Jurídico ou político voto deve ter fundamento, por Sérgio Sérvulo da Cunha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Jurídico ou político voto deve ter fundamento

por Sérgio Sérvulo da Cunha

Discute-se sobre a natureza do processo de impeachment: se é um processo “político” ou um processo “jurídico”.

Processo jurídico seria, por hipótese, um processo disciplinado por regras previamente determinadas, em que se objetiva decidir sobre a incidência e aplicação de uma norma jurídica a um fato x.

Processo político seria, por hipótese, um processo em que se delibera sobre um fato x e no qual, embora possam incidir normas procedimentais, a decisão se toma segundo critérios de conveniência e oportunidade. Ou seja: no processo político, o julgador tem grande margem de discricionariedade.

Digo isso a propósito de notícia que li outro dia no jornal. O senador B., que votou contra o processo em maio, estaria agora disposto a mudar seu voto, por motivos políticos: a seu ver, na situação atual, seria muito difícil, à presidente Dilma Rousseff, dar sequência ao seu governo.

Com todo o respeito, parece-me que o senador não pode fazer isso, sob pena de nulificar seu voto.

Diz a Constituição que o(a) presidente da República será julgado(a) pelo Senado Federal, nos crimes de responsabilidade, nos termos de “lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.

Essa é a lei 1079/1950. Não quero discutir, aqui, se ela foi recepcionada ou não pela Constituição de 1988, mas apenas o aspecto que passo agora a examinar.

Diz essa lei que, na sessão de julgamento, cada senador formulará seu voto respondendo a essa pergunta: “cometeu o acusado F. o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?”

Sustento que ao senador não basta responder “sim, cometeu o crime de responsabilidade”, ou “não cometeu o crime de responsabilidade”, como poderia fazer antes da Constituição de 1988: ele precisa fundamentar seu voto. A meu ver, para fundamentar seu voto, o senador não precisa explicitar as razões jurídicas do seu convencimento; basta dizer, por exemplo: “nos termos do relatório do Senador Anastasia, cuja fundamentação adoto” (o que será suficiente se o relatório Anastasia tiver fundamentação hábil). Mas não poderá dizer, como caberia num julgamento meramente político: voto sim, porque a acusada não tem condições de dar sequência ao seu governo. Ou: voto sim, pela minha família e pelo meu cachorro Segismundo.

Por que os senadores precisam fundamentar seu voto?

Porque, ao receber esse encargo constitucional, o Senado, embora não se tenha transformado em órgão do poder judiciário, assume funções jurisdicionais.

Independentemente de invocar o art. 93 da Constituição, segundo o qual todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, peço licença para mencionar o que digo em livro inédito, que escrevi há alguns anos, sobre o dever de fundamentar as decisões jurisdicionais: “além dos princípios da legalidade e da racionalidade objetiva – que informam tanto o Direito material quanto o Direito processual – a necessidade processual de fundamentação decorre imediatamente do princípio do contraditório. No direito de petição, que integra tanto os direitos humanos quanto os direitos fundamentais, incluem-se o direito de ser ouvido, o direito de contraditar, e o direito a uma decisão; esta, para que seja verdadeira decisão – satisfação a quem pede – há de ser fundamentada”.

Para justificar esse entendimento basta-me referir votos proferidos, em outra ocasião, pelos ministros Celso de Mello e Marco Aurélio.

Diz o primeiro: “A exigência de fundamentação das decisões judiciais, mais do que expressiva imposição consagrada e positivada pela nova ordem constitucional (art. 93, IX), reflete uma poderosa garantia contra eventuais excessos do Estado-Juiz, pois ao torná-la elemento imprescindível e essencial dos atos sentenciais, quis o ordenamento jurídico erigi-la como fator de limitação dos poderes deferidos aos magistrados e tribunais”.

E o segundo: “O juiz é um perito na arte de proceder e julgar, devendo enfrentar as matérias suscitadas pelas partes, sob pena de, em vez de examinar no todo o conflito de interesses, simplesmente decidi-lo, em verdadeiro ato de força, olvidando o ditame constitucional da fundamentação, o princípio básico do aperfeiçoamento da prestação jurisdicional”.                                              

De modo que, ao sumariar a votação, na sessão de julgamento do impeachment, a Mesa do Senado, presidida pelo ministro Lewandowski, deverá ter como nulos os votos que não tenham sido fundamentados. E o senador B., se quiser afastar a presidente por motivos meramente políticos, deverá violentar sua consciência antes de responder “sim”.

Sérgio Sérvulo da Cunha – Advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Bastante elucidativo, esse

    Bastante elucidativo, esse texto. Ampliou meu entendimento de um processo que  aparentemente é simples.

    Sempre tive dificuldades em entender esse caráter híbrido do impeachment. Como leigo, o avaliava como totalmente discricionário com relação aos votos dos juízes, ou seja, dos senadores. Inclusive me manifestei aqui neste espaço nesse sentido.

    Cuidado, devemos ter muito cuidado antes de nos manifestarmos sobre assuntos e temas de cunho técnico. 

     

  2. Fundamentar não é apenas se

    Fundamentar não é apenas se referir ao Parecer de Anastasia, mas sim articular os motivos e razões jurídicas do voto. No mais concordo com o articulista.

    1. Seria nula de pleno direito –

      Seria nula de pleno direito – por falta de fundamentação – uma sentença onde o Juiz disse-se: “Pelas razões expostas na denúncia, condeno fulano de tal a”; ou “Pelas razões expostas em razões finais pela acusação, condeno fulano de tal”, ou ainda, “Pelas razões expostas na denúncia e nas razões finais da acusação condeno fulano de tal”.

      O Juiz está adstrito – sob pena de inexistência do ato – a dar as razões de fato e de direito de sua decisão. 

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