Morre Jadir Ambrósio, compositor do hino do Cruzeiro

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Enviado por JNS

do Jornal O Tempo

Jadir Ambrósio, o compositor do hino do Cruzeiro, morre aos 91 anos

O músico estava internado há um mês para tratamento de doenças renais e cardíacas

@SUPER_FC

Morreu nesta terça-feira o compositor do hino do Cruzeiro Jadir Ambrósio. O músico de 91 anos estava internado há um mês para tratamento de doenças dos rins e do coração, mas não resistiu e faleceu durante a madrugada em um hospital em Belo Horizonte. O clube confirmou a informação através do seu site oficial.

De acordo com o Cruzeiro, o corpo de Jadir Ambrósio será velado nesta terça, a partir das 14h, no velório 1 do Cemitério Bosque da Esperança, em Belo Horizonte. O sepultamento está marcado para as 10h da manhã desta quarta-feira.

O hino do Cruzeiro foi escrito por Jadir em 1965, para disputar um concurso da rádio Inconfidência. Ambrósio, que era morador do bairro Cachoeirinha, região noroeste de BH, desde 1950, também foi autor de diversos sambas gravados por músicos famosos como Agnaldo Timóteo e Luiz Gonzaga. O sambista também foi professor de música e era amigo pessoal da cantora Clara Nunes.

http://www.youtube.com/watch?v=09UliRgwXw8 width:700 height:395

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Claridade

     

     

    SÊO JADIR E OUTROS CARNAVAIS

    José Antônio Orlando | Semióticas Blog

    O endereço de Jadir Ambrósio, na esquina da Rua Clara Nunes, não é puro acaso.

    “E lá ia eu, fazendo mesura com o saxofone tinindo de tão novinho. De repente dou de cara com uma patrulha montada a cavalo, que me parou porque achou aquilo suspeito. Foi então que um dos policiais virou para mim e falou: ‘Se este instrumento é seu, moço, então toca para provar que é verdade’.”

    “Há muito tempo que o carnaval não é mais o mesmo. Eu vejo muita falta de solidariedade, muita falta de companheirismo nos dias de hoje. As pessoas estão muito individualistas, parece que não estão nem aí umas para as outras. Isso dói num homem vivido como eu”, explica, enquanto confessa que para matar as saudades costuma ouvir os velhos discos de vinil com as canções de Orlando Silva, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Ataulfo Alves, Carmen Miranda e outras estrelas de outras épocas.

    Lembranças dos antigos carnavais em Belo Horizonte: Jadir Ambrósio fotografado pela neta, Natália Ambrósio.

    “Eu conheci a Clara Nunes quando ela chegou numa festa que eu fazia no adro da igreja Santo Afonso, aqui no bairro. Ela era ainda quase uma criança, tinha uns 16 anos, e tinha vindo de Caetanópolis para trabalhar como operária na Fábrica de Tecidos Renascença, que não existe mais. Aí eu soube que era vizinho dela. Quando ela cantou foi um acontecimento, e depois a gente acabou ficando muito amigo daquela moça tão talentosa. Fui eu quem a levou para as primeiras participações nos programas de auditório. Foi assim que apareceu a Clara Nunes”, conta, emocionado.

    Clara Nunes na avenida, em seu primeiro desfile na Portela, no carnaval de 1971

    Clara retribuiu a força que impulsionou sua carreira como cantora gravando músicas de Jadir Ambrósio nos primeiros discos e depois, quando estava no auge da fama, nas décadas de 1970 e 1980. “Clara gravou várias de minhas composições. A que fez mais sucesso na voz dela foi ‘Noites de Farra'”, recorda, cantarolando um trecho. Com Jadir Ambrósio, a música está sempre presente para ver a vida com mais otimismo. 

    Entre trechos cantarolados de marchinhas de carnaval e sambas da velha guarda, ele volta e meia retorna a sua composição mais celebrada, o Hino ao Cruzeiro, seu time do coração. “O locutor Audair Pinto aproveitou o sucesso imediato do hino do Cruzeiro e virei freguês no programa de auditório da Inconfidência, que era a maior audiência da rádio naquele tempo”, conta, com entusiasmo.

    Os primeiros blocos caricatos desfilam em BH, na avenida Afonso Pena, na década de 1940

    Na mesma época em que surgiram os hinos do Cruzeiro e do Atlético, outros compositores do primeiro time da música popular também criaram obras em outros estados que celebravam o casamento de música e futebol. Entre outros nomes consagrados, o gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) criou o hino do Grêmio e o carioca Lamartine Babo (1904-1963) criou o hino do Flamengo.

    “Lamartine era outro fenômeno”, destaca Jadir Ambrósio. “Era humorista, músico, cantor e um dos mais importantes compositores que o Brasil já teve. Ele é autor do hino do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do América, do Vasco da Gama… Tem mais, mas não me lembro agora. Também fez marchinhas de carnaval das melhores de todas, ‘O teu cabelo não nega’, ‘Linda morena’, ‘Cantoras do rádio’, ‘Joujoux e balangandãs’, ‘O hino do carnaval’ e muitas outras. E ainda é dele tantos clássicos do cancioneiro brasileiro, ‘No rancho fundo’, ‘Serra da Boa Esperança’… Êh, Lamartine…”

     

    Bandolim, Pandeiro e Tamborim

    “Uma das grandes alegrias que tive na vida foi quando colocaram meu hino para o Cruzeiro num disco que reunia os hinos mais bonitos do futebol brasileiro. Aquele disco, que saiu pela Continental, fez história e até hoje as pessoas que eu conheço comentam e elogiam”, conta, com orgulho, enquanto procura o disco de vinil no móvel da sala.


    “Deviam relançar esse disco que o sucesso ia se repetir. Todo torcedor tem um amor verdadeiro pelo hino de seu time de coração. E eu acho que futebol sempre teve ligação com a boa música”, defende, lembrando que até a década de 1970 toda vila de Belo Horizonte tinha um clube de futebol com sua respectiva sede social.


    “Nesta sede social dos clubes sempre tinha muito samba, muito choro de improviso, violão, cavaquinho, bandolim, pandeiro e tamborim. Havia nossas horas dançantes, tudo era motivo para comemoração, até aniversário de padre da paróquia”, brinca. Outro ponto de encontro dos sambistas da antiga em Belo Horizonte, ele recorda, era a Associação dos Datilógrafos de Minas Gerais, na Rua Tupinambás. “Eles davam muita força para todos os sambistas, chegavam até a datilografar as letras da músicas”, comenta.

     

    Os Filhos da Lua

     

    Depois do seu primeiro sucesso, “Oi, sabiá”, gravado pela dupla Caxangá e Sanica pelo selo Columbia, em 1954, vieram outros sucessos antes do divisor de águas que foi o hino do Cruzeiro, incluindo samba, marchinhas, baião, xote e outros ritmos dançantes. Jadir Ambrósio faz uma pausa e enumera seus principais sucessos: “Chô Passarinho” (em parceria com Caxangá), “Buraco de Tatu” (com Jair Silva), “Domenique” (com Henrique Almeida), “História do Tico-tico” (com Xavier e Eli Murilo), “Índia Guarani” (com Eli Murilo), “Professor Maluco” (com Manoel Moes), “Protegido de Nossa Senhora” (com Jair Silva), “Quando o Repórter Descobriu” (com Raguinho)… “Esses são os que estou lembrando agora, mas tem muitos outros”, ele diz. 

    “Desde menino eu sou compositor. Engraçado é que naquelas primeiras reuniões que a gente fazia, em frente lá de casa, na Cachoeirinha, eu ainda estava aprendendo a tocar cavaquinho e violão e já improvisava acordes e versos, inventava, juntava trovas e trechos de sambas que eu tinha ouvido no rádio. São minhas as melhores lembranças. A vizinhança assistindo e a gente ali, aprendendo a tocar o cavaquinho, depois o violão, o pandeiro e tudo de percussão que aparecesse”, recorda.

    “Só lembro que era a maior diversão para os vizinhos todos e para nós também, aqueles batuques e ensaios na porta de casa. Os vizinhos não reclamavam, não. Muito pelo contrário. Eles gostavam tanto que a brincadeira progrediu. Até que formamos o conjunto Os Filhos da Lua. Não sou tão saudosista, mas que tempo bom era aquele… Oh, que tempo bom…”

    Apesar de tantos sucessos que fizeram história na música de Minas Gerais nas décadas passadas, Jadir Ambrósio conta que nunca conseguiu viver somente do ofício em que é mestre aclamado por seus pares e pelo público que acompanhou sua trajetória desde os tempos de Getúlio Vargas, na década de 1930, época dos primeiros acordes com os irmãos e com os amigos mais próximos em frente à casa em que sua família morava, no Bairro Cachoeirinha.

    “Sempre fui um faz-tudo. Sou daquele tipo de gente que fez de tudo para sobreviver. Só não roubei e nem enganei ninguém”, conta, com orgulho. “Uma vez teve até uma história engraçada, se não fosse uma coisa muito séria. Lembro que eu voltava de um baile de carnaval no Centro da cidade em que tinha estreado um saxofone novinho em folha. Aquilo brilhava e eu voltava para casa andando a pé, suado, vestindo uma fantasia de bloco de sujos”, recorda, rindo muito do acontecido antes de contar como foi o desfecho da aventura.

    “E lá ia eu, fazendo mesura com o saxofone tinindo de tão novinho. De repente dou de cara com uma patrulha montada a cavalo, que me parou porque achou aquilo suspeito. Imagine um negro de roupas de molambo andando apressado, de madrugada, carregando um instrumento valioso como aquele e ficando assustado porque encontrou a polícia. Foi então que um dos policiais virou para mim e falou – se este instrumento é seu, moço, então toca para provar que é verdade”.

    Ele diz que o medo e o susto o deixaram paralisado, mas daí a pouco o coração voltou a bater compassado e a coragem o fez criar forças. “Aí a coisa mudou. Com aquele desafio do guarda, toquei e toquei com força. Mas com tanta força que os cavalos se espantaram e fugiram em disparada pela ladeira abaixo. Foi uma confusão e também uma lição para quem julgou apressado por puro preconceito”, conta, divertindo-se com a lembrança do susto dos policiais e com o desfecho inesperado que o caso tomou. 

    A Praça Sete, no centro de BH, fotografada na década de 1960.
     

    Samba e Aposentadoria

    Jadir Ambrósio lembra que em épocas diferentes, por necessidade, teve que trabalhar muito em situações e condições nem sempre boas: já capinou ruas, foi mecânico, ajudante de obras, escriturário, vendedor. “Depois de muitos anos, consegui me aposentar como auditor técnico de tributos da Prefeitura de Belo Horizonte”, recorda, lembrando de suas andanças pela capital que inspiraram uma de suas marchinhas preferidas, que fala sobre o antigo Bairro da Concórdia. 
     

                                           Minha Concórdia

                                           onde estão seus tamborins

                                           cadê suas mulatas

                                           minha escola tão querida…

    Entre uma e outra melodia dedilhada ao violão, ele também conta que nunca gostou de se apresentar em shows. “Gostava só no tempo do rádio ao vivo. Meu negócio sempre foi roda de samba, baile de carnaval e desfile de blocos”, revela. Entre seus planos para o futuro próximo está o lançamento de um novo disco, que será seu terceiro CD. “Estava tudo pronto quando adoeci e as coisas ficaram paradas. Agora preciso retomar o projeto e marcar o lançamento do disco, que até já está gravado, com canções inéditas e um ou outro sucesso do passado”, explica. 

    Segundo lhe disseram, o lançamento do novo disco depende apenas de alguns detalhes na conclusão dos trâmites burocráticos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. “Para mim, música é coisa da alma. Não vejo a música como um meio de vida. Aliás, nessa vida não posso me queixar de nada. Foi através de minha música que conheci muita gente do bem”, registra. Entre os compositores de Minas Gerais, sua preferência é pelos contemporâneos e conterrâneos Rômulo Paes, Gervásio Horta, Valdir Silva e os irmãos Saraiva.

    “Também tem o seu valor o trabalho de músicos de primeira que não são tão conhecidos, como o Serginho BH, o Fabinho do Terreiro. Das gerações mais novas, respeito muito o Paulinho Pedra Azul, que tem uma personalidade musical como poucos que conheci em tantos anos de carreira”, completa. Entre os compositores de outros lugares do Brasil, ele diz que um sempre chamou sua atenção e ganhou sua admiração desde a primeira audição, na década de 1960.

    “É o Paulinho da Viola. Que classe, que talento, que qualidade que impressiona a gente! Lupicínio Rodrigues também é um dos grandes, mas se a gente for falar da velha guarda a lista é interminável, porque tem muita gente boa que anda esquecida pelas novas gerações”, lamenta. “Comparar com os compositores de hoje em dia é impossível, porque cada música sempre traduz sua época. A diferença é que a boa música permanece na vida das pessoas mesmo quando passa o tempo”.

    LINK: http://semioticas1.blogspot.com.br/2012/02/antigos-carnavais.html

  2. Brasil

     

    Clara Nunes cantou um Brasil popular, negro e mestiço

    Silvia Brügger | Postado por Eduardo Marculino no blog História Viva

    A primeira música gravada por Clara foi composta por Jadir Ambrósio e Wilson Miranda

    Clara, ainda jovem, escapava para as cidades vizinhas a fim de se apresentar nas rádios. Na foto, ela aparece cantando na final nacional do concurso “A Voz de Ouro ABC”, em 1960

                                             Se vocês querem saber quem eu sou
                                             Eu sou a tal mineira
                                             Filha de Angola, de Keto e Nagô
                                             Não sou de brincadeira
                                             Canto pelos sete cantos
                                             Não temo quebrantos
                                             Porque eu sou guerreira

    Assim se apresenta Clara Nunes em “Guerreira”, música composta especialmente para ela por João Nogueira e Paulo César Pinheiro em 1978. Os versos resumem a imagem pública da cantora, uma das maiores intérpretes da música brasileira, falecida em 1983.

    Mas até assumir essa identidade ela trilhou um caminho de transformações pessoais e profissionais. Clara Francisca nasceu em 1942, em Paraopeba (atual Caetanópolis), interior de Minas Gerais. Sétima filha de Mané Serrador, folião de reis e violeiro famoso na região, ela conviveu desde pequena com manifestações típicas da cultura popular: folias, pastorinhas e congado. Ao ficar órfã de pai e mãe aos quatro anos de idade, foi criada por seus irmãos mais velhos José e Maria (a quem ela chamava de Dindinha). Além das brincadeiras comuns de cidade pequena, uma das diversões locais era organizada por um farmacêutico, que imitava os então famosos programas de calouros e de auditório em um teatro cedido pela fábrica de tecidos Cedro Cachoeira. Clara era presença certa nesses eventos, colecionando prêmios e elogios do apresentador, que a chamava de “menina dos meus olhos”.

    Ainda jovem, escapava até a cidade vizinha, Sete Lagoas, para se apresentar em programas de rádio. Não que esse comportamento já indicasse o futuro artístico que teria. Muitas meninas também se envolviam com o canto e outras formas de arte, como sua própria irmã Vicentina, que vivia às voltas com apresentações teatrais. Clara ainda não adotara o sobrenome Nunes da mãe, com o qual se consagraria artisticamente. Era apenas Clara Francisca, uma menina a se divertir com a música.

    A vida na cidade grande começou aos 16 anos, quando se mudou com alguns irmãos para Belo Horizonte. Foi morar no bairro Renascença, onde conseguiu emprego em uma fábrica de tecidos. No tempo livre, freqüentava as barraquinhas das quermesses da Igreja de Santo Afonso. E ali, cantando sem compromisso, seu destino cruzou com o do músico e compositor Jadir Ambrósio (1922-). Encantado com a voz da moça, Jadir fez questão de arranjar oportunidades para ela se apresentar em bares e nas rádios.

    O canto começava a ganhar ares de trabalho. Em 1960, já era conhecida como Clara Nunes quando venceu a fase mineira do concurso de rádio “A Voz de Ouro ABC”, cantando Vinicius de Moraes. Na competição nacional, ela ficou em terceiro lugar. Assim, Clara se projetou no cenário artístico mineiro. Foi contratada pela Rádio Inconfidência, gravando seu primeiro registro fonográfico no LP “Os Vibrantes 25 Anos da Rádio Inconfidência”. Cantou a música “Vida cruel”, de Jadir Ambrósio e Wilson Miranda. Em 1963, assinou contrato com a Rádio Guarani e com a TV Itacolomy, retransmissora mineira da Rede Tupi, na qual tinha um programa só seu. Era o “Clara Nunes Apresenta”, que vez por outra recebia estrelas nacionais, como Ângela Maria. Em 1964, foi coroada rainha do carnaval de Belo Horizonte.

    [video:http://youtu.be/yJJfm9QAo2A width:600 height:450]

    Mas quem sonhava em progredir na carreira artística tinha que se aproximar de um dos pólos da indústria cultural: São Paulo ou Rio de Janeiro. Clara Nunes mudou-se para o Rio ao assinar contrato com a multinacional Odeon. Seu primeiro disco, “A Voz Adorável de Clara Nunes”, saiu em 1966. A idéia da gravadora era fazer dela um “Altemar Dutra de saias”, numa referência ao “rei do bolero” no Brasil. Nos anos seguintes, seu repertório flertaria com diversos estilos. Cantava boleros, sambas-canções e versões de músicas estrangeiras, além de uma passagem efêmera pelo iê-iê-iê, rock brasileiro que fazia sucesso a partir do movimento da Jovem Guarda, capitaneado por Roberto e Erasmo Carlos. Chegou a participar, ao lado de Wilson Simonal, do filme “Na Onda do Iê-Iê-Iê” (1966), dirigido por Aurélio Teixeira. Gravou também sambas, sobretudo no LP “Você passa, eu acho graça” (1968), que, além do samba-título, de Ataulpho Alves e Carlos Imperial, trazia composições de Noel Rosa, Martinho da Vila e Darcy da Mangueira.

    Trabalho não lhe faltava: Clara cantava em rádios, em programas de TV, em filmes, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Fortaleza e em Minas. Mas o sucesso comercial demorou a chegar. Seu primeiro disco vendeu apenas 3.100 exemplares. O segundo, 6.900. O terceiro, 6.500.

    A virada começou nos anos 1970, quando passou a ser produzida pelo radialista Adelzon Alves (1939-). Ele era conhecido por seu programa “O Amigo da Madrugada”, da Rádio Globo, dedicado à divulgação do samba, mas nunca havia atuado como produtor de discos. O convite feito a ele pela Odeon indicava que se desejava dar novo rumo à carreira de Clara. Os ideais socialistas da época, de valorização da cultura popular brasileira como forma de superação das mazelas da sociedade capitalista e de resistência à dominação estrangeira, em especial à norte-americana, presentes na formação de Adelzon, nortearam, a partir de então, o trabalho da intérprete.

    Clara possuía em sua trajetória pessoal as vivências do universo popular que o produtor propunha valorizar em sua carreira. Ela percebeu que, parafraseando o samba de Xangô da Mangueira, “quando veio de Minas”, “trouxe ouro em pó”: o ouro representado pela cultura popular. A cantora se transformou, a partir de então, em uma verdadeira pesquisadora, procurando registrar as mais variadas manifestações dessa cultura. Em suas muitas viagens, levava um gravador para registrar as músicas que ouvia Brasil afora. A diversidade dessas tradições passa a aparecer no repertório: além de sambas, Clara gravou frevos, forrós, cantos de trabalho, cirandas e chulas.

    O gosto pelo folclore influenciou até seus compositores mais assíduos. Toninho Nascimento, parceiro de Romildo em muitas músicas gravadas por Clara, recorria a livros sobre cultura popular, como O Folclore de Januária, para se inspirar.

    As performances acompanharam a transformação do repertório da cantora. As interpretações se aproximaram do canto popular e os instrumentos de percussão ganharam destaque nos arranjos. A aparência da nova Clara era outra: vestia-se de branco, assumia progressivamente os cabelos crespos (abandonando as perucas do início da carreira) e exibia as guias de seus “orixás de fé”.

    O interesse pelo universo popular levou Clara a se aproximar da cultura afro-brasileira. No início de 1971 fez sua primeira viagem à África, visitando Moçambique, África do Sul e Angola, onde apresentou seu canto no primeiro concurso de miss do país e conheceu danças populares. De volta, trouxe na bagagem roupas, colares, peças de artesanato e muita inspiração para dar à África lugar de destaque em sua carreira.

    A idéia de filiação cultural do Brasil ao continente negro está presente em várias canções, como “Misticismo da África ao Brasil” (Mário Pereira/Vilmar Costa/João Galvão, 1971) e “Mãe África”, em que canta: “No sertão, mãe preta me ensinou/Tudo aqui nós que construiu/Filho meu, tu tem sangue nagô/Como tem todo esse Brasil” (Sivuca/ Paulo César Pinheiro, 1982). As músicas que Clara Nunes gravou se afinavam com o discurso de parte do movimento negro brasileiro, que crescia nos anos 1970 defendendo a resistência cultural e a valorização das raízes africanas como forma de lutar contra o racismo.

    Outro ponto importante dessa ligação de Clara com a cultura negra foi a questão religiosa. Ela não foi a primeira nem a única cantora a entoar o universo dos orixás. Mas esta associação foi tão forte que até hoje esta é a imagem que permanece na lembrança popular: vestida de branco, usando guias, com seus longos e volumosos cabelos crespos. A presença das religiões afro-brasileiras em seu repertório coincidiu com a expansão e o fortalecimento do candomblé. Processo no qual a música popular teve papel destacado.

    Mas a identificação de Clara com as religiões afro-brasileiras não era apenas artística. A religiosidade sempre fez parte de sua vida. De família católica, participou na infância da Cruzada Eucarística e cantou no coro da igreja. Na juventude, assumiu o espiritismo kardecista, junto com alguns de seus irmãos. No Rio de Janeiro, aderiu à umbanda e ao candomblé sem abandonar o kardecismo e mesmo, eventualmente, práticas católicas, como a participação em missas e o recurso à comunhão. Sua experiência religiosa sincrética, tipicamente brasileira, nada tinha de superficial. Pessoa de muita fé, lia sobre o assunto. Definia-se como espírita. Mas percebia que as continuidades existentes entre essas religiões lhe permitiam transitar por elas.

    Clara e Paulo César Pinheiro em 1977

    A religião era tão importante para Clara que ela conferia ao seu canto um sentido religioso. A música “Minha Missão”, composta por Paulo César Pinheiro e João Nogueira e gravada no LP “Clara” (1981), explicita isto: “Quando eu canto/Estou sentindo a luz de um santo/Estou ajoelhando aos pés de Deus”; “O meu canto é uma missão/Tem força de oração /E eu cumpro meu dever”. Mas o canto tem também um significado político: “Canto para denunciar o açoite/Canto também contra a tirania/ Canto porque numa melodia/Acendo no coração do povo/A esperança de um mundo novo/E a luta para se viver em paz”.

    Apesar dos pontos em comum, havia uma diferença entre a mensagem de Clara e o discurso de parte do movimento negro, de alguns intelectuais e pais-de-santo. Enquanto eles defendiam uma suposta “pureza” cultural africana, a cantora afirmava a mestiçagem. É o que se pode ver na música “Nanaê, Nanã Naiana”, composição de Sidney da Conceição gravada por Clara no LP “Alvorecer”: “Sinhazinha ninada, embalada no cantar da negra otina Nanaê/Herdou todo o seu ser/Hoje em noite de luana é sinhazinha/Quem vai dançar na Mujungana, Nanaê”. Se por um lado a canção sublinha a exploração sofrida pela escrava Nanaê, por outro mostra como a cultura africana é incorporada pela sinhazinha branca ninada por ela. Herdeira do ser africano, essa criança é uma representação do próprio país.

    Em Clara, a afirmação do Brasil negro convive com a idéia do Brasil mestiço. Isso fica evidente nos próprios títulos do disco e do espetáculo “Canto das Três Raças”, respectivamente de 1976 e 1977, do LP “Brasil Mestiço”, de 1980, e do show “Clara Mestiça”, de 1981. Para ela, a mestiçagem não era sinônimo de síntese, não anulava as diferenças. Isso explica por que rejeitava o rótulo de “sambista”, mesmo tendo forte ligação com o mundo do samba, em especial com a Portela, sua escola do coração. Intitulava-se uma “cantora popular brasileira”. Cantava diferentes gêneros de nossa música, mostrando a diversidade cultural do Brasil mestiço.

    A mestiçagem também não era associada por ela a uma suposta harmonia racial. Pelo contrário, o canto de Clara explicita os conflitos. Várias músicas de seu repertório denunciam situações de exploração e de desigualdade social, do passado escravista ao cotidiano árduo dos trabalhadores e às agruras dos nordestinos que convivem com a seca – “Ê, vida de cão!/ Trabalha e nunca tem nada não/ Danação!/ Arrancando o couro pro patrão” (“Cinto Cruzado”, Guinga/ Paulo César Pinheiro, 1982).

    Cantar este Brasil popular, mestiço e negro foi o que Clara entendeu ser a sua missão. Por isso, o seu ofício era de natureza religiosa. O seu canto era de fé!

    Silvia Brügger é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João Del-Rei e organizadora do livro O canto mestiço de Clara Nunes (UFSJ, 2008).

    Informações e imagens:

    http://historianovest.blogspot.com.br/2009/02/canto-de-fe-clara-nunes.html

    http://entretenimento.r7.com/blogs/carmen-farao/clara-nunes-claridade-28042014/

    Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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