O político e o íntimo, por Eduardo Leal Cunha

 

do Psicanalistas pela Democracia

O político e o íntimo, por Eduardo Leal Cunha

Versão reduzida e modificada de conferência realizada na Universidade Nacional de Atenas em junho de 2016.

Um dos momentos mais marcantes da longa série de acontecimentos que levou à deposição da Presidente eleita Dilma Roussef foi certamente a votação da abertura do processo de Impeachment na câmara dos deputados num domingo que ficará na memória de muitos de nós. Relembro aqui comentário de Jorge Coli no jornal A Folha de São Paulo:

No domingo do impeachment, quando um deputado oferecia seu “sim” aos filhos, à mãe, ao neto, ao sobrinho, nem sequer procedia a uma mistura entre público e privado. Mostrava antes uma completa ausência de consideração pelo público, por qualquer perspectiva pública. (…) a projeção da intimidade familiar na Câmara anulou, por si só, o verdadeiro sentido da representação democrática1.

Pouco tempo depois, o mesmo jornal se referiu à suspensão do mandato parlamentar do deputado Eduardo Cunha e seu consequente afastamento da presidência da Câmara dos Deputados com a seguinte manchete: Teori ficou enfurecido com decisão de Lewandowski e decidiu dar liminar.

Notamos nesse último exemplo, antes de tudo, o uso apenas do prenome para se referir a uma das mais altas autoridades da república no anúncio de um ato limite que implicou a intervenção direta sobre outro poder. Em seguida, aparece como justificativa do ato um sentimento, a fúria, inscrito numa relação de intimidade entre dois indivíduos. É assim, portanto, com uma linguagem própria à esfera íntima que um ato político de suma importância e as suas razões são enunciados no maior jornal do país.

Enquanto no congresso nossos deputados vincularam suas escolhas a suas relações familiares, a imprensa associava uma decisão da mais alta corte ao jogo de simpatias e antipatias entre as pessoas que a compõem.

Diferente de Coli, no entanto, proponho interpretar esses acontecimentos não como sintomas de uma disfunção ou de perversão do sentido verdadeiro da representação política, mas sim como reconfiguração dos sentidos do político e da nossa experiência subjetiva da política, isto é, do modo como vivenciamos e atribuímos sentido ao “que diz respeito à vida coletiva de um grupo organizado de homens”2.

Tal reconfiguração teria entre os seus elementos decisivos a subversão das fronteiras entre o público e privado, não se tratando porém, no meu entender, apenas do declínio da esfera pública ou da prevalência da esfera privada sobre aquela. Acredito que a formulação precisa ser mais radical: trata-se da ressignificação da esfera pública a partir da linguagem, valores e sentidos que antes marcavam caracteristicamente a nossa vida íntima e que atualmente utilizamos para conferir sentido a acontecimentos da esfera coletiva.

Nesse sentido a submissão do comum ao particular não caracterizaria uma distorção e sim uma nova realidade a ser compreendida.

Pois quando consideramos a eleição das redes sociais como campo privilegiado da experiência política, somos levados a admitir que tal agir na intimidade produz efeitos de fato na vida social e de certo modo se inscreve na forma dominante de compreender e fazer política na atualidade, como nos mostram as manchetes de jornal. Assim já não faz sentido dizer que se trataria de uma recusa da política e não cabe tampouco julgar a legitimidade de tal experiência, mas sim de constatar sua realidade, identificando aspectos positivos e negativos.

Para resumir em uma imagem, parece-me que a polis grega foi deslocada para o quarto de dormir e suas dependências, de modo que a ação e a palavra dirigidas ao comum são submetidas à relação consigo mesmo e por isso se torna necessário pensar na ressignificação do comum a partir do individual.

Há, evidentemente, interpretações alternativas que insistem na tese do declínio do homem público e leem tal prevalência da fala sobre si, da qual os eventos citados dão testemunho, simplesmente como submissão do plano racional – que deveria marcar o debate público – ao domínio das emoções – próprio à esfera da vida privada. É o que faz, por exemplo, Anne-Cecile Robert em artigo publicado no Le Monde Diplomatique .3

Destacando o fato de que a emoção aparece hoje frequentemente como fator central de apresentação e avaliação dos acontecimentos, a jornalista a compreende enquanto obstáculo à democracia e como signo de um primado da imaginação sobre a razão que coloca o cidadão em uma posição passiva: “ele reage em vez de agir. Ele se refere mais a seu sentimento que a sua razão. São os acontecimentos que o motivam, não seu pensamento.” 4

Parece-me que há nessa leitura dois elementos dissonantes: em primeiro lugar não penso que se deva falar em passividade quando essa forma de intervir no espaço público, ou mesmo de compreendê-lo, produz efeitos tão decisivos sobre a vida em comum.

Por outro lado, associar simplesmente emoção e imaginação, opondo ambas à razão comunicativa que caracterizaria o ambiente social é desqualificar imaginação e afetos e reafirmar a razão soberana como única via de acesso à realidade ou ao futuro. Além disso, tal contraste entre emoção e razão traz consigo a ideia de um corpo político esvaziado de sentimentos5, algo bem distante do que podemos pensar a partir de Freud e da sua leitura do mal-estar na cultura.

Ao mesmo tempo, devemos considerar que tal valorização da intimidade pode ser tomada em sentido inverso, enquanto resistência ao biopoder e seus dispositivos de normalização a partir da afirmação de que o íntimo é político e, em tempos de biopolítica, o é de modo quase essencial. É o que teremos na defesa, estabelecida por Beatriz Preciado, de uma sexopolítica na qual o corpo é o campo privilegiado de afirmação dos anormais e o espaço privado, do lar, por exemplo, o domínio no qual potências de vida podem encontrar lugar fora do olhar panóptico da norma que regula a nossa presença no espaço público6.

Temos portanto, dois efeitos ou destinos diversos para tal vinculação radical entre o íntimo e o político. No exemplo dos nossos parlamentares e da mídia, a política é subsumida à esfera íntima; na proposição de Preciado é a intimidade que ganha o espaço público. Difícil negar, portanto, a diferença bastante significativa entre a proposição queer de que o “o íntimo é político” e a fórmula reversa: a política é íntima.

No primeiro caso temos a possibilidade de reinvenção das formas possíveis de regulação do viver junto a partir da subversão da norma pela abertura a outras formas possíveis de subjetivação, gestadas na esfera da autoconstrução de si e no espaço privado, antes que possam ganhar direito de cidade. No segundo caso, a ação política é reconfigurada pelo registro da intimidade e nos deparamos com a ressignificação do fato político e social a partir do eu e de suas afecções, de modo que a esfera pública passa a ser referida inteiramente às demandas de um indivíduo proprietário e empreendedor de si mesmo.

De todo modo, não creio que ainda faça algum sentido nos referirmos, assustados, à “invasão do espaço público pela emoção”, quando talvez já seja o momento de pensar na vinculação definitiva entre o terreno político e a esfera íntima. Ou seja, minha proposição é que não há nada de essencialmente anômalo ou desviante no comportamento daqueles que vivem a política no registro da intimidade, pois desenhou-se ao longo das últimas décadas uma forma hegemônica – e, portanto, legítima – de ação política que tem como matriz a experiência subjetiva e os afetos que a povoam. Para o bem e para o mal.

 

1 – Jorge Coli, Folha de São Paulo, 01/05/2016

2 – Lalande, André Vocabulaire technique et critique de la philosophie Paris, Quadrige/PUF, 1988, vol.2, p.785

3 – Robert, Anne-Cécile “La stratégie de l’émotion”, Le Monde Diplomatique, Février 2016. Disponível em: https://www.monde-diplomatique.fr/2016/02/ROBERT/54709 Acesso em 25/05/16

4 – ibid

5 – Safatle, Vladimir (2016) O circuito dos afetos. Belo Hrizonte: Autêntica

6 – Preciado, Beatriz (2011) Multidões queer: notas para uma política dos anormais. Revista Estudos Feministas 19(1) Acesso em 18/04/2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100002

Foto: Psicanalistas pela Democracia

Redação

1 Comentário

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  1. Ao que parece,Leal da Cunha

    Ao que parece,Leal da Cunha me copiou.Se essa figura aí de cima do Post é mesmo TIRIRICA,saí na frente.Disse a minha hoje amiga Vera Lucia Venturini,que só ele e mais ninguem,pode nesse momento,tirar o País desse esgoto.Você advinhou,pergunta o inefavel Peru.Claro que não,seu idiota.Pior do que tá,não fica.Ainda ficam piripicados comigo por nasci com 5 estrelas.

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