Na França, fantasmas da falsificação histórica, por Paulo Moreira Leite

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Paulo Moreira Leite

Enviado por Rpv

Alvo de uma política permanente de segregação e violência, muçulmanos franceses agora são apresentados como ameaça à segurança e ao progresso de seu país

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Antes de completar uma semana, a justa indignação diante do assassinato dos profissionais da revista Charlie Hebdo pode transformar-se num espetáculo inesquecível de falsificação histórica.

Submetidos a um longo passado de segregação, preconceito e violência, os 6 milhões de franceses que seguem a religião muçulmana agora são apresentados como a principal ameaça à segurança e ao progresso de seu país. Saudadas como reivindicações legítimas por várias décadas, suas aspirações a uma vida menos desigual, sem exclusão, passaram a ser vistas como inconvenientes e perigosas.

O fantasma do “radicalismo muçulmano” ganhou um reforço ontem, quando se anunciou que cinco mil soldados foram deslocados para garantir a segurança de escolas judaicas. Falando de Paris, um radialista afirma que a polícia estima que 1400 jihadistas armados se encontrem na França.

Como acontece em qualquer outro país, os franceses só teriam a ganhar se utilizassem episódios obscuros de sua história para refletir sobre os perigos da vida presente. A perseguição ao capitão do Exército Alfred Dreyfus, que em 1895 chegou a ser aprisionado a ferros ao sol da Guiana sob a falsa acusação de traição a patria, ajuda a lembrar os riscos de permitir que o preconceito oriente decisões da política e da Justiça. Dreyfus foi reabilitado em 1906 mas em 1940, quando as tropas de Hitler entraram em Paris, a mesma multidão que pressionou pela  condenação do capitão judeu dava sustentação ao governo colaboracionista do Marechal Petain.

De maior utilidade nos dias que correm, o mais prolongado conflito entre franceses e muçulmanos — naquele tempo eles eram chamados de “árabes” — foi a Guerra da Argélia. Prolongou-se por oito anos, entre 1954 e 1962 e deixou lições dolorosas para um país que, em outras épocas, teve pleno direito de dar lições de democracia e liberdade ao conjunto de homens e mulheres do planeta, independente de classe, raça ou nacionalidade. Suas lições são preciosas e surpreendentes.

Invadido e conquistado em 1830, por mais de um século o território argelino foi destinado a colonos franceses que se mudavam para o norte da África em busca de uma vida melhor. Em 100 anos de atividade colonial naquele lugar as áreas cultiváveis em poder dos franceses e seus descedentes passaram de 11.500 hectares para 2,7 milhões, concentração que expressa a divisão da riqueza e, entre outras coisas, estimulou as primeiras levas de imigração nativa para o outro lado do Mediterrâneo. Nas imensas áreas recém-conquistadas, agricultores de origem francesa plantavam na colonia e vendiam, na metrópole, “os frutos da terra roubada,” como definiu Jean-Paul Sartre, uma das grandes consciências da França no período, autor de reflexões de grande utilidade sobre o tema — como você verá em outros parágrafos desta nota. Como se pode imaginar, a cobiça cresceu um pouco mais depois que se descobriram as imensas reservas de petróleo.

Em 1945, num primeiro levante contra os ocupantes franceses, uma massa calculada em até 70 000 pessoas foi massacrada em Létif. “Exterminando a esse subproletariado, (os franceses) se arruinaram a si mesmos,” disse Sartre, sem deixar de observar que a tragédia ocorreu “no momento em que ia nascer o Tribunal de Nueremberg,” aquele que julgou os comandantes de Adolf Hitler.

Nove anos depois, quando os revolucionários da Frente de Libertação Nacional anunciaram que “a longa noite de colonialismo terminou”, o então ministro do Interior, François Mitterrand — socialista como François Holland — pronunciou uma frase inesquecível: “A Argélia é a França. Quem entre vós hesitaria em empregar todos os meios para salvar a França?”

Nenhum meio foi recusado mas nada se salvou — nem a vergonha. Incapaz de aceitar a ideia de que seria impossível  vencer os argelinos em sua própria terra natal, em vez de negociar um acordo de paz o governo decidiu prosseguir a guerra de qualquer maneira — alimentando um orgulho que não poderia sustentar.  Inconformado com uma derrota colonial anterior, para os guerrilheiro de Ho Chi Minh na Indochina, o comando do Exercito  decidiu abandonar os métodos de guerra convencional e, com o objetivo de dizimar as organizações revolucionárias, adotou a  tortura como método preferencial de interrogatórios,  exatamente como se pode ver na obra prima A Batalha de Argel.

Os militares franceses não inventaram a tortura, conhecida há muito tempo. Mas ajudaram a generalizar o procedimento. Desenvolveram técnicas, aperfeiçoaram métodos, inovaram — inclusive através do assassinato e desaparecimento de prisioneiros, que nunca poderiam ser localizados nem  identificados. Tampouco teriam seus restos mortais devolvidos aos familiares, exatamente como seria feito, duas décadas mais tarde, na Argentina, no Chile e no Brasil.

Num depoimento à jornalista Marie-Dominique Robin, autora de “Esquadrões da morte: a escola francesa”, o general Paul Aussarenesses fala em 3.000 desaparecidos — um número brutal, equivalente a um milionésimo da população total da Argélia, hoje. Apesar da tortura, logo ficou clao que a luta dos argelinos iria prosseguir — com mais força, mais dura.

Convencidos de que o governo civil, em Paris, tornara-se fraco demais para assegurar a vitória, os generais do comando militar na Argélia não hesitaram mais uma vez: deram um golpe de Estado, levando o general Charles De Gaulle de volta ao governo.

Num mundo onde a luta anti-colonial estava em vário pontos do mapa da África, Asia, na América Latina, a nova especialidade tornou-se muito procurada. Em pouco tempo a Escola Superior de Guerra, em Paris, passou a oferecer cursos para oficiais estrangeiros, revela Ceferino Reato, autor do livro “Disposición Final,” dedicado a esclarecer a máquina de morte da ditadura Rafael Videla, na Argentina. Sob supervisão de oficiais formados nos interrogatórios de Argel, logo apareceram alunos de outros países, “portugueses e israelenses, ” escreve Reato. Em 1960 — a guerra nem havia terminado — o esforço para exportar esse tenebroso conhecimento se ampliou.

Oficiais franceses estabeleceram uma missão permanente em Buenos Aires, no décimo segundo andar do Edifício Libertador, sede do Exércio, ao lado da Casa Rosada, palácio presidencial argentino, o que permite concluir que o aprendizado na Argélia ajudou a construir a mais violenta das ditaduras do ciclo militar sul-americano.

Em outubro de 1961, quando estava claro que a derrota do império colonial francês caminhava para a derrota definitiva,  a polícia decidiu dispersar por todos os meios um protesto de 30 000 argelinos, em Paris. Ocorreu uma matança. No dia seguinte, dezenas de cadáveres foram vistos boiando pelo Senna. No início de 1962, quatro meses antes do acordo de paz,  os chefes militares providenciaram outra inovação: a anistia para seus crimes, ideia que em 1979 seria importada pelos militares brasileiros. Aprovaram uma medida que envolveu “todos os fatos cometidos no marco das operações de manutenção da ordem dirigidas contra a insurreição argelina.” Graças a essa decisão, antigos oficiais-torturadores seguiram carreira acadêmica, enquanto outros se converteram à vida parlamentar. Jamais foram processados — como ocorreu com seus colegas brasileiros.

O coronel Marcel Bigeard, que na Batalha de Argel ensina seus homens a maltratar prisioneiros, terminou a carreira como um dos oficiais mais condecorados da história da França e chegou a ministro da Defesa. A doutrina para a guerra contrarrevolucionária, eufemismo para o ensinamento de técnicas cruéis de interrogatório, passou a ser ensinada e exportada de maneira oficial, ainda que discretamente, com base em acordos bilaterais de assessoramento. Quando a paz foi feita entre Paris e Argel, o ambiente era de guerra e loucura entre franceses. Através de uma organização secreta, oficiais tentaram assassinar De Gaulle.

Descrevendo um império que desabava, Sartre deixou um retrato daquele processo histórico, em que as duas partes só conseguem se prejudicar: “quando o colonialismo está prestes a se arruinar, a metrópole e a colonia são vitimas de seu enfraquecimento. Na tentativa de manter a colonização, a metrópole perde tudo o que foi lucrado com o sistema. E a colonia se enfraquece demasiadamente por causa da violência dos colonizadores.”

Sartre se referia à França e à Argelia, mas também poderia estar falando da colonia francesa do Haiti. Dois séculos antes, em 1789, quando os revolucionários de Paris anunciaram os Direitos do Homem, os escravos da América Central se levantaram para exigir o fim do cativeiro. Foram massacrados.

Também seria possível referir-se a derrota da Indochina, futuro Vietnã — de onde vieram Jean-Marie Le Pen e o discurso do ressentimento contra estrangeiros, base do fascismo que agora cresce na França.

Filho de uma professora que tinha uma admiração especial pela cultura francesa e uma imensa vontade de conhecer Paris, oportunidade que a vida não lhe ofereceu, cresci ouvindo Edith Piaf. Assisti aos filmes de Jean-Luc Godard na idade certa e acompanhei, de longe, o fogo do maio de 1968. Conheci dezenas de exilados brasileiros que encontraram refugio na Franças, durante a ditadura militar. Vivi dois anos em Paris como correspondente e, graças ao ambiente cultural da cidade, na época, encontrei a oportunidade de reconstruir a formação que trazia do Brasil.

Três décadas depois, é razoável perguntar qual opção o governo de François Holland  irá  tomar   diante de um atentado que merece repúdio universal –mas não pode ressuscitar assombrações de seu próprio passado.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

11 Comentários

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  1. Ou seja, segundo o

    Ou seja, segundo o articulista, a luta de independência da Argélia não foi uma questão colonialista, mas uma luta entre muçulmanos e ocidentais? Só rindo mesmo.

    A França deve aguentar calada ataques terroristas de grupos radicais islâmicos por conta de seu passado imperialista?

    O autor poderia indicar como é de que forma cidadãos de religião muçulmana franceses estão sem direitos no citado país.  Se falasse de gente que entrou clandestinamente vá lá. Ele pode fazer isso?

    Por fim, em trecho reclama que os alvos possíveis de grupos radicais islâmicos recebam proteção policial ou militar. Obviamente quem está em perigo de atentados não são judeus, jornalistas, etc, mas famílias de muçulmanos, pelo que ,se viu até agora, já que na cabeça do sujeito os atentados devem ter partido da direita francesa que sequer está no poder.

    Grupos radicais que apelam para a violência são os reais inimigos. Se eles possuem cor e matiz religiosa tanto pior, porque se fazem autorizados por força divina a assim agir. Quem escreve coisas que relativizam o crime e justificam o terror são tão colaboracionistas quanto o governo de Vichy,  uma nódoa da história francesa.

  2. Ser lembrado e analisado…..

    “De pronto, a mesma e sempre estratégia adotada:

    –  o que Hitler fez ao enunciar a ameaça do bolchevismo judeu para “justificar” suas perseguições? Primeiro, denuncia-se uma grande ameaça; depois, problemas são associados a essa ameaça; espalha-se o medo e, por fim, surgem as soluções “firmes” – normalmente aquelas que não imaginamos que pessoas boas seriam capazes de oferecer, tamanha a dureza necessária:

    “Mulçumano bom é mulçumano morto”, fazendo um trocadilho, e novas lideranças (führer) aparecem. Mas o problema é que as ameaças enunciadas nunca se esgotam (se se constrói uma nova ameaça), porque elas se tornam fundamentais para sustentar o papel da “solução”.

     No esteio de uma sociedade desigual, apartada, inclusive geograficamente, surge o avatar do “terrorista” – inimigos são criados,  não por acaso onde ele terá menos chance de contestar seu papel. Basta algum determinismo cínico, e pronto: atribuem-se características comportamentais e ideologicos a certo tipo de etnia, e isto basta para consolidar  um aparthaid. Algo que fazemos até sem perceber, pois a midia diuturnamente direciona seus canhões para formar um pensamento único (Sou Charlie), e todos que nem vacas de presépio abanan suas cabeças e assimilam o slogan. Segundo essa lógica, o sujeito que nasce em determinado lugar, ou segue uma detgerminada crença,  passa a ser entendido como de comportamento X.

    Não teria o jornal Charlie Hebdo, cumprido o exato destino de ser uma caricatura do que a sociedade francesa elegeu como os problemas sociais de um país que, conforme mostra o artigo, já vem de longe?

    A construção de “inimigo comum” se vê também na difamação perpetrada ao longo de anos ,seja contra, cristãos, judeus e mulçumanos, o que no consciente coletivo, já era considerado com naturalidade.

    Já sabemos, pela memória histórica, aonde essa lógica vai dar: nos guetos, campos de concentração e paredões de fuzilamento de seres humanos.”

    Esperemos que tal barbárie, seja lembrada não só como tal, mas também o começo da desconstrução desta lógica perversa, que cria no imaginário das pessoas um inimigo a se combater. Pensem nisto !!!!

    (Adaptação do artigo de Jean Wyllys – publicado 12/01/2015 em Cartra Capital.

        registrado em:   

    Comentários

     

  3. esse alerta é importante:
    não

    esse alerta é importante:

    não podemos aceitar a revivescencia de assombrações

    provenientes dos entulhos do passado.

  4. O esquerdismo boçal de PML

    O que me espanta é a argumentação com fatos de 1830 (inicio colonização da Argélia muçulmana) ou de 1895 (caso da injusta acusação ao militar de ascendência judia Alfred Dreyfus). Todos os erros e atrocidades cometidas por gerações passadas, sem qualquer desconto, atenuantes ou considerações de época, contexto, estágio civilizatório, etc, são debitados aos franceses de hoje. E com que finalidade? Para justificar o bárbaro assassinato de 17 cidadãos franceses cometido por fundamentalistas primitivos que usufruiam do ecumenismo frances, das regalias econômicas, do bem estar social, etc. 

    Será que o Paulo Moreira Leite justificaria a ação hipotética de um grupo judeu fuzilando crianças numa escola qualquer a pretexto de vingar os crimes nazistas cometidos ou consentidos por seus avós e bisavós há 60 ou 70 anos? 

    Será que o Paulo Moreira Lima aplaudiria algum tipo de ação de vingança de afrodescendentes contra os nem tão brancos brasileiros por conta da estúpida escravidão mantida por portugueses entre 1700 (+-)  e 1888?

    As burrices de ontem; de autoridades, de governos, de lideres religiosos são fatos da história. Mas para o Paulo Moreira Leite são muletas para justificar o injustificável e constranger ou desqualificar a indignação das pessoas racionais.

    1. Você leu o artigo mesmo?

      O autor não quis ‘justificar coisa alguma, mesmo porque a ‘justificativa’ é simples, os caras eram radicais e portanto impermeáveis à lógica, bom senso e às suras (ou trechos específicos do Corão) que condenam suas ações de antemão.

      O que ele quis apresentar foi um histórico da complicada relação da França com a Argélia, tão complicada que mesmo nos dias de hoje pode causar confusão tentar falar sobre certos pontos negativos dessa relação (incluindo alguns tratados no texto), e que não ‘explica’ ou ‘justifica’ ou ‘atribui’ nada do que aconteceu semana passada ao passado dos franceses de hoje.

      Aliás, que ‘contexto histórico’ ou ‘estágio civilizatório’ explicaria policiais franceses espancando manifestantes que se atreveram a ir protestar pacificamente pela independência de seu páis (ou páis de origem de seus pais em vários casos), e depois jogar centenas deles no rio Sena com as mãos amarradas ou algemadas atrás?

      Nenhum, também.

    2. As vítimas agora, são franceses…

      Para que sem o menor conhecimento da História brasileira, transforme 350 anos de regime escravocrata em “meros” cento e oitenta e poucos anos, os fatos históricos, por mais hediondos que se tenham caracterizados, passam a ser pequenos detalhes de um passado a ser esquecido.

      Deve ser porque as vítimas, agora, são cidadãos franceses, pertencentes à elite da Civilização Europeia, e não mais a escumalha, formada por argelinos. Não é isso, grande “estoriador” (assim mesmo senhor revisor). 

  5. O mundo dá voltas

    Ontem os judeus eram perseguidos e exterminados pelos europeus. Hoje, judeus e cristão são aliados e cresce o ódio em toda a Europa aos muçulmanos. Se já era ruim antes, vai ser cada vez mais difícil para alguém carregar um sobrenome árabe, que sepre levantará a suspeita de trazer o estigma de terrorista. Será, que Isso pode chegar aqui também, Nassif?

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