Na cama com o patriarcado, por Patrícia Mannaro

Cultura faz da mulher um objeto de satisfação masculina, legalizado muitas vezes pela lei

Jornal GGN – No artigo a seguir, Patrícia Mannaro, Secretária Executiva na Diretoria da Aliança Nacional LGBTI, destaca para os feitos deletérios da cultura patriarcal na sociedade, reduzindo o direito da mulher inclusive ao prazer no sexo, para impedir qualquer desconforto à satisfação do homem, lembrando que, enquanto a impotência masculina é vista socialmente como um sério problema, a impotência feminina “beira a invisibilidade social”.

No campo do direito, Mannaro alerta que a cultura do patriarcado “se desenvolve num binômio submissão/exploração intolerante e inflexível, fazendo da mulher o objeto de satisfação masculina, legalizado muitas vezes pela lei”, deixando claro, no entanto que o patriarcado não se resume ao homem, mas está imbricado em um sistema na qual mulheres fazem parte também, alimentando discursos misóginos e julgadores, perpetuando a violência contra o próprio gênero.

Justificando

Na cama com o patriarcado

Por Patrícia Mannaro

Já transei com mais de 206 milhões de pessoas!

Da próxima vez que me perguntarem com quantas pessoas já fui para a cama, serei honesta, faço sexo com mais de 206 milhões de pessoas ao mesmo tempo e você também.

Nossa sociedade é invasiva, e se você é mulher, a situação é ainda mais segregadora, somos criadas com tantos dogmas, moralismos e tabus, que é quase impossível ir para cama apenas com quem se deseja. A sociedade dá um jeito e muitas vezes se joga no lençol, se instala entre suas pernas e julga seu orgasmo, seja ele heterossexual, homossexual, transexual, não binário, não importa, seu gozo não é livre.

Como se não bastasse toda uma comunidade invadir sua cama e te violar continuamente sem sua permissão ou com seu consentimento, já que não consegue reagir, tendo em vista o meio social em que foi inserido, o patriarcado impõe uma espécie de código da mulher honesta, que, além de castrador e discriminatório, chega a ser imoral.

Você já fingiu um orgasmo?

E antes que alguém venha com a famosa frase “homem não consegue fingir”, refaço minha pergunta: homem, você abriria mão de seu prazer de “macho alfa” e de seu falo para satisfazer sua parceira? Substituiria o pênis, pela língua e ou dedos se ela pedisse, sem se sentir “menos homem”? Nossa sociedade não consegue diferenciar o termo “macho” do significado real de “ser homem” e continua dando ao pênis um lugar social que de fato ele não deveria ocupar.

Infelizmente, muitas mulheres fingem o orgasmo para não decepcionar o parceiro, como se orgasmo fosse mais um “prêmio” de satisfação para o outro do que seu próprio prazer.

Finge porque não estava a fim, mas faz sexo para não decepcionar o companheiro ou porque se sente obrigada, afinal, ele é homem.

Dissimula prazer, porque ele, mesmo depois de anos, ainda não aprendeu a tocá-la, mas por ser homem e ela mulher, acredita que nasceu sabendo e não aceita uma ajuda sutil ou é agressivo quando a companheira tenta demonstrar.

Enfim, a mulher finge orgasmo por tantos motivos que descrever e esgotar as possibilidades é praticamente impossível.

Será que, se fosse fisicamente possível, a grande maioria dos homens permaneceriam casados sem ter um orgasmo e fingindo diariamente apenas para agradar a mulher? Tenho plena certeza que a resposta seria negativa. O patriarcado se desenvolve num binômio submissão/exploração intolerante e inflexível, fazendo da mulher o objeto de satisfação masculina, legalizado muitas vezes pela lei.

E aqui, quero deixar algo claro, o patriarcado não se resume ao homem, ou a relacionamentos heteroafetivos, é uma construção social da qual mulheres também participam e contribuem com discursos misóginos e julgadores, incitando esse veneno social e alimentando exclusão da equidade de seu próprio gênero.

O que você acha da impotência sexual?

Quando pensa no assunto, em algum momento lhe vem a imagem de uma mulher, ou você automaticamente imagina um homem?

A impotência masculina é vista socialmente como um problema sério e muito maior do que a impotência feminina, que beira a invisibilidade social.

E antes que alguém fale, “o homem é importante para a proliferação da espécie”, vamos tirar esse argumento patriarcal da boca e lembrar que o espermatozoide não tem capacidade individual de formar um zigoto, ele precisa do óvulo, do útero, ele precisa da mulher para sobreviver. Então, por que continuamos dando ao homem o poder social supremo de aumentar a espécie e a mulher a exclusiva responsabilidade em criar?

Você já se masturbou hoje?

Talvez um dos mais marcantes apontamentos sobre sexualidade de uma sociedade patriarcal seja a masturbação. A sociedade é tão castradora, quando se trata do prazer feminino, que até num ato individual, resolve estabelecer impedimentos morais e sociais que são incutidos na cabeça da menina desde muito nova.

O prazer autodedicado é estimulado aos meninos desde cedo, enquanto as meninas crescem em meio a um tabu social. Muitas garotas são repreendidas ao se tocarem ainda na idade impúbere, enquanto os garotos são liberados para terem acesso a uma infinidade de particularidades sexuais. Além de serem educados (para) que não precisem controlar seus impulsos sexuais, o que cria um permissivo social vergonhoso, perigoso, irresponsável e latente para o desenvolvimento da Cultura do Estupro, que vivemos diariamente.

Mulheres crescem muitas vezes sem conhecer seus próprios corpos ou possuem vergonha do próprio prazer, reprimidas sexualmente, infelizes dentro da satisfação de sua sexualidade, casam, se submetem aos prazeres do “macho alfa”, fingem orgasmo, viram reprodutoras sociais sem direitos sobre o próprio corpo e permanecem caladas, porque lhes é ensinado que sexo é assunto de homem.

Enquanto aos homens é aceitável o abandono paternal, a misoginia, a imposição de suas vontades perante o corpo, o trabalho e a liberdade de expressão das mulheres, inclusive sobre sua própria governabilidade.

Quantos vídeos pornôs são feitos para mulheres? Até vídeos de pornô lésbico são desenvolvidos dentro dos padrões dos fetiches masculinos. Inúmeras são as revistas dedicadas ao ato masturbatório masculino.

As mulheres não possuem aceitação sobre a liberdade de sua sexualidade dentro de uma sociedade patriarcal. E a busca por essa igualdade sexual impinge à essas mulheres rótulos sociais ofensivos e degradantes, como se mulher decente fosse sinônimo de mulher castrada, mulher virgem, mulher recatada e do lar.

Homens falam abertamente do famoso “cinco contra um”, no entanto, quantas mulheres adultas conseguem assumir sem vergonha que praticam o ato da masturbação ou a “siririca”? O assunto é tão velado que até mesmo em roda de amigas é mais fácil surgir uma conversa sobre sexo em grupo do que a confissão da realização do prazer individual.

Se eu me masturbo? Claro que sim, e adoro!

“Prende sua cabra que meu bode está solto”. Tenho uma filha de 7 anos e não importa se é bode ou cabra, ela continuará solta, porque o maior legado que posso dar a ela é o direito de ser livre.

A mulher é educada e criada para satisfazer a lascívia masculina, não lhe sendo permitido a negação sexual, como se seu prazer fosse inferior, diante da “grandeza” de um mastro rijo. Será que os homens sabem que clitóris também tem “ereção”? E quantas mulheres sabem disso?

Quantas conhecem o mecanismo do próprio corpo? Quantas de nós se sentem libertas para realizar fantasias ou pedi-las? Quantas quebram o tabu da vergonha e pedem ao parceiro que ele literalmente “caia de boca”? No entanto, o homem não sente qualquer bloqueio em pedir e às vezes até mandar a parceira lhe fazer uma “chupeta”.

Existem homens que não conseguem achar o clitóris nem se ele piscar verde fosforescente, e isso não é ser “ruim de cama”, é reflexo social, ele simplesmente não se importa.

E vamos combinar, seja parceiro ou parceira, nada melhor que um bom e delicioso sexo oral, sem vergonha, sem pudor! Afinal, o sexo vai muito além de uma básica penetração. O prazer nem de longe depende dela. Muito “macho alfa” ainda não aprendeu que existe mundo além do falo.

Esse texto, embora heteroafetivo, é extensível às relações homoafetivas, pois a sociedade é patriarcal e isso também atinge a homens gays, mulheres lésbicas, pessoas bissexuais, transexuais e não binárias, que também podem sofrer um relacionamento abusivo em face a estrutura social em que foram criados, afinal, não falamos apenas de sexo, falamos de comportamento de uma sociedade doente e castradora.

Senhor patriarcado, a sexualidade e o sexo não se resumem ao órgão sexual, mas, se assim fosse, nossa vagina não é menos importante que vosso pênis e nosso gozo, pertence exclusivamente a nós e a quem escolhermos para isso!

Meu corpo, minhas regras!

Patrícia Mannaro é Procuradora Municipal. Secretária Executiva na Diretoria da Aliança Nacional LGBTI. Membra efetiva da Comissão de Direitos Humanos – OAB/SP. Membra efetiva da Comissão de Criminologia e Vitimologia – OAB/SP. Integrante da Rede Feminista de Jurista – DeFEMde.

*A autora escreve o texto baseada em posicionamentos pessoais e desvinculados das entidades que integra.

Redação

2 Comentários

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  1. SEM BIGODES

    Patrícia,

    O maior desafio de qualquer ser é conviver com seus pares. Na natureza, alguns são pares (casais) para a vida toda e por força das obrigações naturais de reprodução e pela compatibilidade com o meio vivem felizes e transmitem essa convivência  feliz para seus descendentes,

    Mas, como disse, somente alguns. Os humanos, que agem mais como uma doença na natureza, dado o seu grau de destruição e falta de predadores, não fazem parte desse grupo feliz.

    Por quê?

    1º porque não acham que fazem parte da natureza. aliás, da formiga ao leão, todo o predador que se reproduz vorazmente consumindo o entorno se acha o único ser digno de sobrevivência.

    2º porque têm a ilusão de que a vida é uma invenção sua(dele),  e para o seu desfrute , especialmente o macho humano.

    Agora eu digo pra você, os homens são tão ou mais infelizes nesse relacionamento, com a diferença de que eles não se queixam, eles reagem.

    Todo homem odeia saber que não pode dar a vida e que deve nascer de uma mulher. Essa é a impotência insuperável do homem. Por isso ele inventou Eva, Pandora e outros mitos colocando-se mãe da mulher, que teria sido parida de sua costela ou trazido mal ao mundo com a sua presença. Imagina ele que o mundo, antes da mulher era feliz.

    Então imagine você um mundo só de homens, como eles eram felizes!

    É fato que a mulher por si pode reproduzir-se (veja o experimento Dolly) clonando-se com a sua própria carga genética, e que o espermatozóide é só um facilitador que tem por função perfurar o óvulo e provocar a divisão automática das células levando uma carga genética. Por certo se não existir o espermatozóide as mulheres continuarão a procriar.

    Se não existirem as mulheres, os homens terão que ser paridos pelas bestas pois que o princípio que os homens desconhecem,  o princípio da vida, o feminino, materializado na mulher ou na besta, é o princípio que o homem não tem, seja, o princípio da vida. Ele, por inveja inverteu tudo e usurpou o poder da vida subjudando-o à sua vontade.Tudo o que é feminino é tido como negativo, fraco, feio e detestável. Bom, a vida , a natureza, as flores, a água, essas coisas femininas que o homem quer encontrar pronta, assim como quer a casa arrumada quando chega, é obrigação negativa, pano de fundo para o princípio destruidor da morte, da miséria e da destruição que o masculino tem e que ele representa.

    A mulher faz o homem, traz o homem e o homem não faz a mulher.

    XX+XX= xx

    XY+XX= xx ; xy 

    YY=0

    O homem nasce mulher e só após um determinado período de gestação tem o seu sexo definido e o fator Y é quem define o masculino na reprodução.

    A mulher é mulher sempre, como força estável e contínua e o homem é homem de vez em quando, só, na verdade, 

    quando em estado de ereção, que é o que lhe dá a impressão de poder. Mas, como tudo o que sobe tem que descer, ele se vinga desmerecendo a mulher, e ela, (estupidez hormonal, suponho) por amor, tolera, aceitla, tenta mudar. A mulher, assim representada pelo mito de Sophia, acredita que o homem tenha salvação, possa mudar  e transformar-se em alguém equilibrado e pacífico.

    É ruim pra todo mundo. Há homens pacíficos e equilibrados, há mulheres belicosas, há raras pessoas felizes convivendo com as outras e suas respectivas sexualidades, mas o interesse externo de  adquirir poder  e domínio sobre os semelhantes alimenta essa dissensão por tempos imemoráveis.

    Sobre sexualidade:

    A pessoa mais apta a satisfazer a sexualidade feminina é ela mesma.

    Quando a mulher aprender a não confundir amor com sexo ou fazer sexo com a ilusão de alcançar amor,

    ela não precisará mais fingir pra ninguém.

    Segundo a bíblia e outros livros “sagrados” , a mulher existe para o prazer do homem. Tanto que alguns países tem o saudável hábito de mutilar o clitórios das meninas em tenra idade e costurar-lhes as vaginas, para garantir que elas jamais venham ter prazer sexual na vida. Descosturadas pelos maridos quando vendidas para o casamento, vão do estupro à reprodução com cerimônias.

    Ora, Patrícia, o que hoje parece infame, acontece no profundo nordeste do país quando se casa uma filha sem lhe dar educação sexual (sem a mutilação, esperamos), e foi lei até um dia destes, quando finalmente o marido não podia mais devolver a mulher se ela não fosse mais virgem.

    Agora eu lhe pergunto, se o prazer sexual fosse tão importante para a mulher era teria sobrevivido até hoje nessa condição?

    Se o homem não conhece prazer maior que o sexual, a mulher sim, e se puder juntar aos prazeres superiores que alcança o prazer sexual também, tanto melhor, e se sentir vítima não é um prazer. Sentir raiva, não dá prazer, se opor ao evidente e reiterado machismo com palavras, não dá prazer. A liberdade pessoal da mulher é responsabilidade dela.

    Cada uma resolve o que deve fazer para ser livre. Se não quiser dar vida ao homem; se não quiser se casar; se aprender a ser feliz a despeito dele; se quiser ser feliz, casar-se com ele , ter filhos, ela decide e não reclama. 

    A ela eu só aconselho o que a mim aconselho, independência emocional. As outras independências são consequentes.

    Todos nós existimos por escolha de uma mulher.

     

  2. “Cultura faz da mulher um

    “Cultura faz da mulher um objeto de satisfação masculina….”

    Pensamos que íamos ler alguma coisa nova sobre o assunto.

    Mas, como o que faz boa parte das mulheres, não todas, serem objetos de satisfação sexual masculina são essas próprias mulheres e não uma cultura, não lemos o resto.

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