O caos no Espírito Santo e o sistema de segregação dos indesejáveis

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O caos no Espírito Santo e o sistema de segregação dos indesejáveis

por Marcos Correa

Especial para o GGN

A situação de aparente normalidade nas ruas da capital Vitória e outras cidades capixabas contrasta com uma cicatriz mais profunda que se forma no campo da segurança pública nacional. Enquanto a paralisação ilegal das atividades de policiais militares no Espírito Santo, apesar de sufocada pela pressão dos governos estadual e federal, chega ao 16º dia, a atuação das Forças Armadas e o risco de contágio para outros estados reforçam um cenário de ebulição que a crise nos presídios já expunha de modo escancarado desde os primeiros dias do ano.

Se, por um lado, a falta de interesse do governo no diálogo, o elevado poder de pressão das forças policiais e a ausência de um plano nacional efetivo de segurança pública podem ajudar na compreensão do que hoje ocorre nas cidades capixabas, por outro, a lógica da atuação das forças coercitivas estatais sobre uma massa de excluídos da sociedade em um cenário de paz armada desenha o permanente pano de fundo de um dos problemas crônicos brasileiros e evidencia a profundidade de uma crise que não é circunstancial.

A avaliação é de Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do estudo “Causas e Consequências do Crime no Brasil”. Em entrevista a este portal, o especialista analisa o que está por trás dos acontecimentos recentes que levaram o Espírito Santo a uma onda de 143 homicídios em nove dias, seus desdobramentos sobre as politicas públicas que ajudaram na redução dos índices de violência no estado ao longo da última década e o contexto em que o episódio se insere no quadro da segurança pública nacional.

Confira os destaques:

O que fez do Espírito Santo o primeiro palco dessa crise?

O desencadear dessa crise está relacionado a um equilíbrio precário do contrato social, já que temos uma grande massa de pessoas excluídas. Nesse caso, a força coercitiva tem o papel crucial de manter a aparente paz, pelo menos nas áreas mais nobres das cidades. As polícias atuam como último biombo para separar os “indesejáveis” (os pobres, negros, pessoas de baixa escolaridade, moradores de periferia) da elite. No momento em que se levanta esse biombo, como aconteceu no Espírito Santo, é um “Deus, nos acuda”. Uma simples ameaça já provoca pânico geral, como aconteceu no Rio de Janeiro agora.

As forças policiais têm grande poder de pressão sobre os governadores. A regra geral é que, toda vez que surge uma demanda assim, os governadores ficam reféns e geralmente cedem. No Espírito Santo, faz três anos que os policiais não têm reajuste. Se não há diálogo, precipita-se uma ação mais grave.

 

O ajuste fiscal teve sua responsabilidade sobre esse desfecho?

Não acho que necessariamente tenha a ver. Agora, se é verdade que é importante ter ajuste fiscal, também o é ter diálogo para saber como e em quais situações cortar.

 

Como o senhor observou a atuação do governo federal nessa situação?

O governo federal há muito tempo está perdido nessa agenda. O que a gente vê acontecer é um jogo de cena. As ações do Ministério da Justiça claramente não são factíveis, tanto que quem tomou a frente desse processo na crise foi o Ministério da Defesa.

 

E as Forças Armadas?

Acho uma situação perigosíssima. Segurança pública é assunto de Ministério da Justiça, governos estaduais e outras ações do governo federal e municípios. Temos uma democracia precária, com instituições ainda se formando. Se essa ação começa a extrapolar para outros estados, onde vamos parar? Há um problema prático de contingente, além da questão de treinamento. As Forças Armadas não existem para o trabalho de segurança pública. Fico com muito receio do que pode vir pela frente.

 

A greve caminha para o fim. O que pode vir depois?

Se, por um lado, existe um alto poder de barganha dessas corporações para obter determinados interesses particularistas, por outro, temos que ver a situação do profissional. Ele é utilizado pelos governos para manter a “pax armada”, muitas vezes no limiar entre a vida e a morte.

A meu ver, existem duas alternativas. A primeira — que acho que não vai acontecer — é o governo estadual ceder e oferecer aumento salarial ou alguma outra contrapartida. Isso poderia trazer efeitos dramáticos para todo o país, já que cria incentivos para que outras categorias sigam o exemplo Brasil afora. A segunda alternativa é não haver recuo e anistia por parte do governo. Com isso, teríamos muitos policiais expulsos da corporação, alguns presos por até vinte anos, e um processo extremamente complexo de reestruturação da Polícia Militar do Espírito Santo. Isso vai criar uma cicatriz profunda, uma marca na história da corporação, e o Estado vai levar muitos anos para se recuperar.

 

As políticas públicas que contribuíram na redução dos índices de criminalidade no Estado correm riscos de passar por retrocessos?

Correm um grave risco. Desde 1980, o Espírito Santo sempre esteve entre os cinco estados mais violentos do Brasil. A partir de 2011, por conta do programa Estado Presente, começou a haver reduções sistemáticas na taxa de homicídios. Foi um trabalho que deu certo, mas ainda dentro de um equilíbrio precário. Investimos na prevenção, melhoramos a organização e inteligência policial, mas todo aquele histórico de violência está presente. Para que isso pudesse ser desconstruído de forma permanente, seria necessário um trabalho de várias gerações. Mas é um bom exemplo de política pública dando sinal de que vai a óbito. Todos os bons exemplos estão morrendo, e o que fica para o futuro?

 

O que faz do Espírito Santo um estado historicamente violento?

Essa é uma pergunta que sempre deixou os pesquisadores muito curiosos. Acho que é possível aventar algumas questões culturais que precisariam ser aprofundadas. O uso da violência como recurso para resolver conflitos é algo que parece estar incrustado em uma subcultura capixaba. Também sabemos que o Espírito Santo é um estado que sempre teve muitos grupos de extermínio e atuação do crime organizado. Outro elemento é a difusão de armas de fogo. Temos dados precários sobre isso, mas utilizando medidas indiretas, como a proporção de suicídios por armas de fogo, o Estado está sempre entre as primeiras posições.

 

Como podemos relacionar o que aconteceu no Espírito Santo com o que vimos nos primeiros dias do ano de crise penitenciária?

São fenômenos da mesma raiz: o equilíbrio precário que temos em nossa sociedade, em que a paz é a paz armada. O que acontece com os indesejados? Eles são mortos — entre si ou a própria polícia os mata — ou encarcerados. De 1980 para cá, foram mais de 1,3 milhão de pessoas assassinadas no Brasil. O número de homicídios aumentou 336%, e o de encarcerados, 1.180%. A ideia não é resgatar a cidadania e o contrato social, em um processo de inclusão e de segurança pública baseado na prevenção social e na repressão qualificada. O modelo que o Brasil adotou é o modelo de segregação dos indesejáveis. Você simplesmente joga esses jovens, negros e pobres dentro da cadeia, apodrecendo, e o próprio Estado é o primeiro a descumprir a lei. Com base em informações do Conselho Nacional do Ministério Público, se formos bastante generosos, no máximo 50% da lei de execuções penais é cumprida. O Estado descumpre solenemente a lei.

 

Como a questão da desmilitarização entra nesse debate?

Ser contra a militarização da polícia não tem nada a ver com falar da estética militar.  Estamos falando da constituição ontológica de qual é o trabalho daquela corporação. Tendo em vista que a Constituição de 1988 foi feita à sombra de um governo militar, muito do que está nela traz o entulho do militarismo. Ela prevê, por exemplo, que as polícias militares, assim como o corpo de bombeiros, são órgãos auxiliares e devem obediência ao Exército, porque os militares tinham medo de que houvesse problema à frente.

Os trabalhos de militar e policial são completamente diferentes, de modo que o primeiro é treinado para a guerra, para destruir o oponente, para defesa. Já o policial tem outra filosofia. A boa polícia é a do policiamento orientado para soluções de problemas, que atua preventivamente e de forma integrada junto às comunidades. Onde há confiança recíproca, há mais informações e mecanismos de identificar pontos que podem gerar pequenos delitos ou até grandes crimes.

Outra coisa é colocar um policial dentro da ideologia belicista, de “nós” contra “eles”. A truculência da polícia militar é resultado direto dessa lógica, que muitas vezes acomete a polícia civil também. Isso deve ser completamente transformado. Nas próprias corporações, há uma grande maioria favorável à desmilitarização.

 

Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo mostram que a maior parte das vítimas dos homicídios ocorridos desde que a greve policial começou eram jovens, negros e moradores de regiões periféricas. Nada novo no perfil de vítimas de homicídios no Brasil. Por quê?

Esse é o teorema geral da segurança pública no Brasil. As vítimas são sempre as mesmas. As vítimas de balas perdidas são as mesmas, as vítimas de policiais são as mesmas. Não muda. Se você pegar estatisticamente e olhar entre os estados, ao longo do tempo, são sempre as mesmas. É uma estabilidade incrível desse perfil…

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Marcos Correa é jornalista e pós-graduando em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Nada a ver?

    Segundo o entrevistado, as bem-sucedidas políticas públicas aplicadas no Espírito Santo estão “morrendo”, sendo abandonadas, mas o ajuste fiscal e o arrocho salarial aplicados pelo governo estadual não têm nada a ver com isso…

    Deve ser culpa da Dilma então.

     

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