Massacre diário de 12 anos contribuiu para morte de Marco Aurélio Garcia, por Hildegard Angel

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: Agência Brasil

Do blog Hildegard Angel

Para historiadora, massacre diário de 12 anos teria contribuído para morte de Marco Aurélio Garcia

Morreu Marco Aurélio Garcia. E quem foi Marco Aurélio Garcia?

Foi um dos idealizadores de uma política externa brasileira digna e altiva, desconstruindo o ancestral “complexo de vira lata”, fazendo do Brasil, então subserviente ao “primeiro mundo”, um ator protagonista no cenário internacional, uma liderança solidária e integrada à América Latina.

Professor aposentado do Departamento de História da Unicamp, ele dividiu a formulação da política externa com o Itamaraty, na condição de assessor dos governos petistas. A cooperação com países da América Latina, a articulação dos Brics, bloco formado por Brasil Rússia, Índia, China e África do Sul, foram iniciativas que levaram as digitais de Garcia.

Apesar das críticas de que fora uma postura ideológica, o que ele negava, os superávits comerciais advindos da relação com os governos latino-americanos de esquerda provaram que Garcia estava certo.

Bem, eu não tive proximidade com Marco Aurélio Garcia, apesar da admiração. Mas o jornalista Gilberto Maringoni teve. E escreveu belo depoimento a respeito na Carta Maior, que tomo a liberdade de reproduzir aqui, a quem interessar possa. Como homenagem a quem bem merece.

ALGUMAS COISAS SOBRE UM GRANDE CAMARADA
(Gilberto Maringoni / Via Carta Maior)

1.
Marco Aurélio Garcia era um sujeito atípico. Mesmo sendo um dos personagens centrais dos governos lulistas, tinha zero de pose ou vaidade. Sempre falou de forma franca e aberta e separava aliados de adversários com nitidez. Aliados não eram os que concordavam totalmente com suas ideias, mas os que se perfilavam num mesmo campo, independentemente de diferenças pontuais.

2.
Marco Aurélio morava em um edifício dos anos 1950, na  praça da República, centro de São Paulo, que mereceria um trato na parte externa. Não tem luxos ou nome francês, marca de condomínio de classe média. O amplo apartamento é um caos em vias de organização, como ele definiu quando estive lá para um almoço, em março deste ano. Livros em profusão, DVDs e CDs – sim, MAG ainda não baixava filmes ou músicas -, posteres, papeis e mais papeis e uma cozinha repleta de garrafas de rum de variadas marcas. Um agradabilíssimo bunker para sua imensa cultura e vivências de militância, enfrentamentos, exílio, estudos, andanças e formulações no governo ou fora dele.

3.
E o livro, Marco? Que livro? O livro que você deve estar escrevendo sobre o governo. Ele ri, maroto. Verdade, estou reunindo essa papelada, caixas e mais caixas, vou compilando, separando, pré-editando e tentarei dar forma. Para quando é, Marco? Não sei, pretendo ter tudo pronto lá para setembro do ano que vem. Cadê livro? Perdemos. Perdemos a memória privilegiada de quem colocou o Brasil no mapa-mundi, juntamente com Celso Amorim. Ele conta que ambos formaram uma dupla impressionantemente afinada, que não raras vezes se encontrava em aeroportos, um vindo, outro indo ou vice-versa.

4.
A partir daí, a conversa fluia. Qual a melhor versão do “Homem que sabia demais”, de Hitchcock, o da fase inglesa ou o da americana? Ninguém fala muito, mas os chocolates venezuelanos se equiparam a alguns dos melhores suíços. Tintin é o que de mais divertido foi feito na Europa em matéria de quadrinhos, apesar do reacionarismo de Hergé. Queria escrever como Garcia Márquez. A prosa de Marco era refinada e divertida, mesmo quando não se debruçava sobre seu tema de interesse desde os tempos do movimento estudantil, a política externa.

5.
Nunca soube porque Dilma não o nomeou chanceler. Talvez fosse falta de visão da mandatária numa área estratégica, como em todas as outras. Pois MAG consolidou uma vertente original nessa área, combinando interesses econômicos e políticos com uma visão anti-hegemônica clara. Sem fazer lobbies ou defender ganhos pessoais, firmou-se como leme de uma diplomacia que tinha o desenvolvimento e a construção de novas parcerias Sul-Sul como meta. É possível discordar de sua orientação, mas não duvidar de sua coerência.

6.
No governo, desenvolveu agendas por vezes estafantes, mas nunca deixou de atender pedidos para palestras ou debates. Foi um entusiasta da Conferência de Política Externa que montamos na UFABC, em 2013, com o esforço exemplar – entre outros – de Giorgio Romano, Gonzalo Berron, Igor Fuser, Iole Iliada Lopes e dezenas de professores, alunos, ativistas que – de forma injusta, eu sei – não vou conseguir lembrar aqui.

7.
Brincava comigo. Você é a direita do PSOL e eu a esquerda do PT. Ainda vamos estar no mesmo partido. Estivemos, por muito tempo, embora eu fosse um militante para lá de irrelevante. No fundo, Marco Aurélio era um dos raros que se batia por uma esquerda ampla, plural e afiada nos propósitos. Intelectual sólido, com trânsito entre vertentes políticas variadas de todo o mundo, MAG era de fato único. Não há outro semelhante ou substituto não apenas no PT, mas na esquerda brasileira.

8.
Eu estava numa banca de mestrado, quando, meio por acaso, vi a notícia de sua morte no celular. Uma pancada. Isabel Lustosa chama atenção para algo de suma importância: “A gente não pode deixar de pensar em como esse massacre diário, ao longo de mais de doze anos, deve contribuir para a morte de gente como Marco Aurélio Garcia”. Não podemos deixar de pensar nisso não. Ao mesmo tempo, é fundamental ver que, com toda a tensão, MAG jamais saiu da linha de frente dos combates, mesmo com custos políticos e pessoais altíssimos.

9.
Quando alguém como Marco Aurélio Garcia se vai, vale a pena olhar para o lado de lá, o lado da escória que nos assalta, e ver como eles são mínimos, medíocres e rasteiros. Se não existe um substituto do lado de cá, o lado de lá não tem figura que a ele se ombreie.

Nós não perdemos Marco Aurélio Garcia. Nós o ganhamos por 76 anos.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

6 Comentários

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  1. Realmente…a tal ponte que

    Realmente…a tal ponte que esses canalhas golpistas montaram em Brasília, pretende nos fazer retroceder de uma Política Externa maiúscula, conduzida por maestros competentes como: Marco Aurélio Garcia e Celso Amorim. Querem nos fazer atravessar essa ponte-pinguela, de volta ao passado.

    Claro! Um bando de velhos brancos, racistas, misóginos, e reacionários.Pensam nos despachar de volta ao limiar dos primeiros anos do Brasil Colonia. Ou seja, política externa tocada pelo zé serra, o homem da bolinha, e, do aluysio nunes 300mil, traíra valentão de merda, é igual a fazer do Itamaratí uma Casa-Grande.  Ai velho, é de lascar.

    Orlando

  2. Há um livro de Murakami, na

    Há um livro de Murakami, na verdade uma trilogia ;””1Q84” . E os paranoicos também  tem inimigo de verdade. Sei lá, vai que… enfim tem tanta gente morrendo do nosso lado, é deve ser o destino mas vai que…

  3. Nunca vão ser julgados por esta atual rede judicial injusta que

    assola o país. Mas que cada jornalista que continua fazendo campanha com o intuito de degradar os outros saibam que, seja a mando da chefia ou não, quando assim o daz, respingam em suas vestes pequenas manchas de sangue. Que nunca se esqueçam que este sangue aos poucos os aproximarão dos tubarões e hienas, sedentos por mais sangue.

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