O Ministério Público e a questão das drogas, por Gustavo Roberto Costa

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Gustavo Roberto Costa

Do Justificando

No último dia 19, o Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do recurso extraordinário n. 635.659, interposto pela Defensoria Pública de São Paulo, no qual se postula a declaração da inconstitucionalidade do já conhecido art. 28 da Lei n. 11.343/2006. No apelo extremo, a recorrente alega, em brevíssima suma, que o dispositivo legal viola os princípios da intimidade e da vida privada, além da falta de lesividade e alteridade da conduta.

Em nome do Ministério Público de São Paulo, como recorrido, sustentou oralmente o senhor Procurador-Geral de Justiça, Dr. Mário Fernando Elias Rosa, postulando, sua excelência, o desprovimento do recurso. Argumentou que a infração é de perigo abstrato, visa garantir a saúde pública e é intocável pelo princípio da insignificância. Aduziu que a pretensão é refrear o tráfico de drogas e funcionar como “instância promotora de estabilidade social”. Sublinhou que não há de forma estruturada o atendimento à saúde nem programa de reinserção social dos dependentes, de modo que o direito penal atua como única instância, pois não dispõe o sistema normativo de outro modo de proteção dos interesses em jogo. Arrematou que a descriminalização pode ser ponto de chegada, mas não de partida.

Em nome do Ministério Público Federal, atuando como custos legis, falou o digníssimo Sr. Procurador-Geral da República, Doutor Rodrigo Janot, alegando, inicialmente, que o bem jurídico tutelado pela norma é a saúde pública, e que o porte de droga resulta na propagação do vício no meio social. Sustentou que o reflexo da liberação das drogas será a formação do exército das formigas. Informou que o tráfico no Brasil movimenta 3,7 bilhões de reais. Citou que não existe o direito assegurado de a pessoa ficar em êxtase. Acrescentou que 90% dos usuários de maconha tornam-se viciados. Destacou que, além da maconha, a descriminalização incentivaria o uso de outras drogas nocivas, como o Rupinol, a droga do estupro. Mencionou que a comparação do THC com a nicotina é inadequada, porque a última não é capaz de “entorpecer”. Ventilou que o álcool também pode causar dependência química, mas somente por abuso ou excesso em sua ingestão; já o simples uso de substância entorpecente é o suficiente para levar à dependência. Prosseguiu dizendo que se o Supremo acolher o recurso, estará interditando o Poder Legislativo de formular política pública apta a regular a matéria. Concluiu afirmando que, quando não houver muita clareza quanto ao que a Constituição proíbe ou deixa de proibir, a dúvida deve favorecer ao legislador.

Deixando claro todo nosso respeito e admiração pelos cultos Procuradores-Gerais (de Justiça e da República), apresentamos alguns despretensiosos contrapontos a suas exposições, com as quais, data venia, não há como concordar.

De proêmio, apesar do esforço argumentativo dos oradores ao falar sobre a objetividade jurídica do crime em análise, não lograram demonstrar a contento como o porte de drogas para consumo pessoal pode atingir a saúde pública, ainda que remotamente. É que isso é difícil mesmo. Se alguém traz consigo porções de droga visando consumi-las, dificilmente – para não dizer impossivelmente – colocará em risco a saúde de outrem, senão a sua própria.

Sobre dizer, o Procurador-Geral de Justiça, que se trata de crime de perigo abstrato – aquele no qual é desnecessário demonstrar risco concreto ao bem jurídico – socorremo-nos da lição de Zaffaroni, que, discorrendo sobre o princípio da lesividade, leciona que só existe violação relevante para o direito penal “quando se afeta o bem jurídico tutelado. Não se pode interromper arbitrariamente a análise do fato punível e se a ação não prejudica terceiros, deve ficar impune, por expressa disposição constitucional”.[1]

Luiz Flávio Gomes, no mesmo sentido, assevera que o “direito penal da ofensividade não se coaduna com o perigo abstrato. Aliás, em virtude do princípio da ofensividade, pode-se enfatizar que o perigo abstrato é totalmente incompatível com o Direito penal do ius libertatis”.[2]

Para os juristas, então, é impossível a existência de um crime de perigo abstrato que, concomitantemente, represente risco concreto a bens jurídicos. Assim, ao dizer que o crime é de perigo abstrato, por via transversa, admite o ilustre Procurador-Geral de Justiça que ele é inconstitucional, como já foi decidido pelo Supremo no julgamento do HC 81.057[3].

Além do mais, argumentar que o crime é de perigo abstrato, e, desta forma, inalcançável pelo princípio da insignificância, parece-nos, concessa venia, uma forma fácil de fugir da necessidade de explicar a possibilidade de a conduta lesar ou colocar em perigo concreto a saúde pública.

Disse o Dr. Márcio Fernando também que o consumidor de drogas “submete-se ao tráfico”. É verdade. Mas ele só o faz porque não há outra opção. O indivíduo dependente comprará a droga de quem quer que seja. Essa é mais uma razão para que se trate da saúde e da reinserção social do usuário: que ele deixe de sustentar o tráfico ilícito de drogas.

Ademais, desde quando era prevista pena de detenção pelo porte de drogas para consumo próprio as pessoas não deixavam de praticá-lo. A ameaça de uma sanção não funciona como desestimulante para que alguém deixe de se envolver com drogas. Em outras palavras: o direito penal não exerce o papel que dele se espera nesse caso.

Na mesma senda, Pierpaolo Cruz Bottini, entende “impossível atribuir a ele (o usuário) o controle ou a condução do comportamento doloso do comerciante de drogas. A aplicação da pena com essa motivação seria punir alguém pelo ato do outro”.[4]

Neste contexto, um dado se revela importante: no ano de 2014, 4.285 flagrantes sobre apreensão de drogas foram registrados em presídios paulistas, o maior número desde 2009[5]. Se nem no interior de prisões, onde há vigilância 24 horas por dia, é possível impedir a circulação de drogas, o que dizer no meio aberto? Mais uma prova de que é pura ilusão buscar um mundo sem drogas, principalmente com o uso do direito penal.

Sobre a alegação de que o direito penal é a única instância normativa existente para o combate às drogas, novamente ousamos discordar do letrado Procurador-Geral – sempre com todo acatamento.

A uma porque sua colocação vai de encontro com o postulado da intervenção mínima, que abarca o subprincípio da subsidiariedade, segundo o qual o direito penal só intervém quando outros meios formais ou informais não forem idôneos para a resolução do conflito[6]. De acordo com Eduardo Tergolina Teixeira, deve-se verificar “a possibilidade de outro ramo do Direito agir com eficiência para sanar a questão”, pois somente se “a ofensa intolerável não puder ser dirimida por outra seara do Direito, aí sim o Direito Penal intervirá, como ultima ratio”.[7]

A duas porque já há todo um arcabouço normativo voltado para a atenção ao usuário de drogas, baseado na política humanista da redução de danos. O sistema nacional de políticas públicas sobre drogas (Lei n. 11.343/2006) não deixa dúvida a esse respeito, ao estabelecer como finalidade a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas (art. 3º, I), e como princípios o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade (art. 4º, I) e a integração das estratégias nacionais e internacionais de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas (art. 4º, VII).[8]

Não bastasse, temos ainda a Portaria nº 1.059/2005, do Ministério da Saúde, que destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas – CAPSad, e a Resolução n. 3/CONAD, de 27 de outubro de 2005, encampando a redução de danos como estratégia da Política Nacional Antidrogas. Se a rede de atendimento não está estruturada, cabe aos órgãos legitimados – dentre os quais o próprio Ministério Público – exigir sua implantação. Já é possível dar a partida, portanto, para que a descriminalização – ponto de chegada – seja alcançada.

Baseado no ordenamento legal e regulamentar vigente, Maurides de Mello Ribeiro sugere não mais reconhecer o cidadão usuário de psicotrópicos “pela rotulagem sociocultural que assumiu como estigma, maconheiro, louco, delinquente, bandido, pária, marginal, para assumir-se como um cidadão sujeito de direitos, protagonista das reivindicações de seu contexto social e responsável pela implementação das modificações necessárias para a melhoria de sua vida pessoal e relacional”.[9]

No que tange ao discurso do Dr. Procurador-Geral da República, os argumentos também não resistem aos dados técnicos e científicos existentes sobre o tema, rogada a devida vênia.

Bateu-se o Dr. Rodrigo Janot pela nocividade do consumo de drogas, destacando o mal que elas causam. Acontece que não é essa a discussão em pauta. Ninguém, em sã consciência, defende que as drogas não são maléficas para a saúde. Por isso mesmo a necessidade premente da atenção ao usuário pelos sistemas de saúde e assistência social, algo que a intervenção do direito penal só dificulta.

Quanto à formação do exército das formigas, a preocupação do Dr. Janot é despicienda. Não há razão para que, atualmente, o traficante não queira ser confundido com um usuário, considerado o tratamento legal infinitamente mais brando dispensado a este último. Mas não é o que ocorre. Até mesmo pela rentabilidade do tráfico – conforme o próprio chefe do MPF, algo em torno de R$ 3,7 bilhões –, é necessário que altas toneladas de drogas sejam transportadas, distribuídas e vendidas (as grandes apreensões cotidianas estão aí para provar), algo impossível de ser feito por formigas.

Ainda de acordo com o Procurador Geral da República, não há direito fundamental de ficar em êxtase. Mas onde está escrito isso? Caso em lugar nenhum, lembre-se que é direito de todo o cidadão fazer tudo aquilo que a lei não veda (CF, art. 5º, II). Ou não? Agora, se esse não for direito assegurado ao indivíduo, não há fundamento bastante para a não proibição do consumo de bebidas alcoólicas e de alguns medicamentos controlados, também capazes de entorpecer[10].

No tocante ao paralelo feito pelo Dr. Rodrigo Janot entre a maconha e algumas das drogas legalizadas, como o álcool e o tabaco, concordo com sua excelência, quando diz que a comparação é inadequada. E é porque as duas últimas são infinitamente mais nocivas à saúde.

Segundo um estudo publicado na renomada revista médica The Lancet, em março de 2007, alguns especialistas atribuíram notas de 1 a 3 aos malefícios causados por algumas drogas. A taxa de toxidade da maconha recebeu nota 0,99, enquanto o álcool ficou com 1,40 e o tabaco com 1,24. Com relação à capacidade de dependência, a maconha aparece como a droga menos prejudicial, com nota 1,51, novamente abaixo do álcool (1,93) e do tabaco (2,21). Aquém também da heroína (3,00) e da cocaína (2,39), está muito próxima do tabaco.[11]

Noutro giro, “a toxidade aguda (aquela produzida por uma única dose) da maconha é desprezível e não há registro de pessoas que tenham morrido por overdose de maconha ou cuja saúde tenha sofrido algum dano devido ao uso esporádico da erva. A toxidade crônica (aquela proporcionada pela exposição contínua à droga) é significativa, mas inferior aos danos causados pelo tabaco e pelo álcool”.[12] Há estudos que já concluíram ser a maconha 114 vezes menos letal que o álcool.[13]

Afora isso, se a droga do estupro (Rupinol) é utilizada e reutilizada para o abuso sexual de “moças incautas”, o que existe é crime de violação sexual mediante fraude (CP, art. 215), seja a droga lícita ou ilícita. Penso que é algo alheio à controvérsia travada na corte.

E mais: julgando a favor da inconstitucionalidade do dispositivo questionado, não estará o Pretório Excelso interditando o Poder Legislativo. Pelo contrário, estará estimulando-o a deliberar a respeito de políticas eficientes para o combate aos males causados pelo uso de substâncias psicotrópicas. Ao Poder Executivo, bastará colocar em prática o que já prevê o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.

Por fim, não há, como consignou o chefe do Ministério Público Federal – digno de todo nosso respeito –, dúvida sobre a compatibilidade da norma impugnada com o texto constitucional. Trata-se de inconstitucionalidade nítida, cristalina, e “onde a incongruência se faz evidente – como é o caso em tela – deve o Judiciário afastar a vigência da norma”.[14]

Conforme ensina Maria Lúcia Karam, presidente do movimento LEAP-Brasil[15], “é preciso pensar em não descrer da utopia e lutar para construir sociedades em que as pessoas possam ter maiores oportunidades de ser felizes e menores necessidades de se drogar”.[16] A estigmatização trazida pela criminalização dificulta esse objetivo, porquanto o usuário, visto como bandido, é tratado com violência pelo Estado[17], e tende a fugir dele, quando deveria ser incentivado a procurá-lo.

Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, no documentário Quebrando o Tabu – Um Filme em Busca de Soluções para o Fracasso da Guerra às Drogas[18], sintetizou bem a questão, ao afirmar que não devemos dizer às pessoas que não devem usar drogas porque são proibidas, e sim porque “tiram sua liberdade”.

A guerra às drogas mata muito mais que as drogas em si. Milhões já morreram. Trilhões já foram gastos. Seguiram-se poucos resultados. A descriminalização é o primeiro passo a uma nova perspectiva, voltada para a dignidade humana. Aguardamos ansiosamente que o Supremo Tribunal Federal cumpra o seu papel, rumo ao avanço; rumo a dias melhores.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD e membro da LEAP-Brasil.
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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