O excruciante parto do Governo Bachelet

Em fevereiro o Chile para.

Para o Chile institucional e param os milionários. O povo não para nunca, 70% dele não têm dinheiro para tirar férias, viajar, descansar.

Quem também não para são os jornalistas.

E costuma ser assim: enquanto o Poder se refestela entre La Serena e Viña del Mar, quando não em Búzios, Florianópolis ou na Flórida, ou lagarteia preguiçoso sobre os decks que sinalizam o estatuto da propriedade privada na orla do sistema lacustre chileno, então estoura uma bomba.

Foi o que a recém-eleita presidente Michelle Bachelet percebeu, mal instalara-se em sua casa de veraneio às margens do pitoresco Lago Caburga, situado na Araucânía, 800 km ao sul de Santiago, onde a alcançou a notícia do amplo repúdio nos meios de comunicação da recém-nomeada Subsecretária de Estado para a Educação, a Eng. Comercial e Economista, Claudia Peirano.

Mas como? Então ela não acabara de reiterar em sua coletiva à ìmprensa do dia 2 de fevereiro, que “nosotros hemos chequeado a todas las personas que hemos nombrado, justamente para asegurar que sean idóneas y que sean personas probas”?

Ascensão e súbita queda da Subsecretária de Estado da Educação

Inesperadamente, na distante Santiago, o passado, esse teimoso habitante da História, resolveu fazer uma visita a Claudia Peirano.

Como diz o refrão de uma música do rapper austríaco Raf Camora, “a vida é um livro que eu sempre trago debaixo do braço”. E no “livro de ocorrências” da engenheira Peirano estava escrito que, em 25 de novembro de 2011, seu nome apareceu estampado com todas as letras, assinando uma carta aberta encabeçada pelo ex-ministro da educação, Sergio Molina, e um grupo de “expertos” (peritos em Espanhol), contra a gratuidade do ensino superior no Chile, publicada em El Mercurio e La Tercera.

Uma carta aberta com aquele teor, no ano das multitudinárias manifestações do movimento estudantil contra o sistema do lucro, desde a ditadura Pinochet também adotado pelas universidades públicas, foi mais que ato de coragem: para a maioria do povo chileno, que amarga mensalidades de 300, 50, 700 dólares para manter um único filho em curso superior, foi um descaramento. Porém, Peirano queimou definitivamente seu filme, quando a imprensa documentou seus vínculos empresariais com o ex-vice-presidente do partido Democrata Cristão e seu ex-marido, Walter Oliva – quem ainda é proprietário da rede de colégios “Crecemos” e vice-presidente da Universidade Miguel de Cervantes, privada -, estabelecendo evidente conflito de interesses. Nestes últimos anos, escrevem os jornais, Peirano teria se beneficiado da subvenção pública às escolas privadas, prestando assessorias a seus próprios colégios, que por sua vez cobrava à consultoria do Grupo Educativo do qual ela mesma era fundadora.
Como a sra. Peirano, adepta da privatização do sistema de ensino, comportar-se-ia no papel de segunda funcionária em importância no Ministério da Educação, se também assinou o programa de governo de Michelle Bachelet, que contrariamente promete “avançar para a gratuidade universal em todos os níveis” da educação?

Tudo errado! Antes mesmo que a nova subsecretária assumisse, foi derrubada pelo movimento estudantil.

A partir de seu idílico refúgio, a presidente nomeou então Valentina Quiroga, também engenheira e economista da Universidade do Chile, ex-diretora executiva da Fundação Espacio Público e coordenadora da área de educação do seu programa de governo. Com estas credenciais e seu belíssimo rosto, no final de 2013, Quiroga era dada como escolhida para o cargo, mas Bachelet cedeu às pressões da Democracia Cristã, que no novo governo açambarcou vários ministérios. Posicionada à esquerda, desde 2012 Quiroga celebrizou-se como tuiteira contra o sistema privado de ensino (“el lucro en educación escolar es perverso y no tiene justificación – 28 jun 2012), granjeando a simpatia do movimento estudantil. Que está de olho no movimento das peças do tabuleiro das nomeações.

Atentado ao pudor, estelionato…

Inevitavelmente, do plantão santiaguino costumam vazar críticas reservadas ao “estilo Bachelet”, método hermético que segundo a assessoria da socialista consiste em ignorar consultas a seus colaboradores na escolha de ministros, subsecretarios e intendentes, os governadores das Regiões.

Por isso, quando a poeira do caso Peirano parecia ter baixado, eis que novas denúncias perturbaram a siesta da Presidente eleita, aumentando notavelmente o estresse de seu staff de plantão em Santiago, liderado pelo socialista Mahmud Aleuy, futuro Subsecretário do Interior, a quem se atribui destreza na lide com as contrariedades.

Quando nos meios de comunicação ecoou o nome de Miguel Moreno como novo Subsecretário de Bens Nacionais (ministério que administra o patrimônio público e fiscal), o Chile não conteve o riso, lembrando-se que em dezembro de 2011 Moreno foi condenado a expressiva multa por um tribunal, após ser autuado em flagrante por atentado ao pudor – uma passada de mão no traseiro de uma mulher – no interior do metrô de Santiago.

Outro Moreno, de nome Ignacio, designado por Bachelet como Subsecretário da Mineração, destacou-se como gerente da mineradora Cerro Dominador. Mas é mal lembrado por seus trabalhadores, a maioria eleitora de Bachelet, pois enquanto  empreenderam greve de 50 dias, entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014, Moreno rejeitou qualquer negociação, por isso acusado de cometer “práticas anti-sindicais”.

Hugo Lara, nomeado para o cargo de Subsecretário da Agricultura, também registra passagem pelos tribunais, como acusado em processos de estelionato e apropriação indébita. Mediante as ações, Lara foi obrigado a ressarcir a Corporación Frutícola Chilena com 8,0 milhões de Pesos, equivalente a aprox. R$ 15.000 – valor à primeira vista pouco expressivo, mas suficientemente eloquente para arranhar a imagem de um servidor público.

Um caso risível é o da futura Ministra da Cultura, Claudia Barattini, que substituirá no cargo o escritor Roberto Ampuero, único ex-exilado da ditadura Pinochet no Governo Sebastián Piñera, que deixa o ministério desprestigiado.

Ironia da privatização do sistema de educação, Barattini, especialista em cooperação internacional, deve 10.000 dólares ao erário por seus estudos universitários, admitindo que até hoje não os pagou, porque viveu muitos anos fora do país, nunca recebendo avisos de cobrança. Confirmada na pasta da Cultura, a ministra prometeu pagar a dívida antes de tomar posse.

… e a sombra do torturador

O caso que mais dores de cabeça causa à equipe de Bachelet é a nomeação de Carolina Echeverría para a Subsecretaria da Defesa.

Em entrevista às rádios Universidad de Chile e Cooperativa, no dia 9 de fevereiro, duas respeitáveis senhoras – a advogada Mercedes Bulnes e a escritora Mónica Echeverría, mãe de Cármen Castillo, companheira do secretário geral do MIR, o médico Miguel Enríquez, fuzilado em Santiago em 1974 – apontaram o coronel da reserva Victor Echeverría Enríquez de ter comandado suas prisões e as torturas sofridas em 1974 nas dependências do Regimento Buín, em Santiago. Mercedes Bulnes, grávida de três meses na ocasião, o acusa também de tê-la “molestado sexualmente”, enfatizando que prefere eufemismos para circunscrever o que efetivamente sofreu.

Ocorre que o militar é pai da recém-nomeada Subsecretária.

A denúncia teve o efeito de um arrasa-quarteirão nas hostes da Presidente, cobrada publicamente por Bulnes e Echeverría, para que reveja a nomeação e que a nomeada preste esclarecimento público, atitude que deveria ter tomado no dia de sua nomeação.

No entanto, em entrevista à CNN, a própria Mercedes Bulnes aventou a hipótese de que Carolina Echeverría sequer soubesse do sinistro papel desempenhado por seu pai durante a ditadura Pinochet, hipótese compartilhada pela escritora Mónica Echeverría.

A pergunta que domina o debate é se, mesmo que soubesse, a recém-nomeada seria corresponsável pelo passado do pai torturador? Certamente não, o que não a isenta de tornar público seu próprio embaraço, desta forma distanciando-se da figura do pai. Convenhamos: qual a filha que se dispõe a tal sacrilégio?

Outra dúvida é por que as duas ex-presas políticas esperaram tantos anos para registrar sua denúncia. Aqui cabe ressaltar que Carolina Echeverría desempenhou a mesma função no primeiro governo (2006-2010) de Bachelet, período no qual a denúncia teria sido oportuna.

Mercedes Bulnes afirma que testemunhou contra o então capitão torturador perante a Comissão Valech – Comissão Assessora para a Qualificação de Detidos Desaparecidos, Executados Políticos e Vítimas de Prisão Política e Tortura, presidida pelo Monsenhor Sergio Valech, que em 2011 entregou seu relatório final sobre a repressão no Chile, de 11 de setembro de 1973 a 10 de março de 1990.

Embora interrogado em repetidas ocasiões pelo juiz Mario Carroza, Victor Echeverría Enríquez jamais foi processado por violações dos Direitos Humanos, ilustrando de forma exemplar a impunidade ainda reinante no Chile, onde alguns hierarcas encontram-se atrás das grades, porém milhares de torturadores e assassinos continuam impunes em liberdade, pois era regra que batalhões inteiros participavam das atrocidades comandadas por seus superiores.

Com sua reportagem publicada ontem, 11 de fevereiro, em El Dínamo, sobre o famigerado destacamento – Las historias de horror en el regimiento Buin que pesan sobre el padre de la futura subsecretaria de FF.AA. – minha destemida colega chilena, Carolina Rojas, ilustra de modo emblemático que o passado, esse indelével habitante da História, teima em visitar o presente, não dando trégua ao Chile enquanto seus carrascos não forem punidos e de uma vez por todas seus fantasmas exorcizados.

Luis Nassif

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