O pintor José Antonio da Silva na Galeria Almeida & Dale, por Walnice Galvão

Por Walnice Nogueira Galvão

José Antonio da Silva surgiu na voga da descoberta dos artistas naïfs ou primitivos. Sua exposição em São Paulo, em 1948, realizou-se na Galeria Domus, alcançando extraordinário sucesso. Inaugurada um ano antes, a Domus foi a primeira galeria de arte moderna no Brasil, computando 90 exposições entre 1947 e 1951, o que é um número fantástico para tão curto intervalo de tempo.

Estava mesmo no ar uma certa ideia de modernização nas artes. São contemporâneas a fundação do Museu de Arte de São Paulo (1947), do Museu de Arte Moderna (1948) e da Bienal de Arte de São Paulo (1951). Era a época de fastígio da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que, embora efêmera, trouxe nível de produção industrial e atualização técnica a nosso cinema. Sem esquecer o Teatro Brasileiro de Comédia, que investiu na alta qualidade, na renovação do repertório e na profissionalização do pessoal dos palcos.

A exposição de José Antonio da Silva teve tanto êxito que Pietro Maria Bardi, todo-poderoso curador do MASP, compraria 10 telas. E o MAM financiaria e editaria seu livro Romance de minha vida (1951) – o primeiro de vários. Agraciado com o Prêmio de Aquisição da 1ª. Bienal de Arte de São Paulo, em 1951, o pintor estaria presente em quase todas as Bienais das duas décadas seguintes.

Sua pintura, que tanto cativou os que a contemplaram, é agora objeto de uma bela exposição na Galeria Almeida & Dale, de São Paulo, que se vem destacando por seu trabalho com os modernos, sempre sob a curadoria de Denise Mattar. Ultimamente abrigou mostras individuais de Ismael Néri, Guignard, Ernesto De Fiori, Di Cavalcânti – e mesmo de um bem menos moderno, Eliseu Visconti, cujos 150 anos de nascimento a galeria celebrou. 

Vemos ali os primórdios de José Antonio da Silva, em que o anedótico predominava, chegando até à caricatura: encenações de um adultério, vacinação contra malária, festa de São João com elevação do mastro, a faina de um engenho de açúcar, uma caçada, e assim por diante.

Depois, à medida que aumentava sua difusão e se assenhoreava de seus meios de expressão, começaram a surgir quadros em que a questão formal predominava sobre a anedota. Assim o vemos às voltas com a perspectiva renascentista, quase ausente das primeiras telas, que têm aquele ar aplastado típico do primitivismo.  Sempre fiel a uma etnografia da vida caipira, que era a de sua experiência imediata de trabalhador rural, ousaria tomar novos caminhos como o pontilhismo na representação de roças de algodão, que assim se tornavam quase abstratas. Repare-se numa tela em que o ponto de fuga dos renques de capulhos alvíssimos se encontra com as nuvens, sem que se distinga mais, nesse átimo de intersecção, o que é algodão e o que é nuvem.

Não faltaram percalços. Depois de conhecer tanto sucesso, veria trabalhos seus serem recusados por duas Bienais. O artista não gostou, sentindo-se injustiçado. O resultado foi a feitura de autoretratos em que aparecia com seus característicos óculos de grossa armação negra, mais um apêndice iluminado saindo da cabeça (a criatividade? a inspiração?), e legendas com desaforos dirigidos aos críticos e à Bienal. Algum tempo depois, seria readmitido e todos fariam as pazes.

Um catálogo de alta qualidade gráfica completa o conjunto. Não só podemos apreciar ali as telas da mostra, como ainda estudar, com o vagar que merece, uma meticulosa Linha do Tempo, que ajuda o visitante a entender como as coisas se passaram numa vida riquíssima de acontecimentos e atividades. Por ali podemos constatar como José Antonio da Silva se tornaria personagem importante dos meios artísticos e culturais brasileiros.

É uma boa oportunidade de rever ou travar conhecimento com um grande pintor primitivo,  um dos pioneiros do gênero entre nós, que registrou as transformações pelas quais passou um país que estava deixando de ser agrário, bem como os trabalhos e os dias de seus habitantes vivendo esse processo.  Há muito tempo não se via uma exposição dele: a Galeria Almeida & Dale veio resgatá-lo de um imerecido esquecimento.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

2 Comentários

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  1. Uma ótima indicação

    Tão quanto a um João Gilberto na música, a figura de José Antônio da Silva é única na pintura: talento (nato) + autoconhecimento (de sua estatura) + (pitada generosa de) boa polêmica – aspectos que sintizam os grandes nomes.

    Muito bom saber que a Galeria Almeida-Dale (localizado nos Jardins, em SP) abre o espaço para uma releitura deste grande pintor das paragens interiorianas paulistas, depois de, no ano passado, ter aberto o espaço para uma temporada de Di Cavalcanti.

     

     

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