O Eu escondido (Quinta Parte), por William James

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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por Marcos Villas-Bôas

Quinta e última parte da tradução do texto “O Eu escondido”, de William James. Nesse trecho, ele conclui a análise do livro de Pierre Janet trazendo um caso prático que ele mesmo considera o mais importante de todos e fazendo considerações importantes para os futuros estudos sobre as diferentes consciências humanas e os problemas causados por elas. James nos lembra que há certos pedaços de conhecimento os quais podem levar anos, décadas ou até séculos para serem juntados e que isso depende também de uma maturidade do conhecimento humano para entendê-los.

O Eu escondido (Quinta Parte)

Fatos que flutuam ao nosso redor e apenas o tempo os cristaliza

por William James

Tradução: Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Edmund Gurney foi o primeiro a descobrir, por meio da escrita automática, que o “eu” secundário estava acordado, mantendo sua atenção constantemente fixa ao comando e esperando pelo sinal de sua execução.

Alguns sujeitos em transe, que eram também escritores automáticos, quando acordados do transe e postos à prancheta – não sabendo ainda o que tinham escrito e tendo a sua atenção superior totalmente absorvida pela leitura em voz alta, por conversa ou por solução de problemas aritméticos mentalmente – registrariam as ordens que eles haviam recebido, juntamente com anotações relativas ao tempo passado e o tempo ainda a correr antes da execução.

Não é, portanto, ao “automatismo”, no sentido mecânico, que esses atos se devem: um “eu” os preside, um separado, limitado e enterrado, mas, ainda assim, um “eu” completamente consciente. Mais do que isso, o “eu” enterrado frequentemente vem à superfície e desaloja o outro “eu” enquanto os atos estão acontecendo.

Em outras palavras, o sujeito cai em transe novamente quando o momento chega para execução e não tem recordação subsequente do seu ato. Gurney e Beaunis constataram esse fato, que tem sido, desde então, verificado em larga escala, e Gurney também mostrou que o paciente se tornou “sugestionável” de novo durante o breve tempo de performance. As observações do Sr. Janet, por sua vez, bem ilustram o fenômeno.

“Eu digo a Lucie para manter os seus braços levantados depois que ela deva ter acordado. Dificilmente ela está no seu estado normal quando coloca os seus braços sobre a sua cabeça, mas ela não presta atenção neles. Ela vai, vem, conversa, mantendo os braços altos no ar. Se perguntada sobre o que seus braços estão fazendo, ela fica surpresa com essa pergunta e diz muito sinceramente: ‘Minhas mãos não estão fazendo nada; elas estão exatamente como as suas.’… Eu a comando para chorar e, quando acordada, ela, de fato, soluça, mas continua no meio das suas lágrimas a conversar sobre muitos assuntos alegres. Quando o soluço acaba, não fica traço da sua dor, que parecia ser completamente subconsciente.”

O “eu” primário frequentemente tem que inventar uma alucinação pela qual mascara e esconde da sua própria visão as façanhas que o outro “eu” está perpetrando. Léonie 3 escreve cartas reais, enquanto Léonie 1 acredita que ela está tricotando, ou Lucie 3 vem ao consultório do médico, enquanto Lucie 1 acredita que ela está em casa.

É um tipo de delírio. O alfabeto, ou a série de números, quando colocados sob atenção do personagem secundário, pode, por um tempo, estar perdido para o “eu” normal. Enquanto a mão escreve o alfabeto, obediente ao comando, o “sujeito”, para sua grande surpresa, descobre que ela está impossibilitada de se recordar disso etc. Poucas coisas são mais curiosas do que essas relações de mútua exclusão, que existem em todas as graduações, entre as várias consciências parciais.

Quão longe essa separação da mente em diferentes consciências pode acontecer em cada um de nós é um problema. O Sr. Janet sustenta que isso apenas é possível onde haja fraqueza anormal e consequentemente um defeito no poder de unificação ou coordenação.

Uma mulher histérica abandona parte da sua consciência, porque ela está muito fraca nervosamente para mantê-la junta. A parte abandonada, enquanto isso, pode solidificar em um “eu” secundário ou subconsciente.

Num sujeito perfeito, por outro lado, o que é deixado fora da mente por um momento continua voltando na próxima. Todo o fundo de experiências e conhecimentos continua integrado, e nenhuma parte separada dele pode se tornar organizada estavelmente o bastante para formar “eus” subordinados.

A estabilidade, a monotonia e estupidez desse último é, com frequência, muito marcante. A autoconsciência pós-hipnótica parece pensar em nada além da última ordem que recebeu; a consciência cataléptica, em nada além da última posição imprimida ao membro.

O Sr. Janet podia causar definitivamente vermelhidão circunscrita e tumefação da pele, em dois desses sujeitos, sugerindo a eles em hipnotismo a alucinação de um cataplasma de mostrada de qualquer formato especial. “J’ai tout le temps pensé à votre sinapisme”, diz o sujeito colocado de volta em transe após a sugestão ter tido efeito.

Um homem, N—-, quem o Sr. Janet operou em longos intervalos, era, de tempo em tempo, manipulado por outro operador, e, quando colocado para dormir de novo pelo Sr. Janet, disse que ele estava “muito longe para receber ordens em Algiers”.

O outro operador, tendo sugerido aquela alucinação, tinha esquecido de removê-la antes de acordar o sujeito do seu transe, e a pobre, passiva, personalidade de transe tinha parado por semanas no sonho estagnado.

As performances subconscientes de Léonie, tendo sido ilustradas para alguém que pedia um pied de nez, executado com a sua mão esquerda durante a conversa, quando, um ano depois, ela o encontra de novo, lá vai a mesma mão para o nariz de novo, sem Léonie 1 suspeitar do fato.

E isso me leva para o que, depois de tudo, é a parte mais importante dessas investigações – quero dizer, a sua possível aplicação para aliviar a miséria humana. Deixe-se pensar e dizer o que se quer da barbárie intelectual e grosseira de muito da filosofia dos nossos “médicos de nervo”. Deixe-se desgostar o quanto queira da meticulosa atitude materialista da mente que muitos mostram. Ainda assim, o seu trabalho, como um todo, é consagrado por sua fertilidade prática e positiva.

Teoremas sobre a unidade do princípio do pensamento serão sempre, assim como eles sempre têm sido, estéreis; mas, observações de fatos levam a novos assuntos ao infinito. E, quando alguém reflete que nada menos do que a cura da insanidade – essa mais terrível aflição humana – deita-se possivelmente ao final de pesquisas como aquelas que Sr. Janet e os seus confrères estão começando, é possível sentir que o desdém que alguns psicólogos espiritualistas exibem por esses pesquisadores são muito mal colocados.

O modo de redimir as pessoas da barbárie não é ficar afastado e zombar das suas tentativas estranhas, mas mostrá-las como fazer as mesmas coisas melhor. A sugestão hipnótica ordinária está se provando imensamente fértil no campo terapêutico e o mais sutil conhecimento de estados subconscientes que nós estamos agora ganhando irão aumentar os nossos poderes nessa e noutras direções.

Quem sabe quantos estados patológicos (não simplesmente aqueles nervosos e funcionais, mas orgânicos também) podem ser decorrentes da existência de algum perverso fragmento enterrado de consciência obstinadamente nutrindo sua estreita memória ou delírio e, portanto, inibindo o fluxo normal da vida? Um caso concreto irá melhor exprimir o que quer dizer. Ao todo, é mais profundamente sugestivo para mim do que tudo no livro de Janet.

A história é de uma jovem garota de 19 anos chamada Marie, que foi ao hospital em uma condição quase desesperada, com crises convulsivas mensais, frieza, febre, delírio, ataque de terror etc. durante dias, juntamente com várias anestesias inconstantes, contraturas a todo o tempo e uma cegueira fixa no olho esquerdo.

Primeiro, o Sr. Janet, não adivinhando nenhum fator psicológico particular no caso, não teve muito interesse na paciente, que ficou no hospital por sete meses e teve todos os usuais cursos de tratamentos aplicados, incluindo cura com água e sugestões hipnóticas ordinárias, sem um mínimo bom efeito.

Ela, então, caiu num tipo de desespero cujo resultado foi fazer o Sr. Janet tentar lançá-la a um transe mais profundo, de modo a obter, se possível, algum conhecimento acerca dos seus mais remotos antecedentes psicológicos e das causas originais da doença, sobre as quais, em estado acordado e em hipnotismo ordinário, ela não poderia dar nenhuma explicação definida.

Ele foi bem sucedido até além das suas expectativas; tanto suas primeiras memórias, quanto as memórias internas das suas crises retornaram no sonambulismo profundo e ela explicou três coisas: os seus periódicos frieza, febre e delírio se deviam a uma boba imersão dela em água fria aos 13 anos.

A frieza, a febre etc. eram consequências que, então, se seguiram; e agora, anos depois, a experiência então carimbada no cérebro pela primeira vez estava se repetindo em intervalos regulares na forma de alucinação provocada pelo “eu” subconsciente, e da qual a primeira personalidade somente experimentou os resultados exteriores.

Os ataques de terror eram explicados por outra experiência chocante. Aos 16 anos, ela viu uma mulher ser morta por cair de um lugar alto; e o “eu” subconsciente, por razões que só ele sabe, se via pronto para se acreditar presente nessa experiência todas as vezes que as outras crises viessem.

A cegueira histérica do olho esquerdo teve o mesmo tipo de origem, datando do seu sexto ano, quando ela tinha sido forçada, apesar das suas crises, a dormir na mesma cama que outra criança, cuja face esquerda emitiu uma nojenta erupção. O resultado foi uma erupção nas mesmas partes da face dela própria, que voltou por vários anos antes de desaparecer inteiramente e, juntamente com ela, uma anestesia da pele e a cegueira do olhos esquerdo.

Então, temos muito da origem das várias aflições da pobre garota. Agora, para a cura! Precisava-se, é claro, fazer a personalidade subconsciente parar de ter essas alucinações. Mas, elas tinham ficado tão estereotipadas e habituais que isso se tornou uma tarefa difícil de cumprir.

Comandos simples eram infrutíferos, mas o Sr. Janet, ao fim, chegou a um artifício que mostra quantas fontes o “médico de mente” de sucesso deve possuir. Ele carregou a pobre Marie de volta à imaginação nas primeiras datas. Isso se provou tão fácil com ela quanto em muitas outras pessoas quando em transe, ou seja, para produzir uma alucinação de que ela era novamente uma criança, todo o necessário era imprimir uma forte afirmação nesse sentido.

Deste modo, o Sr. Janet, recolocando-a como se tivesse seis anos, a fez passar pela cena da cama outra vez, mas deu a ela um diferente dénouement. Ele a fez acreditar que a horrível criança não tinha erupção e que era charmosa, até que ela estivesse convencida e tratasse sem medo esse novo objeto de imaginação.

Ele a fez remitir a cena da imersão fria, mas deu a ela um resultado inteiramente diferente. Ele a fez viver de novo o acidente da velha mulher, mas substituiu um assunto cômico pelo antigo trágico que tinha causado impressão tão profunda.

A Marie subconsciente, passiva e dócil como usualmente, adotou essas novas versões dos contos antigos e estava aparentemente vivendo em contemplação monótona delas ou tinham sido extintas todas juntas quando o Sr. Janet escreveu o livro. Todos os sintomas mórbidos cessaram como por mágica. “São cinco meses”, o autor diz, “desde que esses experimentos foram realizados. Marie não demonstra mais o menor sinal de histeria. Ela está bem e, em particular, cresceu completamente robusta. O seu aspecto físico se modificou absolutamente”. Finalmente, ela não é mais hipnotizável, como acontece frequentemente nesses casos quando a saúde retorna.

Os curadores de mente e cientistas cristãos, dos quais nós temos muito ouvido recentemente, inquestionavelmente obtiveram, por métodos amplamente diferentes,  resultados, em certos casos, não menos marcantes do que nesse. O homem médico ordinário, se ele não acredita realmente nos fatos, os dispensa da sua atenção com a observação curta e seca de que eles são “apenas efeitos da imaginação”.

O grande mérito desses investigadores franceses, e dos Srs. Myers, Gurney e “dos pesquisadores físicos”,  é que eles estão, pela primeira vez, tentando ler algum tipo de sentido definido dentro dessas vagas frases. Pouco a pouco, o sentido vai ficar mais preciso. Isso me parece um grande passo a ser verificado que o “eu” secundário, ou “eus”, coexiste com o primário, as personalidades de transe com o normal, durante o estado acordado.

Mas, o que esses “eus” secundários podem ser e quais as suas remotas relações e condições de existência, são perguntas para as quais as respostas são tudo menos claras. Minha própria impressão é que a generalizações do Sr. Janet estão baseadas num número muito limitado de casos para cobrir todo o campo.

Ele conclui que o “eu” secundário é sempre um sintoma de histeria e que o fato essencial sobre a histeria é a falta de poder sintetizador e consequente desintegração do campo de consciência em partes mutuamente exclusivas.

A consciência primária e secundária, juntas, podem, na teoria do Sr. Janet, nunca exceder a consciência normal total do indivíduo. Essa teoria certamente expressa muito bem os fatos que caíram sob a observação do seu autor, porém, aqui, se esse fosse um artigo crítico, eu teria algo a dizer.

Há transes que obedecem outro tipo. Eu conheço uma mulher não-histérica que, no seus transes, conhece fatos, todos juntos, que transcendem a sua consciência normal possível, fatos sobre as vidas das pessoas as quais ela nunca viu e das quais nunca ouviu falar antes. Eu estou bem ciente de todas as responsabilidades a que essa afirmação me expõe, e eu a faço deliberadamente, não tendo praticamente nenhuma dúvida de que ela seja verdadeira.

A minha própria impressão é que a condição de transe é uma coisa imensamente complexa e flutuante, dentro do entendimento da qual nós mal começamos a penetrar e a respeito da qual qualquer generalização ampla é certamente prematura. Um estudo comparativo de transes e estados subconscientes é, enquanto isso, da mais urgente importância para a compreensão da nossa natureza.

É frequente acontecer que fatos difusos de um certo tipo flutuem ao redor por um dado tempo, mas que nada científico ou sólido venha deles até que algum homem escreva o suficiente para um livro dar a eles corpo e significado. Então, eles aparecem juntos, como se assim fossem, de todas as direções, e aquele livro se torna o centro de cristalização de uma rápida acumulação de novo conhecimento.

Eu tenho certeza de que o livro do Sr. Janet será um desse tipo e eu confidentemente profetizo que qualquer um induzido por esse artigo a seguir o caminho de estudo no qual tal livro é um brilhante pioneiro irá colher uma recompensa rica.

 

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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