sociedade.   Ao reconhecer que a combatividade argumentativa pode ser derivada de mobilização, mesmo passional, de certos temas e circunstâncias, em si algo compreensível, é necessário diferenciá-la do generalizado “chute na canela” pra ocupar o estreito holofote, ganhar upvotes e likes, shares e rankings de “most influential whatever”, que é tão virulento no alto quanto no baixo clero, na elite social e intelectual e entre a plebe useira de rede social eletrônica, afinal, o ódio, o ego e o fígado são fanáticos comunistas, têm mania de igualar a todos, mesmo que imperfeitamente. E aqui abre-se a discussão pra diversos aspectos que confluem para o espetáculo dantesco da opinião publicada na internet, em muito alimentado pela brutalidade editorial disfarçada, pero no mucho, dos que continuam a exercer o monopólio da opinião, da crítica e da formação de convicção, em favor dos que realizam os palavrões mais abjetos em atos formalmente polidos, com linguagem limpinha pra “massa cheirosa” *,  PECs, decisões antijudiciais de altas cortes, propaganda fantasiada de notícia e mesmo de gestão pública (até fora do carnaval e do período eleitoral, a micareta permanente dos picaretas), as “pós-verdades”, este o novo nome pra mentira e empulhação, o anti palavrão chique, conceito Bombril, que causa pro intelecto (o meu) o mesmo desconforto que palavrões ofensivos provocam na sensibilidade imediata, pré-racional.  Quanto à internet servir de terapia, argumento que soa pejorativo, pessoalmente acho que é exatamente por falta ou esgotamento de mecanismos sociais de exercício civilizado da divergência e da elaboração de conflitos em soluções aceitáveis, democraticamente (desculpe pelo palavrão), que chegamos ao ponto de saturação social deste fim de ciclo, incurável por vias terapêuticas individuais e cuja manifestação em comentários de internet é só a ponta do iceberg e não uma mera válvula de escape, espaço pra desabafo ou receber atenção e apoio qualificado.   O capitalismo extremo que mercadeja com a vida em todas as suas formas, convence em seus anúncios que todos devem ser lindos, ricos e invejados, e que o outro ou é escada pro sucesso ou objeto de consumo, literalmente, ou de status, e produz insatisfeitos, deliberadamente pra fazer consumidor, por “dano colateral” da exclusão de que se alimenta, e por sã consciência dos refratários que o conhecem. O céu, capitalizado, é o limite que todos podem almejar – esquecem de avisar que o preço são eternas prestações no inferno, na melhor das hipóteses.  Como não somos educados pra convivência nem pra divergência, em que deveríamos aprender a contrapor dialeticamente, ou apenas com bom senso, a busca de desejos e a legitimação de direitos (a casa, comida, informação, expressão, diferença, igualdade e sobrevivência, se possível com dignidade, e tantos quantos a generosidade dos abutres cercear) aos limites pra sua realização e às condições de seu impedimento, superação ou concretização, ficamos à deriva e só nos resta a descoberta de novos contornos pra velhos problemas, grandes navegações em busca de novos continentes, também virtuais, da razão, do sentimento e da ação, onde a disputa por fronteiras e lucros, materiais e simbólicos, com seus desbravadores, desterrados, piratas, dizimados e sobreviventes, como os que se repetem em todas as revoluções geoculturais, só terá alguma saída criativa quando a Natureza nada virtual der seu definitivo basta! e a verdadeira humildade confrontar a todos coletivamente: “vieste do pó e ao pó voltará”; assim, “de que vale ganhar o mundo e perder sua alma?”.   *vide Eliane Cantanhede, analista/avalista de ratings “românticos” e odores humanos, afinal, qual a diferença entre jornalismo político tradicional, “coluna social” e comercial de sabonete? (ver https://www.youtube.com/watch?v=kMWVWLn7_twhttps://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/436147576509125/)  

     

      SP, 02/02/2017 – 04:36

  6. Discordo em parte.
    É uma

    Discordo em parte.

    É uma estupidez usar argumentos racionais contra as bestas feras.

    Estas devem ser domadas com o chicote.

    Quem gosta de recorrer aos ataques pessoais deve, portanto, ser ignorado (bloqueado) ou exposto ao veneno que gosta de distribuir.

    Os argumentos racionais só surtirão efeito quando forem empregados no contexto adequado e enquanto o interlocutor não descer a nível expondo-se a levar porretadas. 

    1. Não é bem assim

      Se você conjecturar que cada um só dá aquilo que tem dentro de si, eu definitivamente não quero sair por aí distribuindo grosseria e preconceito.  Por mais que o outro me provoque, me cooptando para adotar a lei do “olho por olho” ou “vamos nos igualar na cegueira”, eu prefiro agir centrada no que eu quero pra mim.  Antes de pensar que vou ” dar pérolas aos porcos”, eu prefiro me sentir bem por ter tantas pérolas que posso me dar ao luxo de não me importar em julgar quem as receba.

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