Jurista Nutella não consegue interpretar textos e não entende ironias, por Lenio Luiz Streck

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do ConJur

SENSO INCOMUM

Jurista Nutella não consegue interpretar textos e não entende ironias

por Lenio Luiz Streck

Subtese da coluna: “O Vesúvio em erupção e o jurista ajeitando o quadro de Van Gogh na parede” ou “a constitucionalização da vaquejada como o maior fiasco jurídico da República ou Janaína Paschoal armada e perigosa ou “estoque alimentos — o caos é inexorável”.

Esclarecimento inicial: chamo de jurista toda pessoa ligada à profissão jurídica. A coluna da semana passada bateu recordes de acesso. No ranking fechado na sexta-feira (10/2, já havia mais de 87 mil. Penso que até hoje deve ter batido a casa dos 90 mil, que, somados a outras formas de acesso, passou fácil de 100 mil. Alegra-me isso.

Foi uma coluna recheada de ironias e sarcasmos. O título confundiu muita gente boa por aí. Os que não leram toda a matéria saíram me criticando. Outros saíram elogiando. Quando leram a coluna toda, trocaram de lado. Bizarro. Como diz Bauman, com o nosso culto à satisfação imediata, muitos de nós perdemos a capacidade de esperar.

Vivemos tempos duros. Obscuros. Direito fragilizado, fragmentação na aplicação, descompromissos com as instituições e extremo individualismo, pelo qual o sujeito (intérprete do Direito, para ficar nos limites propostos) acredita que pode filtrar o Direito — visto como expressão de uma linguagem pública — por sua linguagem particular: a dele, é claro! Eis o solipsismo. Eis o Selbstsüchtiger, o sujeito egoísta moderno, sujeito-de-si-de-sua-certeza-pensante. O externo não consegue constranger a barbárie interior desse sujeito. Resultado: cada um por si. A corrida é pelo poder. Um dos modos de se perceber isso é o niilismo que perpassa o Direito e as instituições. Não há mais nada que possa ser universal ou que tenha objetividade: só existem narrativas. Eis a tal da pós-verdade.

Bom, a coluna é para ser bem curtinha. Já estou usando palavras que parcela da comunidade jurídica não digere. E se irrita. A anterior  a dos 100 mil  provocou comentários que vão do genial ao absurdo. E mostra que, de fato, tenho razão quando denuncio  como faço há décadas  os malefícios do ensino standard prêt-à porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler (já compliquei de novo). Não leia mais nada. Quem gosta de drops para por aqui. E sai gritando: na prática, a teoria é outra.

Sigo. Parece que as críticas caem no vazio. O Direito é um mundo de ficção. O país está ardendo e: a) mata-se mais do que na guerra da Síria; b) Judiciário censura jornal; c) juiz proíbe que advogado grave audiência (mas ao mesmo tempo divulga conversas privadas entre dois ex-presidentes da República); d) parte dos críticos vibraram com decisão que impediu Moreira Franco de assumir um ministério (na sequência, ministro do Supremo Tribunal Federal decide certo em manter Moreira… Só que o STF fez o contrário quando se tratou da nomeação de Lula, sendo que, à época, nenhum outro ministro pediu para que o caso fosse levado a Plenário: dois pesos, duas medidas); e) discute-se se furto de chiclete é insignificância; f) ministra dos Direitos Humanos se nega a falar sobre o sistema carcerário (afinal, o que uma coisa tem a ver com a outra?); g) aprovada em primeiro turno PEC da vaquejada; h) Romero Jucá faz manobra para antecipar sabatina de indicado ao STF…; i) juiz encarregado da “lava jato” no Rio de Janeiro, quando assumiu a vara, tirou uma Bíblia do bolso e disse: “Este é o principal livro desta vara!” (e eu acreditando que o principal livro era a CF).

Ao mesmo tempo, vejo no Facebook coisas como: a) a protagonista do impeachment, Janaína Paschoal, defendendo o armamento das mulheres (fico imaginando a Janaína armada com duas Colts 45, dizendo I’ll be back — Janaína para ministra da Justiça, a solução definitiva; pergunto: como o porte ilegal de arma é proibido, estaria Janaína fazendo incitação ao crime? — ironia!); b) um professor ministrando curso chamado “cozinhando legal”; c) outro post falando de editora que vende 544 modelos de petições iniciais em matéria criminal, 197 modelos de petições cíveis, 763 modelos de petições previdenciárias (porque esses números quebrados?); d) outro professor vendendo curso de “como funciona nossa memória para concurso”. Genial, não? Concurso é para decoreba. Confessadamente; e) já outro vende curso de audiência de prática judiciária on-line. Tudo isso está no “feicibuki”. Na ConJur, a AGU fala já de robôs-advogados, ou seria advogados-robôs? f) tem também gente oferecendo coaching com certificado em inglês; g) outros oferecem cursinhos com “pessoas reais” ministrando aulas. Sucesso ao alcance de sua mão… Em 1990, em palestra no Rio, eu disse a seguinte frase (tenho gravada): “O Vesúvio em erupção e o jurista ajeitando o quadro de Van Gogh na parede”. Já ali avisava.

Tem mais: vi também que agora o aluno não mais precisa ir assistir a audiências ou julgamentos (acho que alguém vai propor uma PEC tratando disso; atenção: sarcasmo!). Pode fazer isso on-line. Há um festejado dispositivo que está no Facebook que resolve o problema da malta. Em Pindorama, logo ensinarão natação oral. Por que você necessita saber nadar, se pode fazer natação on-line? EAD em natação! Por que ler um livro se você pode ler o resumo do resumo vendido aos incautos patuleus que depois não conseguem saber o que é uma ironia ou uma metáfora? Pronto: uma PEC dispensando todos de ler o livro todo. Chamar-se-á de PEC da Orelha. Viva a terceirização epistêmica.

Eis o que liga o que disse acima com a coluna passada. Vou trazer alguns excertos de comentários que simbolizam o estado da arte do senso comum teórico que há décadas corrói o ensino, a doutrina e as práticas jurídicas. Produzimos alunos e profissionais que dizem coisas como estas das quais falarei rapidamente: um comentário à coluna que me chamou especialmente a atenção foi de uma causídica, que já no título mostrava a que veio: “Pela primeira vez vejo contradição no Prof. Lênio”. Disse que ficou triste porque eu estava apoiando a indicação ao STF. Pois é. Já um comentarista que se assina “Professor” dá o título contundente a partir de uma frase minha: “e daí se muitos no STF fazem isso também”! Para o professor, por eu ter dito isso (deve ter lido só essa frase), ele “ficou de boca aberta”. E disse mais algumas coisas que apenas mostra como nossa massa jurídica não sabe interpretar, não sabe o que é uma metáfora ou uma ironia. Poderia ser usado como case para o vestibular.

Há outros comentários à coluna que são (também) de chorar (chorar, aqui, é metafórico). Alguns, repletos de raiva, resumem tudo o que eu disse em dois ou três impropérios. Que pena. Um leitor mostrou-se funcionalmente apedeuta, ao dizer que “usei tom conciliador mal dissimulado” na coluna. Inacreditável. Uma comentarista disse que eu falara mal dos concurseiros e “menoscabava os candidatos”, no que foi apoiada vibrantemente por outro, que acrescentou uma pérola: as palavras difíceis (“nomenclaturas eruditas”) e baboseiras (sic) que pedem nos concursos (sic) são culpa de gente como o articulista (eu). Bingo. Já outro disse que o indicado ao STF deve ser ministro para enfrentar os comunistas da PUC-SP e outros vermelhos (claro: e a culpa é minha também). Um promotor se esmerou, resumindo todo o meu texto ao fato de eu tê-lo escrito por ter dor de cotovelo. Binguíssimo. O AM (Auxílio Moradia) lhe subiu à cabeça. Comentário erudito, como o postado pelo “assessor”, que diz que ninguém se importa com Alexy, Dworkin e Luhmann. Tudo dito com a profundidade dos calcanhares de uma formiga anã. Mas esse é o imaginário jurídico construído em Pindorama. Com muito esforço. Um Direito Nutella. Sim, esse é, verdadeiramente, o Direito Nutella!

Tudo isso mostra a falta que faz a leitura. Aos alunos e demais juristas que não conseguem entender minimamente o que diz um texto e àqueles que não conseguem entender minimamente ironias, metáforas e sarcasmos, sugiro mergulharem nos livros (cuidado: isto tem um sentido metafórico — não mergulhe de verdade; há livros com capa dura que podem causar ferimentos). Chegar no coração do problema não quer dizer que o problema tenha coração. Livros não mordem (até porque não têm dentes — compreenderam? Aqui temos uma catacrese). Para ser um bom jurista e não ser um fabricante de próteses para fantasmas (isto também tem um sentido metafórico — fantasmas não sofrem amputações), há que matar dois leões por dia (ups: também tem um sentido metafórico — por favor, não matem os leões). Diz-se até que matar dois leões é fácil. Difícil é desviar das antas. Ou conviver com as cobras.

Brava gente pindoramense: o que foi feito com o Direito (sim, porque ninguém é filho de chocadeira e não existe grau zero de sentido) e o que foi feito deste país? O que fizeram com os alunos?

Atenção: ironia é dizer sutilmente o contrário do que parece que se está dizendo. A coluna dos 100 mil tinha essa intenção ao falar sobre a dogmática jurídica, seus produtos e produtores. Mas isso só se aprende lendo muito. Não há intelectual bronzeado (isto, no caso, deve ser lido como uma espécie de sinédoque, variação de metonímia). Enfim: palavras e coisas… A palavra “água” não molha, viu? (mais uma catacrese?). Tenho a certeza de que aqueles comentaristas que só conseguem comentar as colunas destilando veneno ficarão em palpos (ou em papos) de aranha (atenção: destilar veneno não é, exatamente, destilação de veneno; e palpos de aranha não tem aranha de verdade envolvida).

Definitivamente, vou estocar comida (estocar, neste caso, não tem o sentido de juntar, guardar alimentos). Significa que… É isso mesmo que você está pensando. Ou não!

Post scriptum: antes que alguém diga que estou reduzindo o problema do Direito a uma caricaturização do imaginário, informo que não desconheço o intenso trabalho de parcela dos juristas (advogados, professores, juízes e membros do Ministério Público) que buscam construir, dia a dia, um Direito para além do que vemos por aí. O que quero mostrar é o buraco em que nos metemos: não conseguimos sequer identificar (e fazer cumprir) o mais prosaico: o Direito. Entre ele e a moral (e/ou a política), temos preferido esta. Resultado: Direito é o que quem tem poder de dizê-lo é. Simples assim.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

8 Comentários

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  1. Ótimo artigo!
    Agradeço muito

    Ótimo artigo!

    Agradeço muito por seu trabalho.

    Em política, expor os erros e corrigí-los pedagogicamente a todos dispostos a esperar e contemplar é fundamental – os meninos do MP, TRF4 e muito outros coleguinhas necessitam de altas doses de sarcasmo e ironias vindas de todos à sua volta pra sentirem o absmal ridículo e  profunda vergonha por sua ignorancia e ações pretéritas. Ele sabem. Pagam subalternos pra distrair aos outros e a eles mesmos – pra eles mesmos não precisarem olhar pra tal monstro q são. Pro q fizeram ontem.

    Re-pensar, re-ler? Nunca.

    As famílias deles já sentem. O Nada se aproxima, eles temem.

    E é bom q seja assim. Faremos q sintam mais.

     

    Bravos permanecem ao lado dos justos, aos canalhas restam os covardes.

    Pra corrigir erros: reDILMA-se!

  2. Precisa desenhar?

    “…sugiro mergulharem nos livros (cuidado: isto tem um sentido metafórico — não mergulhe de verdade; há livros com capa dura que podem causar ferimentos)”. Atenção uspianos seguidores das Janainas e dos Moraes, entenderam bem essa frase? Hehehehee…outra coisa, seguidores das Janainas de dos Moraes, cuidado com o mato verde, tá? Não é comida.

  3. Ironia…
    Vc quer saber o que

    Ironia…

    Vc quer saber o que sigifica esta palavra?

    Eu  Poderia de cobrar 600 por sessão, e nãzo seria tão prárico pra resolver seu problema;

                 De graça:

    http://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2017/02/1859524-deus-abencoe-voce-que-flerta-com-desconhecidos.shtml

    http://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2017/02/1859524-deus-abencoe-voce-que-flerta-com-desconhecidos.shtml

    http://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2017/02/1855415-quantos-anos-tem-o-narrador-do-film

    e-da-shttp://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2017/02/1855415-quantos-anos-tem-o-narrador-do-filme-da-sua-vida.shtmlua-vida.shtml

          Tudo na ”pensata” da Folha.

  4. Nunca fomos tão pobres e burros quanto agora

    O comentário pode servir tanto para induzir sentimento de consolo quanto para o de desespero, é sua a escolha:

    Ah, caro Lenio, fosse apenas no Direito… O desespero em ganhar dinheiro e poder atual, a ânsia por parecer rico e poderoso, só se encontrava antes no pega-prá-capar de gente muito, muito pobre. Brigas por restos de comida no lixo, generosidade… “Generosidade”?! Grandeza? Aprofundamento e reflexão… inteligência? Ah, esse tempo passou… pelo menos, por enquanto.

  5. Trinta anos atrás, constatei

    Trinta anos atrás, constatei que diversos alunos da minha classe eram analfabetos funcionais. Em uma sociedade cada vez mais alienada e consumista, o resultado é um Alexandre de Moraes no STF.    

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